Comentário de Martinho Lutero sobre Rm 1:17-18

v. 17. A justiça de Deus se revela.[1]

Os ensinos humanos revelam e inculcam a justiça dos homens, ou seja, instrui-se quem é e de que natureza é o justo diante de si e dos demais, e como se pode alcançar. Mas em nenhum outro lugar, senão no evangelho se revela a justiça de Deus (ou seja, quem é e de que natureza é o justo diante de Deus, e como se pode ser) por meio da fé somente com que o homem crê na Palavra de Deus, como está escrito no último capítulo de Marcos (16:16): “o que crer e for batizado, será salvo; mas o que não crer, será condenado”. Pois a justiça de Deus é a causa da salvação. E como ocorreu com o “poder” de Deus, também com a “justiça” de Deus deve-se entender não aquela por virtude da qual ele é justo em si mesmo, senão a justiça pela qual somos feitos justos por Deus. E esse “ser feito justo” ocorre por meio da fé no evangelho. Por isso, santo Agostinho escreveu no capítulo 11 de sua obra Acerca do Espírito e a Letra: “Ela é chamada de justiça de Deus, porque ao infundi-la, Deus faz justos aos homens, assim como a “salvação que é do Senhor” (da qual fala o Salmo 3:8) é o ato salvador mediante o qual Deus salva aos homens”. santo Agostinho diz a mesma coisa no capítulo 9 da obra citada. E a chama justiça de Deus para diferencia-la da justiça dos homens, que emana de suas obras, como descreve Aristóteles no Livro III de sua Moral. Para Aristóteles, a justiça é o resultado das obras, e se origina nelas. Mas para Deus, a justiça precede às obras, de modo que as obras são o resultado da justiça – tal como ocorre com as obras de um bispo ou sacerdote: somente consegue fazê-las aquela pessoa que previamente foi consagrada e separada para que as faça. As obras justas de pessoas que, todavia, não são justas, são como as obras de um homem que desempenha as funções de um sacerdote e bispo sem que seja um sacerdote; ou seja, são imitações grosseiras, comparáveis aos truques dos charlatães da feira.

Em segundo lugar, devemos dirigir nossa atenção às interpretações bastante diferentes que fizeram das palavras por fé e para fé, v.17. Lyra sugere a seguinte: “Desde uma fé informe a uma fé formada”. Mas isto é de todo inaceitável, posto que nenhum justo vive de uma “fé informe”, nem mesmo é certo que a justiça de Deus vem da fé informe – mas em nosso texto afirma tanto um como o outro: que o justo viverá pela fé, e que a justiça de Deus se revela pela fé. Talvez Lyra entenda com “fé informe” a fé dos neófitos, e com “fé formada” a fé dos crentes maduros. Mas uma fé informe no final das contas não é fé, senão algo oposto à fé; pois não vejo como alguma pessoa é capaz de crer com uma fé informe. Mas isto pode-se fazer: ver o que se deve crer, e permanecer assim em suspenso.

Outros propõe a seguinte solução: “Da fé dos pais que viveram sob a antiga lei à fé da nova lei. Esta interpretação é mais aceitável, ainda que, pressuponho, também se possa desaprovar e refutar com o argumento de que o justo não vive da fé das gerações passadas. Paulo disse: “o justo viverá pela fé”. Os pais creram no mesmo que também cremos. Não há além do que uma única fé, se bem que a dos antigos possivelmente foi menos clara, assim como também hoje em dia as pessoas instruídas creem no mesmo que as não instruídas, ainda que as primeiras possuem um entendimento mais detalhado. O significado desta passagem parece ser, pois, o seguinte: A justiça de Deus é somente e exclusivamente uma justiça pela fé, mas de tal sorte que, em desenvolvimento, não “entra em aparência” senão que produz uma fé sempre mais nítida, conforme declara em 2 Co 3:18: “Somos transformados de uma glória em outra etc.”, e (Sl 84:7): “Irão de poder em poder. Assim, também, irão de “de fé em fé”, crendo com maior firmeza sempre, de modo que “o que é justo, pratique a justiça ainda mais” (Ap 22:11). Em outras palavras: Ninguém deve pretender havê-lo alcançado (Fp 3:13), e por tal motivo deixar de avançar, e começar a retroceder. Santo Agostinho observa no capítulo 11 do livro Acerca do Espírito e a Letra: “Da fé dos que confessam com a boca à fé dos que obedecem com os atos”. E Paulo de Burgos disse: “Da fé da sinagoga (como ponto de partida) à fé da igreja (como meta)”. O apóstolo Paulo, entretanto, disse “que a justiça vem pela fé, mas os gentios não tiveram uma fé da qual pudessem ser conduzidos a outra fé a fim de serem justificados”.

 

v.18. A ira de Deus se revela.

O apóstolo dirige o seu ataque a todos os governantes e sábios deste mundo, porque uma vez que foram reduzidos à humildade, estes facilmente reduzirão à humildade também os governados e os indoutos. O outro motivo por que ataca principalmente aqueles, é que os poderosos e sábios foram os que mais se opuseram ao evangelho e à palavra e à vida prometida pela cruz de Cristo, instigando também aos demais contra ela. Por isso, o apóstolo lhes imputa a culpa e o pecado como se eles fossem os únicos culpáveis e pecadores, e lhes anuncia a ira divina que se desatará contra eles.

Com efeito: para ninguém a “palavra da cruz é uma loucura tão grande” (1 Co 1:18) como precisamente para os filósofos e os que ostentam o poder, porque é uma mensagem diametralmente oposta a eles mesmos e ao seu modo de pensar.

 

NOTA:

[1] A luta pessoal de Lutero com o conceito básico da iustitia Dei achou a sua expressão nitidamente no prefácio que ele escreveu para a edição de 1545 de suas Obras em latim, Luther’s Works, American Edition vol. 34, pp. 336-337. Em WA III, 147, pp. 13-16, Lutero chama a passagem de Rm 1:17-18 de conclusio totius Epistolae b. Pauli ad Romanos.

 

Martín Lutero, Carta del Apóstol Pablo a los Romanos (Terrassa, CLIE, 1998), pp. 42-44.

Tradução: Rev. Ewerton B. Tokashiki

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