Confessionalidade: Lato ou Estrito Senso? – Uma reflexão sobre a Confessionalidade dentro da Igreja Presbiteriana do Brasil

Por Augustus Nicodemus Lopes

 

Alguém pode perguntar qual a necessidade das igrejas históricas terem uma confissão de fé escrita e oficial. Será que a antiquíssima confissão bíblica “Jesus Cristo é o Senhor”, devidamente qualificada e entendida, não seria suficiente para expressar as coisas fundamentais em que cremos? Não é tão simples assim. Muito embora a confissão cristã mais lata e antiga fosse simplesmente “Cristo é o Senhor”, rápida e gradativamente, ainda no período apostólico, ela foi sendo mais e mais qualificada e explicada, à medida que a Igreja apostólica enfrentava o surgimento de movimentos como o dos “espirituais” de Corinto, do protognosticismo, do legalismo judaico e da heresia de Colossos. Há claras evidências nos escritos neotestamentários de confissões mais elaboradas voltadas para a pessoa de Cristo, como por exemplo, Filipenses 2.5-11, Colossenses 1.13-20 e 1 Timóteo 3.16.

Logo após o período apostólico, a Igreja sentiu a necessidade de explicitar ainda mais a fé que professava, à medida que novos desafios doutrinários e práticos foram surgindo. Assim, surgiu o Credo Apostólico, uma das primeiras tentativas de sistematizar e explicar em que os cristãos criam. Só dizer “Jesus é o Senhor” não era suficiente. Arianos, nestorianos, pelagianos, maniqueístas e outros eram capazes de fazer a mesma afirmação. Mais e mais a Igreja precisava deixar claro qual Cristo ela confessava como Senhor. Assim surgiram os grandes credos ecumênicos, a maior parte deles antes do século V.

Portanto, a frase “Cristo é o Senhor” não bastaria para expressar adequadamente em nossos dias o que é essencial no cristianismo e no presbiterianismo. Católicos, espíritas, testemunhas de Jeová, mórmons, liberais, neo-ortodoxos, neopentecostais e outros mais não teriam dificuldade em adotá-la. O lema adotado pela “Igreja Universal do Reino de Deus”, e que se encontra postado no frontispício de cada um de seus templos, é exatamente “Jesus Cristo é o Senhor”. Assim, torna-se necessário expressarmos nossa fé em Cristo de forma qualificada e mais detalhada. É aí que entram os credos e as confissões.

A tradição calvinista tem produzido e adotado confissões que, embora elaboradas em locais e épocas diferentes, são unânimes em seus pontos centrais. Os calvinistas puritanos que escreveram na Inglaterra a Confissão de Fé de Westminster, adotada pela IPB, aprenderam dos calvinistas continentais. João Knox e outros pastores foram ao continente aprender com Calvino. As confissões produzidas por puritanos e continentais têm diferenças meramente de ênfase, liturgia, política e atitude para com governo e Estado. Os calvinistas puritanos escreveram a Confissão de Fé de Westminster e os continentais outras Confissões, como os Cânones de Dort, o Catecismo de Heildeberg e a Segunda Confissão Helvética. Entretanto, não há diferença substancial entre elas. Nenhum arminiano, ariano, pelagiano, nestoriano, unitariano, liberal ou neopentecostal as subscreveria em sã consciência. Para saber o que os calvinistas continentais e puritanos confessam em comum – e aí teríamos a definição do que seria calvinismo – é só tomar as confissões que produziram e sintetizar suas doutrinas. Perceber-se-á que aquilo que os une é imensamente maior que as diferenças em questões secundárias.

Apesar da tradição calvinista ter continuado a crescer e a amadurecer, as igrejas reformadas hoje continuam adotando as mesmas confissões elaboradas pelos calvinistas puritanos e continentais. Não surgiu nenhuma nova confissão de fé reformada em séculos recentes. O que tem acontecido é que algumas igrejas reformadas simplesmente abandonaram as confissões como expressão da fé que professam, como a Igreja Evangélica Suíça, que no século passado abandonou a Segunda Confissão Helvética e em seguida, até mesmo o credo apostólico. Infelizmente, o progresso tem sido no sentido de afastar-se mais e mais da fé professada pelos primeiros calvinistas, que se encontra sintetizada nas grandes confissões.

Alguns rejeitam a confessionalidade pensando que a confissão adotada pode vir a substituir a Bíblia, e ser tomada como inerrante. Embora alguns sempre possam cair neste erro, até onde sabemos, esta nunca foi a posição de nenhuma Igreja reformada séria. O fato, por exemplo, de que a Igreja Presbiteriana do Brasil adota “como sistema expositivo de doutrina e prática a sua Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve” (CI, Art. 1) não significa que considera os mesmos inerrantes. Por outro lado, somente o Supremo Concílio, órgão que tomou a Confissão como expressão de fé da IPB, pode reexaminar e questionar a Confissão à luz da Bíblia e propor mudanças e emendas. Cabe aos oficiais presbiterianos, por força de juramento e lealdade à sua consciência, manter e defender publicamente a doutrina exposta na Confissão, até que o Supremo Concílio resolva alterá-la; ou, pelo menos, não falar contra ela publicamente, mas somente nos fóruns competentes.

Adotar uma confissão de fé, como a Igreja tem feito, significa admitir implicitamente que a Bíblia tem um sistema de doutrinas que pode ser organizado e proposto, e assim, crido e praticado. Não há nisto nada de racionalismo ou cartesianismo. Muito embora devamos rejeitar os aspectos do racionalismo que vão contra a verdade bíblica, devemos reconhecer que há aspectos com os quais podemos concordar, como o conceito de que existem princípios e verdades absolutas, em contraste com o relativismo e o pluralismo da pós-modernidade.

Lembremos ainda que há historicamente duas posições gerais dentro das igrejas reformadas quanto à atitude confessional dos seus oficiais. Algumas adotaram uma atitude mais lata, em que a confissão de fé é vista apenas como referencial histórico ao qual os oficiais não precisam prestar compromisso de fidelidade. Outras preferiram uma atitude confessional mais estrita, em que a confissão adotada funciona realmente como expressão doutrinária e norma prática da denominação, à qual seus oficiais prestam lealdade no ato da sua ordenação. A primeira atitude permite uma diversidade maior de teologias, práticas ministeriais e pastorais e comportamentos éticos debaixo do guarda-chuva da denominação, que num primeiro momento parece garantir a unidade organizacional da mesma; mas ao final, deixa a denominação sem controles administrativos e institucionais para impedir a entrada do liberalismo teológico, do neopentecostalismo e de movimentos eticamente questionáveis (casamento entre homossexuais e ordenação de pastores homossexuais). Tal tem acontecido em denominações presbiterianas e reformadas ao redor do mundo, quando adotaram o confessionalismo lato.

Já uma confessionalidade mais estrita, embora possa parecer mais divisiva a princípio, permite que a denominação tenha ao menos um referencial interpretativo para tratar seus problemas internos referentes a questões doutrinárias e práticas. Entendo que a IPB, em seus documentos oficiais, adota esta posição de confessionalidade mais estrita.

A IPB adota como sistema expositivo de doutrina e prática a sua Confissão de Fé e os Catecismos Maior e Breve (Art. 1, CI-IPB). Aparentemente, não é uma questão se a confissão e os catecismos são a melhor ou a única maneira correta de interpretar as Escrituras, mas sim que são o sistema expositivo de doutrina e prática adotado pela IPB. Este posicionamento tem sido seguido coerentemente pela IPB ao longo dos anos. O Supremo Concílio e sua Comissão Executiva, respondendo consultas, tomando decisões sobre pontos controversos ou decidindo sobre questões éticas, invariavelmente seguiram uma linha de confessionalidade estrita. Em 1958, respondendo a uma consulta sobre a impetração da bênção matrimonial a descrentes, o Supremo Concílio empregou entre outros considerandos o silêncio da Confissão de Fé sobre o assunto (SC-58-102). Neste mesmo Concílio, a consulta sobre as penas eternas foi respondida assim: “segundo os ensinos da Palavra de Deus e consubstanciados na confissão de Fé, cap.32, seção I, só há dois lugares para onde irão as almas após a morte” (SC-58-103). Em 1962 o Supremo respondeu a questão de sua continuação no Concílio Internacional de Missões e as relações deste Concílio com o Concílio Mundial de Igrejas com a decisão de “não subscrever… nenhum pronunciamento que importe em conflito com a Confissão de Fé, os Catecismos e a Constituição Vigente da IPB”. (SC-62-126).

Na mesma linha de confessionalidade estrita, a Comissão Executiva de 1968 insistiu junto aos presbitérios que “todo seminarista, ao ser admitido ou ordenado ao Ministério da IPB, reafirme sua crença nas Escrituras Sagradas como Palavra de Deus, bem como a sua lealdade à Confissão de Fé, aos Catecismos e à constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil” (CE-68-039). No Supremo de 1969 a Igreja caracterizou como cisma, entre outras coisas, “Quando um concílio ou qualquer outra comunidade presbiteriana, totalmente ou em parte, adota doutrinas ou práticas contrárias à Confissão de Fé da Igreja, separando-se do seu corpo e da sua comunhão” (SC-69E1-002). O Concílio poderia ter mencionado as Escrituras, mas sabe que a Igreja adota a Confissão como sistema expositivo da mesma, servindo, portanto, de referencial para as decisões do Concílio.

Esta atitude de confessionalidade estrita tem continuado com os anos. Em 1990 o Supremo resolveu “Reafirmar a nossa fidelidade às Sagradas Escrituras, à Confissão de Fé e aos Catecismos Maior e Menor”, diante de insinuações de que a Igreja estava perdendo sua identidade reformada (SC-90-143). Em 1992, quando o assunto do divórcio e novo casamento foi trazido novamente ao plenário, a Comissão Executiva mais uma vez apelou para a Confissão de Fé em busca de uma solução (CE-92-069). Em 1994 o Supremo recomendou aos concílios sob sua jurisdição que incentivassem as Igrejas “ao estudo sistemático dos símbolos de fé da IPB, maior destaque para a Confissão de Fe e Catecismos” (SC-94-234 – Doc. CVII).

A Pastoral da Comissão de Liturgia à Igrejas e Pastores, aprovada pela CE de 1995 (CE-95-124 – Doc. CVIII) tratou da questão dos cânticos usados no culto dizendo que “Os cânticos usados, congregacionais ou não, devem estar em harmonia com uma Teologia Bíblica Sã, com nossos Símbolos de Fé e com o momento do culto em que eles forem cantados. Tais parâmetros devem ser estudados, comparados com o que a Bíblia nos ensina e com o que nossos Símbolos de Fé interpretam (especialmente o Capítulo XXI de nossa Confissão de Fé). Em 1998, quando veio uma consulta sobre situação de membros não casados civilmente, mas vivendo sob contrato em cartório, a CE mais uma vez apelou para a Confissão (CE-IPB/98 160 – Doc. Nº CLX): “a Igreja Presbiteriana do Brasil aceita apenas o Casamento Civil como vínculo legal do matrimônio, conforme a Confissão de Fé de Westminster capítulo XXIV”. No Supremo Concílio daquele mesmo ano, respondeu-se uma consulta sobre o “bater palmas” e “forte expressão corporal” nos cultos, considerando entre outras coisas o ensino da Confissão, que “… O modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por Ele mesmo e tão limitado pela sua vontade revelada, que não deve ser adorado segundo imaginações e invenções dos homens ou sugestões de Satanás nem sob qualquer outra maneira não prescrita na Santa Escritura” (Confissão de Westminster, 21.1) (SC-IPB/98 – DOC. CXIII).

Penso que estes poucos exemplos (há muitos mais, para os que desejam gastar algum tempo diante do CD contendo o Digesto Presbiteriano) mostram que a IPB sempre entendeu a Confissão de Fé, não como uma mera referência histórica, mas como o sistema expositivo de doutrina e prática por ela adotado, valendo-se dela em suas decisões, respostas e planejamento.

 

Originalmente disponibilizado em 19.05.2004.

A revisão do texto se limitou à nova ortografia da língua portuguesa.

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