Rudolph Bultmann e seu conceito de mitologia

Por Augustus Nicodemus Lopes

 

Em 1958 Rudolph Bultmann publicou em alemão a sua obra clássica, “Jesus Cristo e Mitologia”, contendo as conferências que pronunciou em outubro de 1951 na Universidade de Yale. Desde então, as idéias radicais de Bultmann caíram gradativamente em descrédito, após haverem influenciado profundamente o mundo acadêmico de estudos neotestamentários. Seu livro, que o tornou famoso, hoje tem valor real apenas histórico, para os interessados em estudar aquele período em que o famoso programa de “desmitologização” proposto por Bultmann dominou o cenário.

É importante ainda que não exageremos a importância de Bultmann. Além de realmente não ter sido original em muitas de suas idéias (muito do programa de Bultmann já havia sido proposto por outros estudiosos alemães antes dele, como Weiss, Bousset, Schleiermacher, etc.), seus próprios discípulos, como Ernest Käsemann e Günther Bornkamm, questionaram em sua época o radicalismo do mestre. Muito do movimento em torno do nome de Bultmann tem mais a ver com a radicalidade de suas propostas do que com a validade e a aceitação das mesmas.

Para Bultmann, a linguagem do Novo Testamento é mitológica, refletindo a maneira pela qual os seus escritores percebiam o mundo. O ponto central da visão mitológica do mundo é tornar concretos conceitos e idéias abstratas, como, por exemplo, falar da transcendência de Deus em termos espaciais, como tendo sua morada no céu. Outro ponto importante da visão mitológica do Novo Testamento é a crença de que Deus e os demônios agem na história e intervém nos afazeres humanos. O relato de Jesus andando sobre as águas, portanto, é totalmente mitológico. A visão científica do mundo, por outro lado, já provou que a história é um sistema fechado de causa e efeito, não cabendo a intervenção quer divina quer satânica. Através da mitologia, os escritores do Novo Testamento acabaram trazendo para dentro da história aquilo que realmente não pode pertencer a ela, pois não pode ser verificado pelo método científico. Assim, os relatos de milagres, a possessão demoníaca, o conceito do nascimento virginal, da encarnação e da ressurreição dos mortos, por exemplo, são mitológicos – nunca realmente ocorreram historicamente, e se tivessem ocorrido, não poderiam ser provados, pois Deus sempre age ocultamente, escondido ao olho humano e somente perceptível ao olho da fé. A prova de que até mesmo Jesus estava preso a esta visão mitológica é que ele pregou a vinda de um reino escatológico que nunca realmente chegou. A história desmentiu a escatologia mitológica de Jesus, afirma Bultmann.

O Novo Testamento, portanto, é inaceitável ao homem moderno, que não mais acredita em milagres, demônios e intervenções sobrenaturais no curso da história. A obra do exegeta, portanto, é atingir o centro da mensagem do Novo Testamento e transmiti-la de forma compreensível ao homem moderno. Para alcançar-se esta mensagem é preciso “desmitologizar” o kerygma, despi-lo de sua roupagem mitológica.

Existe mais de um motivo para fazer isto. O kerygma transcende qualquer cultura e qualquer visão do mundo; portanto, não pode ficar preso a qualquer uma delas, quer a mitológica, quer a científica. Por assim dizer, o kerygma nos chega aprisionado na visão mitológica e precisa ser libertado e reapresentado de forma aceitável ao homem moderno. Por sua vez, seria ilusão também pensar que a visão científica moderna possa transmitir plenamente a mensagem do Novo Testamento, visto que se trata, por sua vez, de mais uma visão de mundo, limitada pelo tempo e pela história.

A mensagem do Novo Testamento, segundo Bultmann, é a palavra de Deus para o homem, mas visto que não pode ser expressa de forma proposicional (isto é, sob a forma de pronunciamentos doutrinários, pois isto implicaria em ficar aprisionada em alguma visão de mundo) só pode ser recebida pelo homem no presente, enquanto lhe fala e o alcança em um determinado momento de sua existência. Ou seja, o kerygma promove o encontro de Deus com o homem em um determinado momento da sua existência, desafiando-o a vivê-la de forma autêntica. Para isto, a pessoa tem que renunciar à sua arrogante pretensão de segurança, tomar a cruz – que significa morrer para as preocupações terrenas, e lançar-se inteiramente na graça perdoadora do Deus que é “totalmente outro”.

A proposta de Bultmann é que, após a desmitologização, o kerygma seja expresso nos termos da filosofia existencialista, que, segundo ele, é a que melhor reflete a sua natureza. Ele defende abertamente o uso das categorias existencialistas para traduzir a mensagem do Novo Testamento ao homem moderno, muito embora insista que nenhuma filosofia ou cosmovisão possa expor adequadamente o kerygma.

Bultmann defende que o processo de desmitologização tem seus precursores em Paulo e João. Paulo foi o primeiro a desmitologizar o kerygma da Igreja Primitiva ao introduzir a idéia de que o mundo vindouro a ser trazido pelo Filho do homem vindo sobre as nuvens já foi inaugurado no presente. Jesus tinha a expectativa de que o reino de Deus haveria de vir em sua plenitude ainda durante a sua vida, mas a história mostrou que ele estava errado. A demora da parousia levou Paulo a substituí-la pelo conceito da vida no Espírito e união com o Senhor exaltado. Já o autor do evangelho de João procedeu a uma desmitologização ainda mais radical, transformando a idéia mitológica da vinda do Filho do homem sobre as nuvens no conceito da vinda do Espírito como Consolador.

Do ponto de vista dos estudos reformados do Novo Testamento há pouca coisa que possa ser considerada positiva em Bultmann, a não ser seu desejo de traduzir as Escrituras para sua época e o reconhecimento de que a mensagem do Novo Testamento transcende aspectos culturais (muito embora as implicações que ele extrai deste último ponto terminem na não-proposicionalidade da mensagem divina). Bultmann representa o destilar dos pressupostos racionalistas e existencialistas na exegese bíblica. Ele não crê na Trindade, na encarnação, na inspiração da Bíblia, no sacrifício vicário de Cristo, na sua ressurreição e na segunda vinda. Pelos credos mais antigos da Igreja e pelas confissões históricas, sua obra nem cristã poderia ser considerada. Ela é um monumento ao pensamento racionalista agnóstico que tenta achar algum valor num livro que considera o reflexo de uma fé mitologizada de povos primitivos. Seus pressupostos fazem com que a mensagem resultante de sua exegese fique totalmente desprovida do elemento sobrenatural sem o qual o cristianismo deixa de ser o que é.

Algumas das críticas mais comuns feitas ao trabalho de Bultmann são o uso do racionalismo e da cosmovisão científica como ponto de partida para determinar o que pode ser real ou mito, o uso do existencialismo e o anacronismo em atribuir aos escritores do Novo Testamento o emprego de figuras mitológicas que na realidade só aparecem na literatura posterior aos tempos bíblicos. Uma outra crítica é que sua teoria não deixa aos cristãos outra possibilidade para a origem do universo senão o evolucionismo darwinista, visto que milagres como a criação do mundo (mesmo no caso do evolucionismo cristão) não existem.

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