O selo do Espírito

Por Donald Macleod

 

Infelizmente, nunca estivemos na capacidade de imitar o Dr. Martin Lloyd-Jones. Uma língua recalcitrante, lábios indomáveis, e uma entonação inquebrantável, era o que tornava impossível imita-lo. Todavia, temos com ele uma imensa dívida pessoal, e nossa primeira admiração era limitada. Pensávamos que o seu entendimento das doutrinas fundamentais era insuperável, e a sua habilidade em proclamá-las incomparável. Essa continua sendo a nossa opinião, mas apesar disto, atualmente, sinceramente mantemos a temeridade de estarem em desacordo numa área importante da teologia do Dr. Lloyd-Jones. Devorávamos com prazer as suas primeiras publicações e chegaram a ser parte edificante da nossa alma. Mas algumas partes do volume Pregação e Pregadores[1] nos encheu de dúvida. O livro Romanos 8:5-17[2] nos angustiou, e um recente volume intitulado O Propósito Final de Deus[3] (uma exposição dos primeiros capítulos de Efésios) nos convenceu de que chegou o tempo de falar.

O problema é a doutrina acerca do Espírito Santo no pensamento do Dr. Lloy-Jones, especialmente a sua opinião acerca do selo do Espírito. Ele está colocando todo o peso de sua autoridade e todos os seus poderes de persuasão em favor de sua opinião, segundo a qual o selo do Espírito é algo subseqüente à conversão, e que, portanto, pode ser que existam cristãos sem o selo do Espírito.

 

Depois que crestes?

Esta doutrina se baseia, em primeiro lugar, em Efésios 1:13, que na Versão Autorizada do Rei Tiago (King James Version) diz: “em que também, depois que crestes foram selados com o Espírito Santo da promessa”. Esta tradução sugere com ênfase que o ser selado ocorre após o crer, pelo que o Dr. Lloy-Jones se esmera em enfatizar que o verbo que subtraí esta clausula “depois que crestes” está no passado. Com efeito, o verbo está no tempo aoristo, e é uma simplificação considerar o aoristo como um tempo passado simples. Os verbos no idioma grego têm que ver, primordialmente, não com o tempo da ação (passado, presente ou futuro), mas com o estado da ação (completa, incompleta, ou indefinida). O aoristo é o estado indefinido de uma ação. “É uma ação simples que não se representa como completa ou incompleta” escreve o nosso favorito gramático A.T. Robertson.

A insensatez de deduzir, a partir do particípio aoristo de Efésios 1:13, que há um intervalo de tempo entre o crer e o ser selado fica ilustrado numa clausula do evangelho “Jesus respondeu e disse (apokritheis eipen)”. Apokritheis é um particípio aoristo exatamente similar a pisteusantes (crendo) em Efésios 1:13. Todavia, seria absurdo dizer que a declaração do Senhor foi depois de sua resposta. Resulta mais absurdo ainda, sustentar que foi possível responder sem ter falado. De fato, a relação entre crer e ser justificado. Logicamente, a fé é anterior à justificação, mas isso não significa que há um intervalo entre estas, ou que seja possível ser crente e não ser justificado. Do mesmo modo, a fé vem antes de ser selado, mas não é necessário um intervalo entre elas.

Mas a interpretação do Dr. Lloyd-Jones não faz justiça ao contexto da passagem aludido. Toda esta secção de Efésios está dominada pela declaração no versículo 3, de que Deus nos têm abençoado com toda sorte de bênçãos espirituais. É difícil, após tal declaração, pretender que alguns cristãos carecem de uma benção particular, em especial uma benção de tal importância que o expositor pôde afirmar que “é uma das mais vitais de todas as doutrinas do Novo Testamento com respeito ao avivamento e a um novo despertar da igreja cristã”. Podemos dizer honestamente que somos abençoados com toda sorte de benção espiritual, sem ser selados com o Espírito Santo?

Não seria o propósito do que segue Efésios explicar o significado de toda sorte de bênçãos espirituais? Estas incluem a eleição, adoção e redenção. Devemos parar aqui e dizer que o selo pertence a uma ordem de pensamento distinto (que não é parte de toda benção espiritual desfrutada por todos os crentes), algo que é experimentado apenas por alguns e talvez somente por alguns poucos?

Também devemos observar a frase “em Cristo” em toda esta passagem. Somos escolhidos em Cristo, aceitos nEle e remidos nEle, somos selados nEle. Todos estes pontos vão juntos e não há o menor sinal de que é possível estar nEle e não ser selado, nem tão pouco que para ser selado devamos ter algo aparte e acima de estar em Cristo.

A maneira como Paulo procede a descrever o Espírito Santo impede crer que um possa ser cristão sem ser selado. Por exemplo, Ele é o Espírito Santo “da promessa”. Ele não é dado a alguns cristãos porque são superiores aos outros. É dado pela promessa incondicional aos crentes como meros crentes. É possível conceber que existam certos cristãos a quem Deus não lhes deu a promessa do Espírito? Devemos recordar o contexto desta frase em Atos 1:4ss, “esperem pela promessa do Pai”. Aquela promessa estava diretamente ligada ao dever do testemunho cristão: “recebereis poder sobre vós quando vier o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas”. Existem alguns cristãos que não estão obrigados a ser testemunhas? Ou, que existam alguns que estão obrigados a ser testemunhas sem que Deus lhes tenha dado o Espírito prometido?

Também se descreve o Espírito como “penhor da nossa herança”. Isto é ainda mais difícil de situar na opinião que, sobre o ser selado, tenha o Dr. Lloyd-Jones, sendo que ele disse (e o declarou muito bem), que o penhor é tanto o compromisso que a herança será dada na primeira entrega da própria herança. É difícil crer que existam cristãos a quem Deus não lhes tenha dado tal promessa, nem a primeira entrega.

Igualmente, a ideia que é transmitida pelo termo “selo” faz difícil crer na doutrina que é oferecida atualmente. Basicamente, o selo é a marca de propriedade. É o atestado de que uma pessoa pertence a Deus. Somente os que são cristãos são atestados desta maneira. Mas, presumivelmente, todos os cristãos são atestados. De que outra maneira pode serem conhecidos como pertencentes de Deus? Deus tem possessões sem atestar, ou sem autenticar? Ademais, o Dr. Lloyd-Jones parece não ter enfrentado a pergunta se o ser selado com o Espírito Santo é objetivo ou subjetivo. Significa que o Espírito nos sela (por exemplo, dando-nos um grau especial de segurança)? Ou, que o próprio Espírito é o selo? Tudo aponta na direção do último. O penhor do Espírito, por exemplo, é a garantia que dá o Espírito, e o batismo do Espírito não é o batismo que dá o Espírito, senão que o batismo consiste em receber o Espírito o qual o dá Cristo (At 2:33). Da mesma maneira, o selo do Espírito não é o selo que dá o Espírito, senão o selo que é o Espírito. A pessoa que desfruta da morada do Espírito é por esse meio, testificando como pertencente a Cristo. A pessoa que carece da morada do Espírito não pertence a Cristo.

 

O argumento a partir de biografias

O Dr. Lloyd-Jones trata de reforçar o seu argumento com numerosas citações biográficas de homens como Flavel, Wesley, Edwards, D.L. Moody, Christmas Evans, e inclusive Charles Finney. Todavia, isto somente prova que estes homens tiveram, após as suas conversões, vigorosas impressões do amor de Deus. Isto não prova que estas experiências são idênticas com o que o Novo Testamento quer dizer com o ser selado pelo Espírito, nem sequer que estes homens consideraram que as suas experiências era o selo do Espírito.

Tomemos por exemplo a tão conhecida experiência de Jonathan Edwards, quando em suas próprias palavras disse: “sou da opinião que, para mim, foi extraordinária a glória do Filho de Deus.” É muito difícil ver como esta explicação possa servir ao propósito do argumento do Dr. Lloy-Jones. Na realidade, não era uma experiência definitiva, de uma vez para sempre: “em muitas outras ocasiões tive opiniões da mesma natureza que tiveram os mesmos efeitos.” Entretanto, por mais que a experiência tenha sido extraordinária, não foi num sentido extraordinário de segurança (que é como o Dr. Lloyd-Jones descreve o ser selado). O efeito que produziu não foi num sentido do amor de Deus para o próprio Edwards, senão “um ardor da alma de ser esvaziado e aniquilado, de lançar ao pó, e ser somente de Cristo”. Mais importante ainda, Edwards não define esta experiência como o ser selado com o Espírito, e certamente não o poderia fazer porque as suas opiniões sobre este tema eram dramaticamente opostas à que estamos considerando. Edwards lutou duramente contra a idéia de que o ser selado era alguma classe de revelação ou sugestão imediata, mas, pelo contrário, sustentou que isto era o efeito da graça no coração, que deixava uma impressão divina pela qual se poderia inferir nossa filiação. Deus imprimiu a sua imagem em nossa alma, e essa imagem foi o seu selo. Isto é exatamente o que o Dr. Lloyd-Jones não crê.

 

Como isto se diferencia do pentecostalismo?

Não somente é preocupante as detalhadas conclusões da obra de Lloyd-Jones, senão que em toda a sua orientação nos enche de pressentimentos.

Por exemplo, como difere tudo isto do Pentecostalismo? Pois achamos a mesma doutrina do Batismo no Espírito e a apelação às mesmas passagens do livro de Atos dos Apóstolos, e embora o Dr. Lloy-Jones não ensine que o batismo no Espírito seja sempre atestado mediante o falar em línguas, tão pouco critica em nenhum momento a moderna pretensão do dito dom. Isto é ainda mais notável quando se considera a sua afirmada e vigorosa condenação do Calvinismo não experimental ou ortodoxia morta. A ameaça implantada por isto, não é tão perceptivelmente tão séria como a que representa o movimento Carismático, o qual parece fundir ao evangelicalismo inglês uma onda de hedonismo fútil. A necessidade do nosso tempo é de confrontar o novo Fineísmo.[4] Mas em vez disto, a mais alta figura da teologia reformada fala de tal maneira que os carismáticos o reivindicam como um deles (e com alguma plausibilidade).

Em outro nível, as opiniões implantadas pelo Dr. Lloyd-Jones implicam numa séria desvalorização do cristão comum, o qual é descrito como alguém que lhe falta o batismo no Espírito Santo, o selo do Espírito e o penhor do Espírito. Qualquer que seja a norma de medida, estes são sérios defeitos e, todavia, segundo se alega, estes caracterizam a maioria dos cristãos. É impossível harmonizar este ponto de vista com o ensino do Novo Testamento. No Pentecostes cada cristão de todos os lugares do mundo, foi batizado com o Espírito Santo. Segundo Colossenses 2:10 cada crente está completo em Cristo, e segundo 2 Pedro 1:3 recebemos “todas as coisas que pertencem a vida e a piedade” em nossa experiência primária do poder salvador de Deus. A posição do cristão comum (unido à Cristo), que tem comunhão com o Pai e que é habitado pelo Espírito, é gloriosa, e o intento de diminuir-lhe o valor é equivocado. O Dr. Lloyd-Jones trata de criar um sentido de necessidade, e até um sentimento de culpa e insuficiência que não deveria existir. Ele dirige a ambição do cristão numa direção errada, convencendo-lhe de que sem esta experiência especial o crente é gravemente defeituoso, e que a maior preocupação de sua vida deve ser o de consegui-lo. Todavia, em lugar disto, o selo do Espírito, tal como a presença de Cristo, constitui a pressuposição de nossas vidas cristãs. Não é algo que buscamos, senão algo com o qual começamos, e o que buscamos na consolação, à luz e na sabedoria do Espírito é servir o corpo de Cristo. Não é difícil imaginar a confusão que se levanta quando os cristãos consomem as suas vidas buscando o que na realidade possuem, e retardando o seu serviço até que o cheguem a ter.

A distinção é, inclusive, mais ambiciosa quando se aplica aos pregadores. Está se tornando muito comum na atualidade falar dos que tem o batismo e os que têm o fogo, e contrastar estes seres privilegiados com o resto de nós. Mas como se deve definir esta diferença? Ou, porque a sua prédica tem um poderoso impacto de suas emoções? Ou, porque eles têm mais êxito evangelístico? Definitivamente, o pregador tem que ser espiritual, não somente deve gozar da morada do Espírito, mas possuir os dons especiais necessários para a pregação. Deve ser apto para ensinar. Deve ser veemente. Deve ter a sabedoria do alto. Mas isto necessariamente não faz um homem eloqüente e comovedor. Muito menos garante êxito evangelístico. Para que exista êxito o Espírito deve encher não apenas o pregador, mas também sobre o mundo, convencendo-o do pecado, do juízo e da justiça. Nenhuma experiência pessoal do pregador pode garantir a cooperação divina. Um homem pode ser a pessoa mais espiritual da terra, e, todavia, ter pouca benção em seus esforços evangelísticos. Assim, foi com Isaías, Jeremias, e inclusive com o Senhor Jesus. Ele tinha o Espírito sem medida, todavia, ao final de seu ministério, o número de todos os seus convertidos pode se reunir numa só casa. Contra o novo culto dos selados e batizados, reivindicamos para os que trabalham com os pobres, com os que falam com dificuldade, os gagos para que possam cumprir um ministério de reconciliação.

Mas o mais desconcertante de todas as coisas é que, na nova ênfase do Dr. Lloyd-Jones, temos uma volta à teologia do algo mais, a qual em suas várias formas tem causado problemas para a igreja cristã. Para os gálatas era Cristo mais a circuncisão. Para o Catolicismo medieval era Cristo mais os sacramentos. Para Wesley era Cristo mais a plena santificação. Para o Dispensacionalismo é Cristo mais um milênio terreno. Para o Pentecostalismo é Cristo mais o batismo no Espírito. Atualmente, a partir do seio da própria teologia reformada vem à mesma reivindicação pelo algo mais, não meramente para o crescimento, ou o progresso, senão por uma nova experiência definitiva que nos coloque numa categoria especial.

Rejeitamos todo o conceito do algo mais. Não há nada de ruim com as nossas fontes, nem há promessa alguma de uma experiência da qual fluam automaticamente a eficácia e o avivamento. Deixemos que os cristãos e os pregadores comuns trabalhem na reforma da igreja, edificando os altares de Deus que estão caídos. Deixemos que percebam que nunca poderão estar tão cheios, de modo que não necessitarão encher-se novamente, uma e outra vez. Que percebam que nenhuma experiência pode colocar em sua jurisdição e administração o poder que abre os corações. Esse poder está sempre em Deus, inclusive no caso do mais batizado pregador, e o mais glorioso avivamento.

Pelo fato de sermos muito comuns, está a nossa plenitude em Cristo. Nessa confiança, pensemos a nossa salvação, individual e corporativa, e as portas do inferno não prevalecerão contra nós.

 

NOTAS:

[1] Publicado pela Editora Fiel.

[2] Publicado pela PES.

[3] Publicado pela PES.

[4] O autor faz menção aos ensinos e ênfases de Charles Finney sobre o emocionalismo como atestando a verdadeira obra do Espírito Santo (nota do tradutor).

 

Donald Macleod, El bautismo com el Espíritu Santo (San José, CLIR, 2002), pp. 74-82.

Traduzido por Ewerton B. Tokashiki

Comments

G-BJPJGFD6S2