O calvinismo e a cultura

Por H. Henry Meeter[1]

 

O dicionário define a palavra cultura como “o ato de cultivar, ou o resultado desta cultivação.” A continuação explica o que se entende por esta cultivação: implica educação, qualquer disciplina ou desenvolvimento que se traduza num melhoramento – seja nas plantas, nos animais ou nos seres humanos -. Dai que se pode falar da “cultura das plantas, das flores, das abelhas”, etc. Todavia, num sentido estrito o termo cultura se aplica à cultura humana, e em referência a “qualquer cultivo dentro da raça humana que resulte no melhoramento, esclarecimento e disciplina, e que se adquire pela educação moral e mental, pela civilização, por uma superação dos usos e costumes, etc.”

A palavra é de uma significação muito ampla. Nós a usarmos, na maioria dos casos, em sua significação restrita e referida somente aos seres humanos. Mas, ainda aqui a palavra é susceptível de diferentes significações. Para alguns a palavra não vem a significar mais do que um mero refinamento. Assim quando alguém começa a trabalhar num escritório, pelo contato com a sociedade que o rodeia, adquire certo grau de refinamento, aprende algumas expressões seletas, desenvolve modos agradáveis e se veste segundo a última moda. Esta pessoa será catalogada como culta.

Estas definições resultam insuficientes, serem fragmentárias e se centrarem no melhoramento de tão somente um aspecto da vida humana. “A pessoa verdadeiramente culta é aquela que amadureceu completamente em todos os aspectos de sua vida, e deste modo, pode levar a termo o propósito pelo qual foi criada”.[2]A cultura humana, consequentemente, tem a ver não somente com o desenvolvimento de um determinado aspecto da vida, mas com todos.

É importante notar que a cultura implica sempre na ideia de melhoramento e não somente em desenvolver. Topsi no conhecido livro “A Cabana do Tio Thomás”, nem sequer podia pronunciar corretamente a partícula afirmativa “sim”, pois não era culta. O conteúdo verdadeiro da cultura, ou, melhor dizendo, os instrumentos da mesma, não são meramente mecânicos nem de natureza química, mas invadem a esfera da ciência, da arte, da técnica, da ética, da leia, e do estado, etc.; são sempre fruto da mente humana. No entanto, poderíamos dizer que a cultura é a atividade da mente humana aplicada as forças da natureza, e a elevação da criação, pelo uso destes poderes humanos, a uma meta mais alta e nobre. A cultura, resumindo, é o cumprimento daquele mandato dado ao homem, o rei da criação, por seu Criador no jardim do Édem: “enchei a terra, e sujeitai-a; dominai sobre ela” (Gn 1:28). O homem foi feito à imagem de Deus. Assim, como Deus é soberano sobre o universo e opera muitas e grandes maravilhas em sua criação, assim também, o homem – portador da sua imagem – recebeu o poder de exercer controle sobre a natureza: “dominai a criação, e desenvolvei as muitas possibilidades que há nela, e também se encontram em vossa natureza”. A cultura é a realização deste mandato dado por Deus. Na tarefa cultural o homem tem que explorar e servir-se das matérias primas deste universo, e desenvolver a um plano mais nobre e elevado as possibilidades destes recursos. Uma vez conseguindo este desenvolvimento, o homem deve por a totalidade de sua produção cultural aos pés daquele que é o supremo Rei da criação e por quem todas as coisas foram feitas.

 

A CULTURA NUM MUNDO SEM PECADO

Se o homem tivesse continuado no Paraíso e evitado a queda, ainda assim teria diante de si o desenvolvimento de um mandato cultural. Para ele a cultura significaria a totalidade da tarefa a desenvolver naquele mundo colocado sob seu senhorio. Ele teria que conduzir a sua missão cultural em três direções: com respeito à natureza, consigo e com a humanidade. Com relação à natureza teria que exercer controle sobre ela, e extrair dela as suas possibilidades escondidas. Com relação a si, o homem teria que desenvolver a imagem divina de que era portador; e, como membro de uma sociedade humana teria que colaborar com a tarefa comum de melhorar as vastas possibilidades da humanidade, e que isoladamente o indivíduo não pode conseguir.

Consideremos a missão cultural do homem no Paraíso e pressupondo o que aconteceria se ele não houvesse caído no pecado, e deste modo chegaremos a ter um conceito mais exato da tarefa cultural do homem.

O trabalho seria, sem dúvidas, o primeiro mandato cultural, pois a ideia de desenvolvimento implícita no termo cultura. Desenvolver é levar a termo as possibilidades para o bem e fazer com que a criação – inclusive o homem – alcance o seu mais alto grau. E isto, naturalmente, não pode obter-se sem um esforço pessoal: sem o trabalho. Não é uma mera mudança de dedicar-se ao trabalho, mas um melhoramento – de outro modo não seria cultura -. Todo trabalho que melhora e desenvolve as possibilidades para o bem, contribui de alguma maneira para a grande missão da cultura.

Básico e primordial nesta tarefa cultural seria também o cultivo da terra e, que é conhecida como agricultura. Semeando e fomentando as suas possibilidades de colheita, é como o agricultor chega a dominar a terra. Juntamente com a agricultura temos de mencionar o comércio. O comércio abre caminho aos frutos da terra e faz com que eles cheguem aos demais homens, e deste modo todos possam desfrutar dos produtos da criação. Isto se obtém melhor e mais facilmente quando os homens trabalham segundo a sua vocação, e não separadamente. Em segundo lugar, vem a indústria, que através da máquina transforma estes produtos. Este tipo de trabalho também teria lugar no mundo sem pecado. Por meio da máquina o homem é capaz de desenvolver, de modo rápido e eficaz, as possibilidades latentes na natureza. Todos estes labores são essenciais para o cumprimento do mandato cultural, sendo o homem designado pelo Criador.

Há outras classes de trabalho em que a atividade da mente humana predomina, e nas que o labor físico é comparativamente menor. Geralmente, quando falamos de cultura nos referimos a certas esferas onde a maior atividade corresponde à mente. Isto é natural, pois a cultura é sempre triunfo da mente sobre a natureza, especialmente sobre as suas forças químicas e mecânicas. Ao falar da cultura nos referiremos, especialmente, às manifestações da ciência e da arte; sendo particularmente no plano científico e artístico onde podemos observar os maiores triunfos da mente humana sobre a natureza.

 

CIÊNCIA E CULTURA

Consideremos, em primeiro lugar, o mundo da ciência. Não nos referiremos a nenhuma ciência em particular, senão que aludiremos à ciência em geral – sendo as ciências naturais, humanidades, ou qualquer outra que possamos ter em mente -. Em todas elas vemos que mente humana se ocupa em examinar as obras da criação: ora o corpo, ou a alma, ora as coisas materiais ou as espirituais – destacando, em sua investigação, a natureza de cada objeto, sua ideia, sua relação com outros objetos, a classe a que pertence e de que maneira vem a ser parte de um mundo organizado -. A missão da ciência nos recorda o labor designado por Deus a Adão, quando fez que os animais passassem diante dele. A tarefa de Adão não era outra que a de descobrir a natureza de cada animal – sua ideia essencial – para si poder nomear segundo a sua natureza. A ciência tem o mesmo procedimento.

A ciência não cria seus próprios objetos, senão que tomando as coisas que Deus criou, descobre e examina as suas ideias fundamentais, assim como as suas relações, para em seguida classifica-las adequadamente. A ciência continua, pois, fazendo o que Adão fez no princípio da criação: estuda as coisas e, segundo a sua espécie, as categoriza. Somente a filosofia difere, em seu procedimento, do trabalho das outras ciências. Enquanto todas as demais ciências têm um campo específico em que ocorre a investigação, a filosofia, a chamada ciência dos universais, se esforça por determinar como as ciências particulares se agrupam num todo geral. A filosofia, se fosse correta em suas conclusões, chegaria a identificar-se com as afirmações da Bíblia sobre a natureza do universo.

Outro aspecto da tarefa da ciência é de caráter mais prático. Não somente a ciência trata de descobrir a ideia de um objeto, com também se esforça por mostrar o seu valor para esta vida; ou seja, procura fazer dela uma ideia prática. Uma vez que o cientista descobre a essência de algo, a sua meta imediata é a de controlar e fazer útil ao homem o seu descobrimento. De si mesmo o pensamento abstrato não reporta nenhum benefício; é necessário que, de algum modo, chegue a adquirir valor na vida. A ciência alcança a sua mais alta utilidade prática – ao lado de sua meta e culminação -, uma vez posto os seus achados e descobrimentos aos pés do grande Senhor do universo: Deus.

 

CULTURA E ARTE

Há outra esfera em que o domínio da mente sobre as forças da natureza se manifesta de um modo proeminente: o mundo da arte. Enquanto que a missão específica da ciência é a de descobrir as ideias das coisas, a arte pretende dar à ideia uma forma visível e sensorial. A arte a ver com os símbolos, a sua tarefa é a de manifestar de forma visível à ideia, ou imagem que o artista chegou a conceber da natureza, a fim de que possamos apreciá-la melhor. Mas a missão do artista não é somente mostrar a natureza na variedade de suas formas, senão que a sua missão específica é a de proporcionar-nos uma representação ideal de como deveria ser. Em sua obra de arte o artista nos oferece uma concepção elevada do que algo na natureza poderia chegar a ser uma vez que desenvolvidas as suas possibilidades. Consequentemente, a arte alcança a sua missão cultural ao mostrar em sua plenitude e maturidade as forças latentes da natureza.

Inicialmente começamos falando da arte possuindo tão somente o seu aspecto prático ou utilitário, ou seja, a sua manifestação nalgum trabalho técnico e obra de artesanato. Mas, com mais frequência ao falar da arte nos referimos às belas artes, ou seja: a arquitetura, escultura, pintura, música e poesia.

Reparemos em cada uma dessas manifestações artísticas e vejamos como através delas o artista capta alguma ideia formosa da natureza, e chega a dar-lhe uma forma visível ou simbólica. Primeiramente tomemos a arte da arquitetura. O artista concebe em sua mente uma forma estética bela à que da realidade material no edifício que levanta – uma catedral, por exemplo -. As catedrais da Europa são expressão das elevadas e formosas concepções que surgiram nas mentes de arquitetos de grande talento. Quanto àquelas estruturas que por serem de linhas vulgares e desenho basto não produzem em nós nenhum sentimento artístico elevado, não as classificamos de artísticas; pois, para sê-lo teriam que encarnar materialmente algum pensamento formoso. O escultor, em sua arte, faz o mesmo: sobre o bloco de mármore aplica o seu formão e consegue expressar o que está em sua mente: a forma de um homem ou qualquer outra imagem. O valor artístico da obra escultórica depende do grau em que esta chega à ideia que intenta expressar. Do mesmo modo que o pintor plasma sobre a paisagem que tem diante, a forma humana, ou qualquer ideia que extrai de sua mente e deseja exteriorizar. À medida que consiga, dependerá a avaliação artística de sua obra.

Na arte musical apreciamos idêntico processo estético. De modo sensorial e simbólico o músico trata de fazer chegar a outros a intuição estética captada por seu espírito. E também aqui, a medida que consiga – através da melodia musical – exteriorizar a sua intuição, poderemos avaliar artisticamente a sua produção. E quanto à poesia, e contrariamente ao que sucede com o escultor – que necessita do mármore -, o do pintor – que precisa de tela e de seus pincéis -, o poeta não necessita de meios materiais – a não ser que assim consideremos a linguagem de que se serve -. O poeta através da linguagem expõe a imagem de seu espírito; a sua arte, sem dúvida alguma, vem a ser mais conceitual, e mais espiritual.

 

OS EFEITOS DO PECADO SOBRE A CULTURA

Consideremos do mesmo modo como o pecado afetou o labor cultural do homem, e de que maneira a cultura se relaciona com o cristianismo. O pecado não tornou desnecessária ou supérflua a tarefa cultural do homem. O pecado não pode fazer com que as exigências de Deus se tornem supérfluas; tão pouco pode frustrar nenhum dos propósitos divinos. Sobre nós pesa a mesma obrigação de guardar as leis de Deus que pesava sobre Adão; e isso é assim, ainda que levando em conta que como resultado de nossa escravidão do pecado, não poderemos guarda-las.

O mandato divino de dominar a terra e cultivar as possibilidades, ou seja, o mandato cultural tem tanta vigência hoje como quando Deus o deu. De alguma maneira Deus fará que a meta cultural se realize completamente e as possibilidades de uma natureza cheguem ao seu cultivo; e para isto, ou bem se servirá do homem pecador, ou recorrerá a outros meios.

Mas o pecado tornou duplamente difícil a tarefa cultural. Antes do pecado não havia algo que impedisse esta tarefa; mas depois de sua aparição a terra em que o homem deveria exercer o seu domínio e alcançar a sua meta cultural, se encontra sob a maldição de Deus. Os espinhos e abrolhos, de que falam Gênesis, são símbolos de todo um conjunto de forças destrutoras que operam na natureza e que originalmente não existiam. Em vez de uma harmonia, em que todas as ordens da natureza e da submissão pacífica da terra ao homem, agora temos de enfrentar infindáveis dificuldades, pois a natureza está transtornada. Consequentemente, a tarefa cultural do homem resulta muitíssima mais difícil.

Entretanto, o homem também experimentou alguma mudança. Não mais possuí a imagem de Deus naquele grau de antes; perdeu o conhecimento necessário para desenvolver claramente de sua tarefa cultural. Em vez de obter o seu domínio a metas mais elevadas, com muita frequência o homem obra em seu próprio prejuízo; em vez de ser o rei que governa sobre a natureza, muitas vezes, se converte em seu escravo, e é incapaz de desenvolver aquele poder que uma vez teve para controlar as forças da natureza. Mas não somente o indivíduo carece dos recursos necessários para levar a termo com êxito a tarefa cultural, mas também a humanidade, que em sua totalidade, se vê incapaz de consegui-lo. A tarefa cultural em que a sociedade organizada deve ocupar-se por ação conjunta de seus componentes, se vê atrapalhada por infinitos conflitos entre os homens, e faz com que seja sumamente difícil a cooperação entre eles: o que um edifica, o outro abate. Desde a queda, a humanidade é um campo de interesses e propósitos conflitantes.

De tudo isto se pode inferir que onde o pecado se converteu no fator decisivo, o desenvolvimento cultural da criação nunca alcançará um grau harmônico e completo de maturidade. O pecado destrói e atua em detrimento do desenvolvimento cultural da criação de Deus.

Na ciência, na arte, na ordem moral da sociedade, e em qualquer outra esfera, a influência do pecado redundará num processo de divisão, num entenebrecer da mente e num falseamento geral dos ideais. Somente quando Cristo eliminar os efeitos do pecado poderá a cultura alcançar a sua plenitude. Com a sua vinda Cristo fará com que a terra se veja livre de sua maldição e retorne a ordem natural da criação; ele renovará a imagem de Deus no homem e estabelecerá de novo a harmonia entre os homens, entre estes e a natureza e, entre a criação e a vontade de Deus. Cristo não somente restaurará a criação, mas também, trará a luz todas às possibilidades e fará com que cheguem a desenvolver a um nível muito mais alto do que o que somos capazes de imaginar.

Se é certo, pois, que o pecado tende a eliminar e diminuir o processo cultural, temos de concluir que não há possibilidade de cultura naquelas terras pagãs onde não se reconhece a obra redentora de Cristo? De modo algum. Contudo, temos que dizer que, efetivamente, seria assim se o pecado fosse a única força em atividade. Mas aprendemos ao estudar a graça comum, inclusive em terras pagãs, Deus faz que se manifestem certas forças que, de alguma maneira cheguem a contrapor à força destrutora do pecado, e fazem com que o bem cultural se manifeste de muitas maneiras. Como prova disto, somente temos que observar o alto grau de civilização alcançado em muitas terras pagãs da antiguidade – especialmente na Grécia e Roma – onde vemos que o pecado não pode destruir o florescente desenvolvimento cultural destes povos. O que diremos das sublimes ideias que inicialmente afloraram em Platão, Aristóteles e nos escritos dos antigos trágicos? Que obras de arte mais maravilhosas, especialmente no campo arquitetônico e escultórico! E que tão grandes lógicos e matemáticos não descobrimos no antigo mundo clássico![3]

Mas por mais desenvolvida fosse o nível da cultura destes povos, ainda assim descobrimos, vez e outra, o seu fracasso, especialmente em dois sentidos. Ao examinar as culturas da Assíria, Babilônia, Grécia ou Roma, percebemos que estes povos foram incapazes de coroar o ideal da verdadeira cultura; e ainda, em suas culturas encontra a semente da decadência. Uma vez estudamos a atitude destes povos em relação a alguns fatos básicos com os que a cultura tem a ver, tais como o homem, a natureza e a sociedade, concluímos que não alcançaram o ideal da verdadeira cultura. Qual era o seu conceito do que é o homem? Nem mesmo os gregos chegaram a crer na igualdade de todos os seres humanos; para eles a mulher era inferior ao homem. Muito menos consideravam a todos os homens como ocupando um mesmo plano humano, já que a condição de escravos, segundo eles, era inferior; somente os cidadãos livres eram considerados como verdadeiramente humanos; mas mesmo aqui terminavam em divisões, pois nem mesmos os livres eram considerados como verdadeiros homens a não ser que fossem gregos: somente os gregos eram verdadeiros homens. Esta ideia tão pobre do homem é a que prevalece em todas as terras pagãs. Bem se disse que foi em Jerusalém que pela primeira vez se descobriu o valor do indivíduo. Ele sabia qual era o preço da alma humana. Mas, os gregos, além disso, faziam depender o valor dos cidadãos livres da relação que estes sustentavam com o estado. Que conceito eles tinham da humanidade e da relação e convivência entre os homens? Os gregos costumavam dizer: “somos gregos e os demais são bárbaros”. E com isto não foram os únicos; também outros povos chegaram a mostrar o mesmo tom depreciativo com os demais, enquanto que no seio de sua sociedade alimentavam numerosas distinções de classes. Jamais chegaram a alcançar a ideia bíblica de que Deus, de um só sangue, fez toda a linhagem humana. Tão pouco a ciência, e por importantes que fizeram os seus descobrimentos no decorrer do tempo, conseguiram descobrir o propósito do homem para esta vida ou para a eternidade, nem o alvo que Deus destinou para a criação.

Além disso, a cultura pagã levava em si a semente de sua própria ruína. Inclusive nos tempos de mais fecundo florescimento encontramos na antiga cultura a amarga raiz do pecado. Juntamente com a colheita e armazenamento dos abundantes frutos de uma cultura esplêndida, tanto na ciência, a arte e a vida social, se ocorria o terrível câncer de uma imoralidade incontrolada – ainda nos círculos mais elevados – e que era agouro certo de sua iminente ruína e destruição. Não é de se estranhar, pois, que uma após outra, as diferentes culturas sucumbiram. Conta-se que em Santa Elena, Napoleão disse: “Alexandre, César, Carlos Magno e eu, também chegamos a fundar impérios, mas sobre o que descansa a essência da nossa criação? Sobre a força. Somente Jesus fundou o seu império sobre o amor e, todavia, hoje ainda milhões morreriam por Ele.” E isto é assim não somente em relação aos impérios, mas também, com respeito à cultura geral. Somente aquela cultura que está fundamentada em Cristo subsistirá. Em nosso tempo parece como se a cultura da Europa estivesse a ponto de desmoronar-se, e está cada vez afastando-se do Evangelho e dos ideais, do poder, da graça e os mandamentos de Jesus Cristo. Todavia, acontece o que for, a Igreja, o reino de Deus e tudo o que está edificado sobre a Rocha Eterna, permanecerá para sempre.

 

O CRISTIANISMO E A CULTURA

O que dissemos acerca do fracasso da cultura pagã revela o quão necessário é o cristianismo para a civilização. Seria errôneo dizer que a cultura não pode existir aparte do cristianismo; sendo que, como temos visto, de fato existiram culturas, e às vezes, alcançaram a um alto nível, entre muitos dos povos antigos. Mas para que a cultura chegue a coroar a meta que lhe é própria e possa desenvolver os seus propósitos segundo a finalidade da criação, deve recorrer como guia aos princípios da revelação especial de Deus. Em segundo lugar, se a cultura deseja livrar-se da mesma ruína que assolou as antigas nações pagãs, ela terá que depender do poder moral do cristianismo.

O cristianismo se opõe à cultura? Há muitos que assim afirmam e, aparentemente, com razão. O estudo da história antiga, medieval e moderna, revela que no curso dos séculos são muitos os que desde o mundo da cultura mostraram animosidade contra o cristianismo. De fato, alguns foram de fato através de um criticismo polêmico e com teorias filosóficas diversas; outros mostraram a sua oposição no campo social, industrial e político; inclusive, outros mostraram a sua animosidade no campo de batalha e, lutaram com o propósito de esmagar religião cristã.

É interessante notar como nos círculos políticos e sociais – além de outros mais – os homens do mundo, inclusive os de posição elevada, dão amostras de profundos desacordos; mas, no momento em que o cristão faz asserções sobre a sua religião, estes homens, que entre si possuem tantas diferenças, do mesmo modo que Herodes e Pilatos, imediatamente dão as mãos e fazem causa comum contra os perigosos cristãos. A oposição que na Holanda, e também na Alemanha, se faz ao partido cristão constitui um exemplo eloquente disto. Recordemos que a oposição da Alemanha nazista ao cristianismo não se devia a uma falta de cultura, pois este país figurava como principal dos países cultos. Individualmente os alemães eram mais cultos que o que podemos ser atualmente. Então, não está a cultura em oposição ao cristianismo?

Alguns grupos cristãos chegaram a supor que sim. Não poucos fundamentalistas hoje em dia assumiram esta posição. Por isso, a consigna nalguns destes círculos como sendo: “Não busqueis as vantagens da cultura, nem os misturem na sociedade intelectual; esqueçam-se dos centros da ensino superior; nem estudeis para médicos, advogados ou químicos; não se envolvam com política, nem soliciteis empregos estatais: tudo isso se opõe a vossa fé cristã. Separai-vos do mundo e juntai-vos com a sociedade dos cristãos e salvai, assim a vossa alma para a eternidade; desentendei-vos das tarefas da cultura.” Não é necessário dizer que estas pessoas na realidade propuseram uma separação radical entre o cristianismo e o mundo da cultura; para eles a cultura deve ser abandonada para os homens do mundo, aos não cristãos. Sobre este particular a posição da Igreja Romana é algo diferente; mantém que os frutos da cultura – num plano natural – são bons, desde que se submetam ao controle e direção da Igreja.

Nós, como calvinistas, temos que defender uma posição mais difícil, mas também, mais bíblica. Onde a cultura produz frutos positivos – seja na Grécia, na Roma antiga, ou entre os incrédulos de qualquer parte – precisamos reconhecer que estes frutos são resultado da influência divina manifesta entre estes povos, apesar da sua disposição pecaminosa. Sem esta influência divina, o pecado, longe de edificar, destruiria toda a criação. Então, onde descobrirmos estes frutos da graça comum de Deus, devemos nos apossar deles e, agradecidos, usá-los para o louvor e para a vinda de seu Reino. Além do mais, como cristãos pesa sobre nós a tarefa de participar na missão cultural do mundo; não podemos nos retrair, pois também a nós chega o mandamento de encher e dominar a terra.

Consideremos que nas sociedades desenvolvidas com frequência se utiliza os frutos da cultura para fins perversos contrários ao cristianismo, o fato é que, em si a cultura favorece o cristianismo. Pensemos de maneira a cultura contribuiu para a extensão do Evangelho nos tempos apostólicos. Dela se beneficiaram Paulo e seus cooperadores para falar aqueles a quem levavam o Evangelho; pensemos também na vantagem que significava para eles a malha de estradas romanas, a unidade linguística do império e os numerosos benefícios daquela administração política. Recordemos a ênfase de Calvino dava àqueles que estudavam para o ministério em Genebra, que adquirissem primeiramente uma ampla formação – tal como a que ele teve -. Se alguém possui pouco dos benefícios da cultura, o resultado será em detrimento da causa do Evangelho.

Mas não somente a cultura redunda em benefício para o cristianismo, bem como por sua vez, reporta aos mais altos benefícios da cultura. O cristianismo representa o único fator através do qual a cultura pode manter a viva esperança de conseguir a sua missão e alcançar o seu ideal genuíno. É certo, por outra parte, que muitos, em círculos culturais não cristãos, se mostram contrários ao cristianismo; mas isto se deve ao seu coração perverso e não à cultura; sendo que a cultura não é além de outro nome para designar a tarefa que pesa sobre a humanidade: a desenvolver os materiais brutos deste mundo – não somente na natureza, como também no homem – e colocar em descoberta as grandes possibilidades inerentes na criação e usar estas segundo o propósito que Deus estabeleceu. Um grande erro apreciável em muitas pessoas cultas não crentes, é o de que ainda que eles descubram as possibilidades, ou seja, os poderes que lhes brindou o desenvolvimento cultural do mundo, estas não chegam a descobrir o seu uso apropriado. Ocasionalmente fazem um mau uso destas descobertas e os dirigem para propósitos egoístas e perversos, e não para o serviço de Deus e ao próximo. Somente o cristianismo descobre os propósitos verdadeiros da cultura; e apenas no cristianismo onde se oferece ao pecador o poder regenerador do Espírito e pelo qual poderá canalizar esta sua missão cultural à meta genuína.

Chegará o dia quando a obra redentora de Cristo terá pleno cumprimento sobre esta terra; das cinzas deste mundo surgirá um novo universo em que as possibilidades para o bem se incrementarão num grau inusitado. Uma humanidade gloriosa com uma cultura perfeita – que o olho nunca viu, nem a mente jamais imaginou – encherá a terra. Ao contemplar este mundo futuro e o seu desenvolvimento perfeito, uma vez mais, percebemos o quão equivocados estão os que consideram a cultura e o cristianismo como inimigos. Na realidade, o triunfo da cultura somente virá através do cristianismo e de seu Cristo. Assim, rendamos a Cristo toda a glória, pois ele também é Rei da cultura. Portanto, pesa sobre nós a obrigação de esforçarmos com todo o nosso ser, e sobre um fundamento cristão, em prol dos ideais cristãos, a fim de que nas respectivas esferas de nossa vocação, Cristo seja reconhecido como Rei da cultura. Este é o alto ideal cultural que nos inspira como calvinistas.

 

NOTAS:

[1] H. Henry Meeter, Doutor em Teologia, foi presidente durante 30 anos do Departamento Bíblico do Calvin College, Grand Rapids, MI. Nota do tradutor.

[2] Herridge, Wm. T., Article on Culture, in The Presbyterian Review, vol. IX, p. 389.

[3] John Calvin, Institutas, IV.2.15.

 

Extraído de H. Henry Meeter, La Iglesia y el Estado (Grand Rapids, TELL, 1963), pp. 75-91. Este livro originalmente foi publicado sob o título de THE BASIC IDEAS OF CALVINISM.

Traduzido por Ewerton B. Tokashiki

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