Milagres

Por Gordon J. Spykman

 

Durante mais de um milênio os ensinos referentes ao mistério dos milagres foram mantidos, seriamente, pela distinção escolástica entre o “poder ordenado” de Deus (potentia ordinata – providência) e seu “poder absoluto” (potentia absoluta – milagres). Entre os pensadores que deduzem a vontade de Deus, com frequência a ideia de “poder absoluto” terminava em puro voluntarismo. Conforme este conceito a mão de Deus se estende direta e imediatamente aos assuntos de nosso mundo. Deus pode fazer qualquer coisa que ele queira fazer, o que acaba sendo uma caricatura do ensino bíblico que afirma “para Deus todo é possível”. Em consequência, os atos da providência de Deus são concebidos de forma arbitrária, inclusive, caprichosa. Tais noções voluntaristas de “poder absoluto” negam os ensinos bíblicos da constância pactual do operar de Deus no mundo, constância que está firmemente fundamentada em sua Palavra mediadora para a criação. Outros pensadores, que acentuam a racionalidade divina, apelam para a ideia de “poder absoluto” para afirmar que Deus pode fazer tudo o que seja consistente com as leis da lógica. Somente são logicamente concebíveis aqueles atos divinos que não envolvem uma violação da regra da não-contradição [1] (inclusive o milagre sacramental da misteriosa transubstanciação do pão e do vinho na eucaristia era, segundo se sustentava, logicamente defensável). No caso de tais demonstrações racionais do poder absoluto de Deus para realizar milagres, se apoia fortemente nos métodos aristotélicos de raciocínio, introduzidos no cristianismo ocidental por Boethius, e canonizados pelas Sentenças de Lombardo, elaborados pelos grandes pensadores da igreja medieval. Essa classe de pensamento foi repudiada pela maioria dos reformadores, mas revivida rapidamente pelo escolasticismo protestante, devido à influência de Beza e Melanchton. Os efeitos tardios desta tradição se encontram, embora que de modo ambíguo, na seguinte definição que Louis Berkhof faz do soberano poder de Deus:

O poder em Deus pode ser chamado de a energia efetiva de sua natureza, ou essa perfeição de sua existência mediante a qual ele é a causa absoluta e suprema … A potentia ordinata pode ser definida como essa perfeição de Deus mediante a qual, ele, pelo mero exercício de sua vontade, pode executar tudo o que se encontra em sua vontade, ou conselho. (Teologia Sistemática, pp. 82-83).

Segundo assume a escolástica tradicional, os poderosos atos de Deus na história são reduzidos a problemas racionais que devem ser resolvidos analiticamente pelo intelecto humano. Os decretos de Deus são acomodados às leis da causalidade, tendo como resultado uma tirania da probabilidade lógica. O próprio Deus é reduzido a maior das premissas que formam um extenso processo de argumentações dedutivas. Desta maneira, o Deus ativo, santo, que guarda o pacto feito com Abraão, Isaque e Jacó, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, desaparece detrás dos argumentos de filósofos e teólogos (Pascal). O teor profundamente espiritual da mensagem bíblica é majoritariamente silenciado. A ideia de “a analogia do ser” (analogia entis), com a sua correspondente teoria do conhecimento, domina a discussão, encerrando a Deus e ao homem numa rede dividida em declarações lógicas. A autonomia da razão humana rivaliza com a revelação divina como princípio operativo. Os pensadores cristãos tornam-se cegos ante o fato de que a própria racionalidade é uma função criada, sujeita as normas e limitações da criatura. Deste modo, a distinção entre Criador e criatura, praticamente, sofre um eclipse total.

Esta tradição escolástica na teologia resulta num número de duvidosos enfoques do tema dos milagres. Alguns afirmam que os milagres são contra naturam; que operam em oposição às normas estabelecidas na ordem da criação. Outros os caracterizam como supra naturam; que esporadicamente, e em diferentes lugares, Deus suspende momentânea e localmente suas “leis naturais” que normalmente governam o curso regular dos acontecimentos, para dar lugar a intervenções sobrenaturais. Ambas posições se sustentam em cosmovisões dialeticamente dualistas. Tal como enfatiza Diemer, quando o homem moderno trata de explicar os milagres apelando ao sobrenatural, na realidade está negando o miraculoso.

Temo que uma quantidade de cristãos contemporâneos, com seu conceito de milagres como sendo atos sobrenaturais, e com seu conhecimento da medicina e psicologia atual, duvidariam do caráter miraculoso das curas relatadas nas Escrituras se as mesmas ocorressem na Europa de hoje… (porque) o sobrenatural sempre foi, é, e sempre será, um asylum ignorantiae em que alguém pode classificar tudo e cada coisa que não se pode explicar. (…) [por isso] estou convencido que de modo algum é necessário estabelecer intervenções sobrenaturais como uma explicação dos milagres que as Escrituras relatam. Todos que usam o sobrenatural como uma explicação, se privam do discernimento que poderiam alcançar enquanto a verdadeira natureza desses acontecimentos (Nature and Miracle, pp. 21-23).

Numa cosmovisão biblicamente dirigida e abrangente, Deus e o mundo não são duas forças em competição. Consequentemente, naquilo que denominamos milagres, Deus não elimina a agência instrumental de suas criaturas. Elas continuam sendo seus servos, que respondem ao poder governativo da Palavra. Por isso, estes poderosos atos de Deus, nem contravém, nem suplantam sua ordem dinâmica, mas estável, para a criação. O potencial para as obras miraculosas é dado desde o começo em e com a permanente Palavra de Deus para a nossa vida em seu mundo. Portanto, os milagres não são “aberturas” sobrenaturais acima e além das ordenanças da criação. Com o seu poder, realizador de maravilhas, Deus não retira o seu cuidado providencial, nem o põe de lado, nem o ignora, nem o coloca na espera, nem anula o seu impacto. A vontade de Deus, revelada nesses assombrosos sinais e maravilhas reside no impacto do poder da própria Palavra. Não há nada de arbitrário, ou caprichoso nisto. Em nossa perspectiva podem parecer como intervenções surpreendentes, inesperadas, extraordinárias da mão de Deus na história. Todavia, para Deus os milagres não são milagres como os percebemos. São apenas a execução de sua vontade, conforme outros caminhos, que a nós parecem não usuais e excepcionais, entretanto, são caminhos que são consistentes com a ordem de Deus. Para citar outra vez a Diemer, “com os sinais e milagres da providência de Deus na história da humanidade não se suplanta nenhuma lei, nem relações estáveis. Mas, que sob condições distintas às ordinárias, bem conhecidas, manifestam-se outros poderes. Isto ocorre quando o homem vive e atua baseado na fé e oração. Assim as capacidades e poderes da natureza são ativados a serviço da vinda do reino de Deus na terra” (Nature and Miracle, p. 16). Por isso, segundo o conceito bíblico:

Um milagre não é sinal de que um Deus, normalmente ausente, se faz momentaneamente presente, … [mas], é um sinal de que Deus, por um momento e com um propósito especial, está transitando por caminhos que normalmente não transita, …um sinal de que Deus, sempre presente em poder criador, está operando aqui e agora, de uma maneira que não é familiar (Lewis Smedes, Ministry and the Miracle, pp. 48-49).

Todas as possibilidades da criação estão ao serviço de Deus. Por isso, os milagres não contradizem, mas, abrem de maneira dramática o poder sustentador e restaurador da Palavra de Deus para a criação. Essa Palavra inclui poderes assombrosos dos que escassamente somos conscientes, que com frequência escapam a nossa atenção, e que na maioria das vezes, estamos insensíveis. Segundo as palavras de Berkouwer:

Não que nos milagres se revele um poder maior que o que se encontra no curso ordinário das coisas. Todas as coisas que Deus trás à existência é obra de sua singular onipotência. Mas nos milagres Deus usa outro caminho que se esperava dele, conforme o curso normal dos acontecimentos. Na Escritura muitas vezes, se pode discernir esta “outra maneira” da obra de Deus, e assim oferece o fundamento do caráter testemunhal dos milagres. Desse modo, se explica a origem do assombro (The Providence of God, p. 231).

Por isso, devemos ser sensíveis ao cuidado providencial de Deus, não somente em nossas experiências “de cima”, ou quando “escapamos com o justo” do ameaçador desastre, mas, também em nossas “rotinas cotidianas”. O maná de Deus no deserto, dificilmente seria mais milagre que o lançar a semente na terra, onde morre, para produzir um novo grão. Sua resposta à oração fervorosa pode ser tão real na terapia médica, como nas dramáticas curas realizadas por Jesus e seus apóstolos. Nas palavras de Bavink:

[a providência] se manifesta não somente e primordialmente em acontecimentos extraordinários e milagres, senão de igual modo, na ordem estável da natureza e nos acontecimentos comuns da vida cotidiana (Gereformeerde Dogmatiek, vol. II, p. 580).

O significado mais profundo e completo da providência especial de Deus, que chamamos milagres, certamente está escondido em mistério. Mas isto também é certo, quanto a sua providência geral. Nenhum aspecto da realidade criada, nenhum acontecimento na história é racionalmente transparente. Racionalismo é uma pretensão de orgulho. Portanto, o significado da profunda dimensão misteriosa dos milagres deve ser mais adorado com reverência, do que discernido com o intelecto. Essa classe de humildade nos “salva tanto do otimismo superficial, que não consegue ver os enigmas da vida, como do orgulhoso pessimismo, que desespera do mundo e de nosso destino” (Gereformeerde Dogmatiek, vol. II, p. 580).

É difícil traçar uma linha demarcatória entre providência regular e os milagres como “a outra maneira” do atuar de Deus na criação. Calvino estabelece uma estreita relação entre estes dois aspectos da providência divina ao comentar acerca dos dois “milagres”, isto é, a detenção do sol nos dias de Josué, e o retrocesso do sol em resposta ao pedido de Ezequias. Estas são suas palavras:

Através destes poucos milagres, Deus tem testificado que o sol não sai, nem se põe diariamente, por um cego instinto da natureza, mas, que ele mesmo, com o propósito de recordar-nos renovadamente do seu favor paternal conosco, governa seu curso. Nada é mais natural que a primavera siga o inverno; o verão a primavera; o inverno o outono; todos ao seu tempo. Todavia, nesta sequência se percebe uma diversidade tão grande e irregular que realmente é manifesto que cada ano, mês e dia é governado por uma nova e especial providência de Deus (Institutes, I.16,2).

Todas as obras de Deus têm um significado profundo, misteriosamente miraculoso. Em consequência, crer na realidade histórica dos milagres é um aspecto permanente da história da fé cristã. A doutrina bíblica da providência e um conceito cristão da história são impensáveis aparte das poderosas obras de Deus, tais como a criação, o êxodo, e a ressurreição, entretecidas integralmente em toda a trama da revelação bíblica.

Todavia, com o começo da modernidade, ocorreu uma mudança radical. Os pensadores do Iluminismo relegaram os milagres a cosmovisão mitológica dos tempos antigos. Esta cosmovisão pré-científica foi declarada como obsoleta. Uma cosmovisão nova estava nascendo. O homem moderno, que finalmente havia chegado à maturidade, rejeita toda a necessidade de uma “hipótese” de providência divina, nem mesmo o mencionar “variáveis” e “desvios” tais como os milagres. O “deus dos espaços vazios” está morto. Porque agora vivemos num universo contido em si mesmo, um continuum fechado de relações uniformes de causa e efeito, um mundo hermeticamente selado pela lei da analogia que exclui fatores cientificamente incontroláveis, tais como a providência, milagres ou uma “mão superior” na história. O criticismo contemporâneo aplicado ao testemunho bíblico, quanto ao que se refere a sinais e maravilhas e milagre, é exposto claramente por Helmut Thielicke. As linhas seguintes são um eco da mente do homem moderno:

…a certeza somente é possível, se a verdade é análoga ao que contém minha estrutura de consciência, como consciência de verdade. Pois, sou um ser racional consciente de meu esclarecimento e maturidade, toda mensagem de verdade que chega a mim, somente pode ser recebida e apropriada por mim, se contém uma verdade racional. Isto significa que uma verdade que somente é atestada pela história, sem ser validada pela razão, é algo meramente descartável. Mas, de outro modo, se é validada pela razão, essa verdade pode ser separada da história que a atesta, uma vez que se tenha percebido. Porque a religião não é verdade, somente porque os evangelistas e apóstolos a ensinaram; eles a ensinaram porque é verdade. Deste modo, tenho meu próprio acesso, autônomo à verdade. Nas etapas imprecisas e imaturas de meu desenvolvimento, talvez, a verdade me chegue primeiro pelo caminho da história. Mas, quando a percebo, e quando a aproprio, sou independente daquele que a transmite e sustento-me sobre meus próprios pés. Quando terminar a educação histórica da raça, somente existirá o evangelho puro e eterno da razão (The Evangelical Faith, vol. I, p. 42).

A ousada presunção, confiada em si mesma, que domina este conceito racionalista do homem e do mundo, próprio do século dezenove, tem sido severamente castigada pelos revolucionários acontecimentos do século vinte. Os pensadores contemporâneos falam com maior cautela, e tem um tom mais tentativo dos assim chamados “resultados seguros do método científico”. São menos absolutos em suas afirmações sobre as “leis fixas da natureza.” Admitem que as coisas parecem serem mais complexas do que haviam presumido anteriormente. Atualmente as noções de contingência, indeterminação, relatividade e inclusive irracionalidade, são expressões comuns nos círculos da erudição. Encontramos sob os efeitos de uma “revolução exemplar”. Às vezes, os cristãos sentem tentados a regozijar-se ante tais sinais de atenuação e retratação na moderna cosmovisão mecanicista-determinista. Talvez, se inclinem a pensar que esta mudança, ao menos ofereça uma leve esperança de obter, outra vez, um pequeno espaço para as obras da providência divina e para os milagres. Como se os milagres existissem graças às deficiências fortuitas da ciência! Quem sucumbe a esta mentalidade negativa, permitindo que a ciência moderna escreva a agenda decisiva, e contentando-se em levantar as escassas migalhas da fé que caem de sua mesa, não podem, senão, esperar com um sentido de temor e tremor as novas explorações científicas. Segundo o expressa Berkouwer:

Aquele que descobre um lugar para a obra de Deus na crise da ciência natural … implicitamente está relativizando esta obra [divina] e tem-na posicionado contra a ordem natural considerando-a como uma realidade autoexistente. Desta maneira, o tema dos milagres sempre estará cercado com os problemas da ciência natural. E se abandonará em sua maior parte a forma bíblica de falar de Deus neste mundo (The Providence of God, pp. 219-220).

Ainda que de forma ambígua, em nosso século pessoas como Barth, Bonhoeffer e outros, contra-atacaram energicamente a hermenêutica histórico-crítico do liberalismo moderno, arraigando numa cosmovisão naturalista-secularista que despojou a revelação bíblica da realidade dos milagres. Isto levou Barth a tomar parte do método radical de desmitolização de Bultamann. Também é bem conhecido o “Sim” de Barth contraposto ao “Não” de Brunner, quanto ao milagre do nascimento virginal. Todavia, como em toda hermenêutica consistente, o método barthiano de interpretar os milagres, encontra o seu contexto de significação em sua peculiar cosmovisão. Nela traça uma tênue linha demarcatória entre “história” e “supra-história”. Consequentemente, distingue entre “milagre” (o evento histórico) e “mistério” (seu significado supra-histórico). Milagres como o nascimento virginal realmente ocorrem, insiste Barth, em oposição a seus mestres modernistas. Todavia, para captar seu significado real, devemos observar além do seu caráter de evento histórico para focalizar seu significado trans-histórico, o mistério da livre e soberana obra de Deus em Jesus Cristo. Por isso, Barth ao tratar do “milagre do Pentecostes” distingue este evento como miraculoso, de seu significado misterioso. Em suas palavras:

O milagre é a forma de mistério. Não pode ser separado dele. Mas, se tem que distinguir e considera-lo de forma separada. O relato do mesmo está relacionado ao mistério, tal como o é, o relato do nascimento virginal, a encarnação operada em seu nascimento, ou da tumba vazia ao mistério da vida de Cristo como Ressuscitado, ou o dos milagres de Jesus à suas declarações messiânicas pronunciadas neles. Aqui, como em toda outra parte, o milagre tem a função particular e indispensável de indicar e ao mesmo tempo caracterizar o mistério, de dar seu sentido e distintivo e de interpretá-lo, tal como deve ser entendido. Aqui, como em outra parte, a forma não pode ser separada da matéria, nem a matéria da forma. Todavia, também aqui, não pode haver dúvida de que o milagre é neste sentido da forma de mistério, da obra divina e da revelação testificada.

Qual é então, o significado específico de milagre do Pentecostes? “…é o mistério absolutamente divino da liberdade destes homens para ser mensageiros a Israel, e ao mundo, do Jesus ressuscitado.” Todavia, a prova crucial e decisiva da fé está, conforme Barth, não nos sinais miraculosos do evento de Pentecostes como tal, mas no significado misterioso destes atos dramáticos, tal como foram expostos no sermão de Pedro. Entretanto:

O relato que Lucas faz deste milagre foi indispensável, não para explicar o milagre, que fala por si mesmo, nem para destacar ou estabelecer sua historicidade, mas para limitar ou defini-lo. Sua mensagem é que nos seguintes atos dos apóstolos, realmente estamos ante as maravilhosas obras de Deus e não de homens, e que estas obras consistem no fato de superar a separação entre os vizinhos próximos e distantes com a sua palavra (Church Dogmatics, III/4, no. 54, pp. 320-323).

A distinção barthiana entre milagre e mistério, interpretada como forma e matéria, expõe as marcas de uma reversão, de orientação existencial, em direção as tendências dualistas do escolasticismo protestante. Emerge, então, um novo esquema de natureza/graça. Tais conceitos dicotomistas, inclinados para um conceito deísta da relação Criador/criatura, tem atormentado, por muito tempo, nosso entendimento acerca dos milagres. Nas palavras de Bavink:

A maior objeção ao deísmo é, certamente, esta, que ao divorciar Deus do mundo, o infinito do finito, e situa-los de forma dualista um contra o outro, se convertem em poderes opostos, aprisionados numa luta sem fim, disputando cada um, o domínio do outro. O que é dado a Deus, é tirado do mundo. Quanto mais se estende a providência de Deus, maior é a perda de independência e liberdade que sofre a criatura. E por outro lado, a criatura somente pode manter sua autoatividade repelindo a Deus e despojando-o de sua soberania (Gereformeerde Dogmatiek, vol. II, p. 563).

Estas cosmovisões assumem que a realidade criada, basicamente, opera de acordo com a lei natural. Todavia, esporadicamente experimentamos intrusões sobrenaturais, do além, na regularidade da ordem natural para demonstrar uma graça mui especial, ou algum cuidado providencial. Por detrás desta classe de interpretação de milagres está a ascensão, escassamente dissimulada, de uma cosmovisão dualista na qual a causalidade natural funciona independentemente da Palavra de Deus, com algumas ocasionais interferências corretivas nas mãos de um Deus ex machina.

Tais perspectivas estão diametralmente opostas com a cosmovisão bíblica, que nos confronta com Deus como providencialmente ativo a cada passo do caminho, sustentando incessantemente, e governando a todas as suas criaturas, mediante o poder sustentador e restaurador de sua Palavra. Por isso, fazemos bem em descartar muitas destas categorias comuns, usadas regularmente para distinguir o milagre da história ordinária. Entre elas estão as seguintes: (a) a distinção entre natural e sobrenatural, sendo que a criação é “natural” no sentido de possuir sua própria e singular identidade como criação, e ainda assim, “sobrenatural” no sentido de estar sujeita constantemente à ordenança divina; (b) a distinção entre atos mediatos e imediatos de Deus, sendo que, em cada relação da vida Deus trata com suas criaturas conforme o seu pacto, através do poder mediador da sua Palavra – contrário ao comentário de Calvino, de que a providência de Deus é o princípio determinante de todas as coisas e que o é, de tal maneira, que às vezes “opera através de um intermediário, às vezes sem intermediário, às vezes em oposição a todo intermediário” (Intitutes, I,17,1); (c) a distinção entre normal e anormal, já que estas categorias também representam uma forma altamente pejorativa de diferenciar entre as obras providenciais de Deus. Este conceito assume que a atividade de Deus, às vezes, sai da ordem normativa da criação.

Também é muito suspeito o método que (d) distingue os milagres da constante superintendência de Deus sobre a história, usando a distinção aristotélica entre causas lógicas primárias e secundárias a efeitos de sublinhar o sobrenatural e não mediato (contra media) da natureza dos eventos miraculosos (compare Louis Berkhof, Teologia Sistemática, pp.175-176); (e) também é duvidoso aquele conceito de milagres que os distingue dos eventos históricos ordinários, declarando-os inexplicáveis, ou incompreensíveis, porque isto implicaria, que o significado da maioria dos eventos são transparentes. Na realidade não somos capazes de sondar com profundidade nem sequer aos acontecimentos mais comuns de nossa experiência cotidiana. Por isso, segundo as palavras de Herman Hoeksema:

É certo que não podemos entender como o Senhor pode multiplicar uns poucos pães em suas mãos divinas, de modo a dar de comer com elas a uma considerável multidão. Mas tampouco, está dentro dos limites de meu entendimento, como uma semente pode cair na terra e morrer, para dar fruto cem vezes mais. Certamente é verdade que minha mente se assombra, quando o salvador chama Lázaro para sair do sepulcro que já estava há quatro dias dormindo no pó; mas o nascimento de um bebê não transcende, nem mais nem menos, mais ousada compreensão. Como o Senhor Jesus pode transformar água em vinho, nas bodas de Caná, certamente é um mistério para nós, mas não é menos incompreensível como a videira pode produzir uvas e dessa maneira transformar diferentes elementos em vinho. Em outras palavras, para meu entendimento não há diferença em que Deus, por sua onipotência, opera na forma comum e conhecida sobre a videira de modo que produza uvas, ou se, pela mesma potência opera sobre a água para mudá-la em vinho. Se, o sol e a lua se detêm ante a palavra de Josué, confessamos não podermos compreender este fenômeno; mas, quando o Senhor a cada manhã, novamente causa que o sol se levante sobre o horizonte oriental, essa obra de Deus também transcende minha compreensão… o milagre nos assombra e capta nossa atenção especial. Mas, a causa disto não deve ser achada na compreensão dos eventos e atos comuns da providência de Deus, e a incompreensão nos milagres. Mas, deve ser achado em que chegamos a estar tão acostumados com as obras diárias do onipresente poder de Deus que normalmente não lhes prestamos atenção. No milagre, Deus certamente realiza algo especial que precisamente, por seu caráter especial chama a atenção. Todavia, nem no assim chamado caráter sobrenatural, nem no imediato, nem no caráter incompreensível de um milagre pode encontrar-se a ideia própria de um milagre (Reformed Dogmatic, pp.242-243).

A ênfase bíblica não recai nos milagres como um problema que deve ser resolvido, nem como um quebra-cabeças referindo-se a sua possibilidade, ou probabilidade, mas sobre a sua realidade como fatos. Naturalmente que os milagres ocorrem! O que mais esperamos? Quanto à ressurreição os críticos poderão exclamar: impossível! Todavia, a Escritura fala numa linguagem totalmente diferente. Foi impossível que a morte retivesse a Cristo (At 2:24-28). Os milagres são confirmações da invencível verdade da Palavra de Deus. Não são exibições brutas de poder. Seu propósito não é impressionar as pessoas com tediosas demonstrações da onipotência divina. Não são para satisfazer nossa curiosidade. Os milagres estão carregados de intenção revelacional, de propósito e significado.

Consequentemente, a Escritura estabelece uma estreita relação entre o milagre e a fé. A fé tem olhos para ver as maravilhosas obras de Deus, sendo ela mesma um milagre da graça divina. Nos evangelhos lemos que em alguns lugares onde a incredulidade havia cegado as pessoas “Jesus não pode realizar ali nenhum milagre…” (Mc 6:5). Talvez, nossa frequente impotência espiritual esteja relacionada a uma falta de fé nas “obras maiores” (Jo 14:12-14) que nosso Senhor prometeu. Por isso, não há uma boa razão bíblica para restringir o miraculoso poder de Deus, em certos tempos (passados) e outros lugares (muito longes), por exemplo, na era bíblica. Rejeitar o plano da realidade, ou inclusive a possibilidade de milagres em nossos tempos, expõe nossa derrota ante o espírito secular do presente. Hoje a vida está tão aberta aos milagres como sempre. Render-se ante uma cosmovisão cerrada é empobrecer o poder da oração. De outro modo, uma fascinação excessiva com os sinais miraculosos nos tornará facilmente cegos, quanto ao cuidado providencial de Deus nos acontecimentos comuns da vida cotidiana. Os milagres não são sensações exteriores a este mundo. São parte integral de nossa experiência terrena. O número de coisas operadas por milagres, em resposta à oração, supera ao que a maioria de nós jamais houvesse sonhado. Deus opera nos milagres, não contra naturam, senão contra peccatum, contradizendo com isto, a direção pecaminosa, a distorção e perversão da vida no mundo, que contravém a obra criadora de suas mãos.

Por isso, os milagres não são acontecimentos anormais, ou não-naturais. Tais noções pressupõem a normalidade da “lei natural”. Entretanto, eles são reafirmações da normatividade da boa criação, da permanente fidelidade de Deus às promessas de seu pacto. Os milagres são sinais e maravilhas do shalom que Deus quer para nós, por enquanto destruído, mas restaurado em Cristo, um shalom cuja restauração final é posta diante de nós, como uma esperança escatológica. Os milagres representam manifestações do reino na presente realidade, do reino vindouro. São poderosos sinais para recordar-nos a dimensão do “já” da vinda do reino. Como declarou Jesus “mas se pelo dedo de Deus, eu expulso os demônios, certamente o reino de Deus é chegado entre vós” (Lc 11:20). Mas, o assombro que despertam em nós, também nos recorda enfaticamente a dimensão do “ainda-não” do reino. Todavia, sua ocorrência, aparentemente excepcional, não deve confundir-nos a pensar que são “desvios”, excursões a alguma “terra de ninguém e do nunca”. Os milagres são sinais do reino, firmemente plantados junto a esse caminho, cristologicamente reaberto, que nos conduz a renovação dessa boa terra onde reside a perfeita justiça.

 

NOTAS:

[1] A lei lógica da não-contradição diz, que duas afirmações contrárias não podem ser mantidas ao mesmo tempo no mesmo sentido (nota do tradutor).

Gordon J. Spykman, Teología Reformacional – un nuevo paradigma para hacer la dogmática (Jenison, the Evangelical Literature League, 1994), pp. 320-330.

Tradução por Rev. Ewerton Barcelos Tokashiki

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