Apontamentos sobre Metodologia, Pesquisa e Ciência – Parte 3

1. O Conhecimento (Continuação)

Conhecimento autorreferente?

O nosso conhecimento nunca é autorreferente com validade própria e por iniciativa nossa.[1]         Em outras palavras: “Visto que somos seres finitos e não podemos enxergar o todo da realidade de uma vez, nossa perspectiva da realidade é necessariamente limitada por nossa finitude”, interpretam Geisler (1932-2019) e Bocchino.[2]

Aliás, não podemos escapar desse fato que nos humaniza e nos permite ver com mais realismo a vida.

 

Ontologia

A ontologia é a determinante de nossa possibilidade epistemológica. Esta, por sua vez, depende de fé. No entanto, a epistemologia não condiciona a ontologia. Só posso conhecer o que existe. Porém, o que existe não depende do meu conhecimento para existir.

O nosso conhecimento pode ser adequado, porém, limitado. Todo conhecimento pressupõe uma fé implícita.[3] Todo conhecimento é graça, ainda que não percebida pelo ser cognoscente.[4]

 

Epistemologia e Lógica

Portanto, a epistemologia antecede à lógica e esta, por mais coerente que seja, se partir de uma premissa equivocada nos conduzirá a conclusões erradas e, portanto, a uma ética com fundamentos duvidosos e inconsistentes.

A ontologia antecede à epistemologia.[5]  Por isso mesmo, a realidade sempre é mais importante e complexa do que a nossa percepção e experiência. A ontologia é a determinante de nossa possibilidade epistemológica. A nossa epistemologia, por sua vez, não é tão pura, como por vezes, somos tentados a pensar.

 

Essa tal realidade

Insisto: A epistemologia não condiciona o ser (essência). As coisas são o que são independentemente de nossa apreensão. Assim como o nome não delimita nem determina a essência da coisa, a nossa percepção, com seus erros e acertos, não estatui por si só a essência e o alcance da realidade.

Antes do conhecer, há o ser. Se houver um conhecimento universal, porém, equivocado, isso não mudará a essência do ser. Se todos negassem a existência de Deus, isso não mudaria o fato de Deus ser o que é. O meu conhecimento, certo ou errado, muda a minha relação com o real, porém, não a essência da coisa. A realidade não é determinada pela minha apreensão ou não, mas por Deus quem cria e preserva a realidade.

Isso traz para nós uma grande responsabilidade e consolo: Deus sabe quem somos. Independentemente de nossa baixa ou alta autoestima, do respeito que geramos, dos títulos que conquistamos, das calúnias das quais podemos ser alvos; Deus sabe quem somos. Somente Ele conhece perfeitamente a essência de todas as coisas. Afinal, Ele é quem criou e sustenta toda a realidade. Ele conhece o nosso coração.

 

Lógica e verdade

Deve ser dito também, que toda verdade é lógica, no entanto, por algo nos parecer lógico, não significa que seja verdadeiro. A lógica é fundamental na construção e formalização de um pensamento, contudo, a apreensão do objeto, quer com fundamento ou apenas seguindo o senso comum de forma pré-analítica, é que será o fundamental. A lógica nada prova.[6] Ela apenas desenvolve induções razoáveis já contidas em suas premissas. Dê-me as premissas que a lógica demonstrará de forma racional algumas de suas implicações.

Portanto, a questão epistemológica antecede à práxis e em grande parte a determina.

 

Realidade e experiência

Desse modo, as coisas são o que são independentemente de nossa apreensão.

Por isso mesmo, a realidade sempre é mais importante e complexa do que a nossa experiência. A realidade possibilita a experiência e variados aprendizados, porém, a experiência não determina a realidade. Ela pode, e costumeiramente deve, nos ajudar a ver a realidade de modo diferente, de forma mais compatível com a sua natureza. Isso, sem dúvida nos conduzirá a novas experiências e novos aprendizados resultantes dos anteriores.

O aprendizado em geral é uma construção ainda que nem sempre tenhamos a dimensão do processo durante o processo. A realidade, portanto, proporciona ensino e renovação. Quem tem olhos e ouvidos vejam, ouçam e aprendam.

 

Definição de conhecimento

O conhecimento pode ser definido como o processo de reflexão crítica que possibilita a compreensão de um objeto.[7] Esse conhecimento será adequado se convier de forma clara às características do objeto que o distingue dos demais.

Contudo, devemos ressaltar que este conhecimento parte sempre de um lócus temporal e espacial. Por isso ele está longe de ser indeterminado, objetivo ou “neutro”.

 

O meu conhecimento

O homem é um ser integral envolvendo o intelecto e, de forma mais ampla, o seu coração. A pesquisa não pode, porque na realidade é impossível, fraccionar subjetivamente o pesquisador, assim como é impossível separar objetivamente a realidade que envolve Deus e o mundo criado e sustentado por Ele, como bem escreveu Bavinck (1854-1921):

O homem que se dedica à ciência não pode se dividir em duas metades, separando sua fé de seu conhecimento; mesmo em suas investigações científicas, ele continua sendo um homem – não um ser puramente intelectual, mas uma pessoa com um coração, com afeições e emoções, com sentimento e vontade.[8]

Todo conhecimento tem elementos condicionantes de nossa perspectiva. Desse modo, guardando-se as proporções, podemos dizer que de certa forma meu conhecimento é “meu”, de minha perspectiva a qual, não precisará estar certa ou errada necessariamente, mas, que tem suas peculiaridades.[9]

Desse modo, todo conhecimento passa por uma correlação: enquanto ser cognoscente, sou o que sou enquanto sou para o objeto e ele, é o que é enquanto o é para mim. Eliminar esta dialética – sujeito-objeto –, significa ignorar a própria complexidade do conhecimento: sem sujeito não há conhecimento; sem objeto não há o que conhecer. No entanto, a identidade de cada um depende da sua relação com o outro.

 

Meu conhecimento e alguns condicionantes elementares

Tendemos a pensar que o conhecimento que temos é natural, no sentido de que todos percebem como percebemos; por isso, a impressão equivocada, quase um senso comum,  de que a nossa forma de ver, perceber e interpretar a realidade é a mais óbvia e, portanto, comum.

Descobrimos a ilusão dessa percepção quando começamos a conversar com pessoas a respeito de temas que nos parecem óbvios. Não precisamos ir muito longe. Basta fazê-lo com nossos filhos. Já de início, para surpresa nossa, descobrimos que a nossa percepção estava equivocada a respeito de termos uma visão comum…

A nossa forma de conhecer é sempre mediata. Conhecemos através de intermediações. Ilustremos:

A nossa miopia proporciona uma imagem embaçada das coisas; a surdez, que é naturalmente progressiva com o passar dos anos, não nos permite identificar determinados sons, por isso podemos fazer uma audiometria para verificar isso.

O nosso paladar apresenta gostos diferentes conforme o que ingerimos antes. E mais. Quando estou em São Paulo, diariamente pela manhã tomo uma média acompanhada de pão com manteiga (frios, não na chapa). Depois de alguns meses, não me é estranho mudar de padaria (tenho duas preferidas), ainda que não o cardápio. A explicação com um ar de racionalidade, é que enjoei da combinação… No entanto, continuo pedindo o mesmo, só que em outro lugar. Depois de alguns meses, volto ao anterior….Faço isso há alguns anos.

O aroma dos pratos amplamente apreciados pode nos causar enjoo se estivermos com problema de fígado.

Se estivermos com dormência em nossas mãos, certamente teremos dificuldade de identificar a aspereza ou textura do que tocamos.

 

Conjunção dos órgãos dos sentidos

Por isso é que a conjugação de nossos órgãos dos sentidos nos proporciona uma capacidade maior de compreensão, ainda que limitada.

Por exemplo: É mais compreensível conversar com a pessoa diante de si do que simplesmente por telefone ou zap.

A nossa visão pode ser confirmada ou não conforme a possibilidade de tocar no objeto. A aparência pode ser contraposta ao aroma. Por isso podemos dizer: “Meu filho come com os olhos”; “a comida está feia, mas, está gostosa”; “o aroma não é agradável, porém, o sabor sim”.

Devemos perceber também que, quando dirigimos, além de nossas mãos e pés para dar direcionamento ao veículo, lemos a realidade com os nossos olhos e nossos ouvidos. A visão é o principal meio nesse processo, porém, a audição nos auxilia em muito, especialmente no que concerne ao que está fora de nosso alcance visual. Alguns carros trazem um sensor que procura nos ajudar a dirigir acendendo uma luz quando há algum objeto estranho no “ponto cego”. Outros trazem ainda, sensores auditivos para reforçar a nossa visão do objeto; por isso, temos sensores dianteiros e traseiros em diversos carros.

Desse modo, a nossa compreensão passa por diversas variáveis entre as quais apenas privilegiei as sensoriais. E as mediações das visões que temos ou que nos são dadas pelo meio em que vivemos? Não posso seguir aqui essa linha de argumentação, porém, é oportuna a observação de Sowell

Seria bom poder dizer que poderíamos prescindir completamente de visões e lidar somente com a realidade. Porém essa pode ser a visão mais utópica entre todas. A realidade é muito complexa para ser compreendida por qualquer mente. Visões são como mapas que nos guiam através de um emaranhado de complexidades desconcertantes.[10]

Algumas vezes cometemos injustiças pela nossa precipitação, falta de informações ou, ainda que não faltem tais elementos, podemos ser conduzidos ‒ e como somos ‒, pela nossa passionalidade. Quão difícil é entender a nossa condição de suspeição para decidir determinadas questões. Como é difícil ser justo quando os nossos interesses, ainda que não necessariamente escusos, estão em jogo.[11]

Por outro lado, como é fácil atribuir motivações santas aos nossos interesses e preocupações enquanto as motivações dos outros, aos nossos olhos tão perspicazes, estão sempre mescladas e manchadas daquilo que pode ser, na realidade, um exalar de nossos desejos ocultos.

Tendemos a condenar nos outros os desejos que, com frequência, são nossos, mas, que não ousamos admitir. Os nossos juízos sobre os outros podem ser, com facilidade, uma expressão de nossas próprias falhas e valores equivocados e disfarçados.

Conforme a cidade na qual o juiz vive, o fato de ser solteiro ou casado, ter filhos ou não, ser muito jovem ou mais maduro, ser um religioso “praticante” ou não, homem ou mulher, considerar o assunto de extrema relevância ou não, etc., todos estes elementos podem interferir em sua sentença.

O fato é, que se assim não fosse, como explicar os pareceres tão divergentes tratando da mesma matéria, sob a perspectiva das mesmas leis, por parte dos juízes em várias instâncias e até mesmo do Supremo Tribunal Federal, a mais alta instância do poder judiciário brasileiro?

Os seus padrões, por mais objetivos que sejam refletem aspectos também de sua formação e vivência. Não estamos imunes a estes elementos antropológicos, sociais, culturais, educacionais, geográficos e ideológicos.

Podemos ter um conhecimento adequado da matéria a ser avaliada, contudo, os meus critérios podem se revelar bastante flexíveis conforme aspectos de minha personalidade, interesse e circunstâncias.

 Deus como autor e sustentador de toda a realidade, é quem a define e a interpreta. A nossa compreensão é sempre interpretada. Diante do Absoluto, todas as perspectivas e interpretações se dissolvem já que toda verdade está em Deus e, portanto, a sua “interpretação” é a única correta

No próximo post vamos ilustrar essa questão de forma mais complexa tomando como referência a disciplina história, considerando também a nossa fé.

 

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]A respeito de um comportamento oposto, escreveu Lloyd-Jones: “Não há maior obra-prima do diabo do que seu sucesso em persuadir as pessoas de que é seu conhecimento superior que as leva a rejeitar o cristianismo. Mas exatamente o oposto é que é verdadeiro. O diabo as mantém na ignorância porque, enquanto permanecerem nela, elas farão o que ele manda. A partir do momento em que recebem a luz – o evangelho é chamado de ‘luz’ – elas veem o diabo e o abandonam” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 68).

[2]Norman Geisler; Peter Bocchino, Fundamentos Inabaláveis: resposta aos maiores questionamentos contemporâneos sobre a fé cristã, São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 50.  Da mesma maneira, veja-se: Vern S. Poythress, Redimindo a filosofia: uma abordagem teocêntrica às grandes questões, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 74ss. Calvino comenta a necessidade da revelação de Deus em Cristo. Argumenta: “Porque, visto que Deus é incompreensível, a fé poderia jamais alcançá-lo, a menos que ela tenha uma consideração imediata por Cristo. Além disso, há duas razões por que a fé poderia estar não em Deus, a não ser que Cristo interviesse como Mediador: primeiro, a grandeza da glória divina deve ser levada em conta e, ao mesmo tempo, a pequenez de nossa capacidade. Nossa acuidade sem dúvida está muito longe de ser capaz de subir tão alto a ponto de compreender a Deus. Daí, todo conhecimento de Deus sem Cristo é um vasto abismo que deglute imediatamente todos nossos pensamentos” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 22, (1Pe 1.21), p. 53).

[3] “Todo conhecimento é fé” (Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos Homens e do Mundo, Brasília, DF.: Monergismo, 2013, p. 305).

[4]“Embora não conheçamos nada exatamente como Deus conhece, o verdadeiro conhecimento humano não contradiz o conhecimento divino, mas depende dele” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 59).

[5]Veja-se: James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito, Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 77-109.

[6]Veja-se: Thomas Sowell, Conflito de visões: origens ideológicas das lutas políticas, São Paulo: É Realizações, 2012, p. 18-19.

[7] Veja-se: Aidil de Jesus P. de Barros; Neide Aparecida de S. Lehfeld, Projeto de Pesquisa, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1991, p. 9-10.

[8] Herman Bavinck, Filosofia da Revelação, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 129-130.

[9] Depois de redigir estas linhas, li Ortega y Gasset (1883-1955), que escrevera: “Cada um de nós é, meio a meio, o que ele é e o que é o ambiente em que vive” (J. Ortega Y Gasset, Que é Filosofia, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1961, p. 37).

[10]Thomas Sowell, Conflito de visões: origens ideológicas das lutas políticas, São Paulo, É Realizações, 2012, p. 17.

[11] “Não há nada mais difícil do que pronunciar juízo com total imparcialidade, de modo a evitar a demonstração de favoritismo injusto, ou dar margem a suspeitas, ou deixar-se influenciar por notícias desfavoráveis, ou ser excessivamente radical, e em toda causa nada considerar senão a matéria em mãos. Só quando fechamos nossos olhos a considerações pessoais é que podemos pronunciar um juízo equitativo” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 5.21), p. 153).

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