O Dia-a-dia de Ação de Graças e a Graça de todo dia

A condição dos crentes nunca é perfeita neste mundo, a ponto de não termos, invariavelmente, carência de algo. Porque, mesmo o homem que tenha começado admiravelmente bem pode enfrentar insuficiência em centenas de casos ao dia; e devemos estar sempre fazendo progresso enquanto ainda estamos a caminho. Portanto, tenhamos em mente que devemos regozijar-nos nos favores que já recebemos e dar graças a Deus por eles, de tal maneira que busquemos dele, ao mesmo tempo, a perseverança e o avanço. – João Calvino (1509-1564).[1]

O mundo é deveras mísero e infeliz; vive cheio de maldições e de queixas. Entretanto o louvor, a ação de graças e o contentamento marcam o cristão e mostram que ele não é mais “do mundo”. – D.M. Lloyd-Jones (1899-1981).[2]

O princípio de sermos agradecidos a Deus e ao nosso semelhante é amplamente ensinado na Bíblia. Paulo, servo e apóstolo de Jesus Cristo, orienta: “Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco” (1Ts 5.18).

A gratidão é a atitude da alma que reconhece a direção de Deus em todos os episódios de sua existência, por isso a recomendação paulina: “Em tudo dai graças”. Nessa atitude não há uma senha mágica, um talismã linguístico, que vise modificar as situações adversas, mas, sim, a expressão sincera de um coração agradecido, que se sente seguro sob o cuidado de Deus (Rm 8.31-39).

 

A graça da salvação

A graça da salvação traz como implicação a nossa gratidão. A nossa resposta à graça, deve ser gratidão. A graça recebida pela fé, se revela em grata obediência e santidade. Obediência é a graça material da gratidão.

 

Dia de Ação de Graças

Conforme lei brasileira, na quarta quinta-feira de novembro comemora-se o Dia de Ação de Graças. Esta lei foi inspirada no desejo do Embaixador brasileiro Joaquim Nabuco (1849-1910) que, impressionado com as comemorações deste dia em 1909 na Catedral católica de São Patrício em Nova Iorque, dissera: “Eu quisera que toda a humanidade se unisse, no mesmo dia, para um agradecimento universal a Deus”.

A Lei que criaria este dia foi promulgada em 1949 (Lei No 781, de 17/08/1949), passando posteriormente por regulamentações até a sua forma final em 1966, alterando a data das comemorações da  “última quinta-feira de novembro” para  “a quarta quinta-feira do mês de novembro”. (Lei Nº 5.110, de 22/09/1966).

A origem do Dia de Ação de Graças está relacionada aos Peregrinos (puritanos) em Massachusetts (1621) que ali se instalaram por questões de perseguição religiosa, buscando, além da liberdade de culto, a oportunidade de evangelizar os nativos.

Depois de alguns anos com uma colheita fraca, agravada por um inverno rigoroso, finalmente tiveram uma farta colheita de milho em 1621.

Os índios norte-americanos os ajudaram com suas técnicas de cultivo. Por este motivo marcaram uma festividade no outono deste mesmo ano. Além do culto de gratidão a Deus,  o cardápio das comemorações constava de patos, perus, peixes e milho.

Como forma de gratidão e amizade convidaram índios norte-americanos a participarem da festa. Compareceram 90 deles que também trouxeram comidas. A festividade foi realizada ao ar livre, marcada por grande alegria, durando três dias. Essa prática religiosa, festiva e fraterna se propagou.

É um fato interessante que o selo original da Colônia da Baía de Massachusetts, que chegou e se estabeleceu em Salem em 1628, tinha um índio norte-americano, com estas palavras saindo de sua boca: “Venha e nos ajude”. Este dispositivo no selo de sua colônia deixou claro a todos o fato de que eles se consideravam missionários estrangeiros na América do Norte. Esse também foi o caso de seus irmãos da Colônia de Plymouth, que chegaram oito anos antes. [3]

Em 1863 o então presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln (1809-1865) instituiu a última quinta-feira de novembro como o dia nacional de Ação de Graças.

Posteriormente, inclusive por motivos comerciais, o dia passou por algumas alterações.

 

A gratidão devida a Deus

A nossa gratidão a Deus é o resultado da certeza de que Ele cuida de nós e que, de fato, não existem eventos casuais, sorte, azar ou fatalismo. Deus é quem pessoalmente nos guarda!

Portanto, em todas as circunstâncias, podemos encontrar motivos para agradecer a Deus, certos de que Ele é o Senhor da história e nada nos acontece sem a permissão governativa de Deus. Tudo o que nos ocorre tem um sentido proveitoso para a expressão de nossa vida: física, psíquica e espiritual.

Deus deseja que nos aperfeiçoemos em todos os níveis, tendo em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o modelo perfeito para nós  (Rm 8.28-30).

A pedagogia de Deus, por meio dos eventos, ultrapassa em muito a nossa capacidade imediata de percepção. Todavia, Deus é o Senhor e Ele nos ensina por meio da sua Palavra vivenciada na história.

Daniel quando soube que, por decreto do rei Dario, nenhum homem poderia invocar a Deus durante o prazo de trinta dias, entrou no seu quarto e deu graças a Deus conforme seu reverente costume: “Daniel, pois, quando soube que a escritura estava assinada, entrou em sua casa, e, em cima, no seu quarto, onde havia janelas abertas da banda de Jerusalém, três vezes no dia se punha de joelhos, e orava, e dava graças, diante do seu Deus, como costumava fazer” (Dn 6.10).

Lucas, que testemunhou a prisão de Paulo em Filipos, nos conta: “Por volta da meia-noite, Paulo e Silas oravam e cantavam louvores a Deus, e os demais companheiros de prisão escutavam” (At 16.25). Essa atitude – que o texto indica que se repetiu por algum tempo – era inusitada e, ao que parece, tão surpreendente aos outros prisioneiros que, conforme registra Lucas, os companheiros de cela se detiveram para ouvir os seus louvores (At 16.25).

Mais tarde, Pedro escreve aos crentes da Dispersão, que sofriam atroz perseguição:

Amados, não estranheis o fogo ardente que surge no meio de vós, destinado a provar-vos, como se alguma cousa extraordinária vos estivesse acontecendo; pelo contrário, alegrai-vos na medida em que sois coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também na revelação da sua glória vos alegreis exultando. (1Pe 4.12-13).

O fato é que Deus, mesmo objetivando – como sempre o faz – o melhor para nós, não exclui necessariamente as adversidades, as circunstâncias difíceis e sérias provações.

 

Motivos para ação de graças

Indiquemos agora algumas das razões que temos para agradecer a Deus. Sem dúvida, todos nós temos motivos para assim fazer; basta que consideremos a nossa saúde, o alimento que nos dá, a nossa casa, família, emprego, etc. Todavia, queremos observar outras razões que a Palavra de Deus nos oferece, que devem nos conduzir à gratidão sincera:

 

    1) Por Deus ser quem é

Deus deve ser louvado por aquilo que Ele é. Deus é o Senhor de todas as coisas. A sua vontade é que lhe rendamos graças como reconhecimento reverente de sua majestade e misericórdia manifestas em seus atos salvadores.

O salmista declara: “O Senhor é Deus, Ele é a nossa luz (…). Tu és o meu Deus, render-te-ei graças; tu és o meu Deus, quero exaltar-te. Rendei graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre” (Sl 118.27-29).

 

    2) A bondade e misericórdia

O salmista conclama: “Rendei graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre” (Sl 118.1= Sl 106.1; 107.1, etc.). Aqui há a compreensão de que toda a nossa relação com Deus baseia-se em sua misericórdia.

Após a destruição de Jerusalém, Jeremias escreve: “As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos porque as suas misericórdias não têm fim” (Lm 3.22). Tudo que somos e temos pode ser resumido na “misericórdia eterna de Deus”, que se compadece de nós e propicia a nossa salvação.

As Escrituras declaram que Deus é benigno e misericordioso para com todos; até para com os ingratos e maus, aos quais Deus manifesta a Sua bondade por intermédio da concessão de bênçãos temporais (Veja-se: Lc 6.35,36).

 

    3) O seu socorro

O socorro de Deus independe de nossa percepção. Deus nos tem guardado, na maioria das vezes, de uma forma misteriosa para nós. Não podemos limitar a nossa gratidão a Deus apenas à nossa percepção dos fatos. O cuidado preventivo de Deus para conosco ultrapassa em muito a nossa consciência. A vontade de Deus é que lhe sejamos agradecidos pela sua proteção benfazeja.

O salmista, considerando o seu passado, exulta: “O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele o meu coração confia, nele fui socorrido; por isso o meu coração exulta, e com o meu cântico o louvarei” (Sl 28.7). “Render-te-ei graças porque me acudiste, e foste a minha salvação” (Sl 118.21).

 

    4) A firmeza de nossos irmãos

A vontade de Deus é que nos alegremos com os nossos irmãos na firmeza de sua fé, dando graças a Deus por isso. Devemos orar uns pelos outros, regozijando-nos ao perceber o fortalecimento espiritual de nossos irmãos.

O apóstolo Paulo, em muitas de suas cartas, agradecia a Deus o testemunho fiel da Igreja:

Primeiramente dou graças a meu Deus mediante Jesus Cristo, no tocante a todos vós, porque em todo o mundo é proclamada a vossa fé. (Rm 1.8).

Não cesso de dar graças por vós, fazendo menção de vós nas minhas orações. (Ef 1.16).

Dou graças a meu Deus por tudo que recordo de vós (…), pela vossa cooperação no Evangelho, desde o primeiro dia até agora. (Fp 1.3,5).[4]

***

A nossa gratidão a Deus deve se revelar num ato de proclamação da sua grandeza e de seus poderosos feitos. A vontade de Deus é que proclamemos com gratidão os seus atos redentores.

Os salmistas assim procedem: “Graças te rendemos, ó Deus; graças te rendemos, e invocamos o teu nome, e declaramos as tuas maravilhas” (Sl 75.1). “Rendei graças ao Senhor, invocai o seu nome, fazei conhecidos, entre os povos, os seus feitos” (Sl 105.1).

Em nosso nobre desejo de servir, estamos com frequência dispostos a indicar para os nossos amigos, profissionais e lojas que nos atenderam bem. Desse modo,  falamos de determinada promoção ou de um remédio que foi “valioso” para nós ou para algum parente… No entanto, amiúde nos esquecemos de proclamar as “maravilhas” de Deus aos pecadores, e mesmo aos nossos irmãos, para a edificação recíproca de nossa fé.

A nossa palavra e a nossa vida devem ser expressões de agradecimento a Deus. Todas as nossas atitudes devem refletir este espírito. É justamente isto que Paulo recomenda aos colossenses: “E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3.17).

Deus nos convida a uma dignificação de nossas tarefas, por meio de um coração agradecido que metamorfoseia tudo o que fazemos. Um coração agradecido a Deus se manifesta em nosso comportamento, em nosso trabalho, em todas as nossas relações. Contudo, nós somos agradecidos, não por isso, mas porque o Senhor é o nosso Deus; o Deus cuja bondade e misericórdia permanecem de geração em geração; e nós a temos experimentado.

Um outro aspecto que deve ser mencionado, é que as nossas orações também devem ser agradecidas. Paulo, preso, escreve a uma igreja que também passava por tribulações (Fp 1.29): “Não andeis ansiosos de cousa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça” (Fp 4.6. Veja-se: Cl 4.2). Paulo, aqui, não combate a ansiedade puramente com argumentos; ele nos desafia a canalizar as nossas energias não para um sentimento inoperante e destrutivo, mas para oração com ações de graça.

A oração oferece-nos um abrigo onde podemos nos ocultar das preocupações mundanas, um lugar onde ficamos a sós com Deus, um refúgio onde renovamos a esperança, onde nossos cuidados, expostos a Deus, ficam amortecidos e renovamos a nossa confiança em Deus. A oração é o antídoto contra o veneno da ansiedade!

A prática da oração, acompanhada de ação de graças deve ser exercitada a fim de nos aperfeiçoarmos nela como resultado de nossa maturidade espiritual. “Ora, como recebestes a Cristo Jesus, o Senhor, assim andai nele, nele radicados e edificados e confirmados na fé, tal como fostes instruídos, crescendo em ações de graça” (Cl 2.7,8).

“Assim também, escreve Calvino,  não deixemos passar nenhum tipo de prosperidade que nos beneficie, ou que beneficie a outros, sem declarar a Deus, com louvor e ação de graças, que reconhecemos que tal bênção provém do Seu poder e da Sua bondade”.[5]

Ao nos aproximarmos do final de mais este ano, devemos dirigir nossas mentes e corações a recordar os feitos perceptíveis de Deus em nossa existência: a paz, vida, saúde, família, emprego, escola, entre outras coisas. A gratidão revela a nossa confiança em Deus no seu paternal cuidado; por isso, mesmo sem entendermos o alcance de todos os fatos, devemos, pela fé, agradecer a Deus: “Dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (Ef 5.20). Amém.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]João Calvino, Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, (Cl 1.3), p. 494.

[2]D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 48.

[3]Veja-se: Nehemiah Adams, The Life of John Eliot with an account of the early missionary efforts among the Indians of New England, Boston: Massachusetts Sabbath Scholl Society, 1847, p. 8.

[4] Veja-se: também: 1Co 1.4; Cl 1.3,4,12; 1Ts 1.2,3; 2.13; 3.9; 2Ts 1.3; 2.13; Fm 4.

[5]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 136.

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