Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 29

B. O Trabalho como algo essencial ao homem

 

O trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício  e a necessidade. – Voltaire (1694-1978).[1]

Melhor é sustentar do suor próprio, que do sangue alheio. (…) Não há maior maldição numa casa, nem numa família, que servir-se com suor e com sangue injusto. – Padre Antonio Vieira (1608-1697).[2]

 

 

                   1) O Compartilhar de Deus

Mesmo não abrindo mão de sua soberania, Deus compartilha com as suas criaturas o seu poder. O nosso senhorio está sob o senhorio absoluto de Deus. O nosso domínio concedido é sobre as obras, todas elas de Deus. A criação é produto da vontade poderosa de Deus. Foi ele quem a estabeleceu. Somente Deus que é o Criador, proprietário e mantedor de tudo, pode graciosa e legitimamente, delegar poderes.

 

As mãos criadoras e preservadoras de Deus

A Criação não é produto do acaso, ou de uma enorme coincidência de mistura de gases, antes foi produzida pelas mãos de Deus conforme sua determinação sábia e poderosa. Deus pode, portanto, contemplar a sua Criação e se deleitar nas obras de suas mãos.[3]

No Salmo 8, o salmista também contempla extasiado a Criação: “Quando contemplo os teus céus, obra (hf,[]m) (ma`aseh) dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste (…). Deste-lhe domínio sobre as obras (hf,[]m) (ma`aseh) da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste” (Sl 8.3,6).

Em outro lugar: “Em tempos remotos, lançaste os fundamentos da terra; e os céus são obra (hf,[]m) (ma`aseh) das tuas mãos” (Sl 102.25).

O profeta reconhece que somos produto da vontade de Deus: “Mas agora, ó Senhor, tu és nosso Pai, nós somos o barro, e tu, o nosso oleiro; e todos nós, obra (hf,[]m) (ma`aseh) das tuas mãos” (Is 64.8).

As obras de Deus são admiráveis revelando aspectos de sua maravilhosa grandeza.

A rotina, que em geral é útil em nossos afazeres cotidianos, nos permitindo planejar com maior naturalidade, sem dispêndio de maiores energias, pode também involuntariamente ocultar aos nossos olhos grandes feitos com os quais nos acostumamos e terminamos por banalizá-los.

Nos acostumamos com as estações do ano, as chuvas periódicas, o outono, o frio do inverno, as flores da primavera, o nascimento de um bebê, o alimento diário, uma noite de sono, o céu estrelado, etc.

O salmista também desfrutava de experiências semelhantes, mas, quando contempla o poder de Deus manifesto de várias formas na criação e em sua vida, com amplo conhecimento de causa, exclama em louvor:  “Graças te dou, visto que por modo assombrosamente (arey”) (yare’) maravilhoso (hl’P’) (palah) me formaste; as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh) são admiráveis (al’P’) (pala) (maravilhosas, extraordinárias), e a minha alma o sabe muito bem” (Sl 139.14).

 

A alegria de contemplar a criação de Deus

O contemplar as obras de Deus proporciona a nós um deleite espiritual e uma adoração sincera:

Não há entre os deuses semelhante a ti, Senhor; e nada existe que se compare às tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh). (Sl 86.8).

Grandes são as obras (hf,[]m) (ma`aseh) do Senhor, consideradas por todos os que nelas se comprazem. (Sl 111.2).

4 Pois me alegraste, Senhor, com os teus feitos; exultarei nas obras (hf,[]m) (ma`aseh) das tuas mãos. 5 Quão grandes (ld;G”) (gadal), Senhor, são as tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)! Os teus pensamentos (hb’v’x]m;) (machashabah) (desígnios, intentos) que profundos!” (Sl 92.4-5).

Na contemplação meditativa da Criação, podemos perceber aspectos da bondade de Deus que nos aliviam em nossas dores e limitações, nos concedendo a visão da harmoniosa variedade e beleza daquilo que criou. Nessa visão, somos conduzidos a nos admirar e a glorificar a Deus por sua manifestação de sabedoria, bondade e graça para conosco.

Davi mais uma vez  canta de modo inspirado:

Que variedade, Senhor, nas tuas obras (hf,[]m) (ma`aseh)! Todas com sabedoria as fizeste; cheia está a terra das tuas riquezas. (Sl 104.24).

O Senhor é bom para todos, e as suas ternas misericórdias permeiam todas as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh). (Sl 145.9).

Justo é o Senhor em todos os seus caminhos, benigno em todas as suas obras (hf,[]m) (ma`aseh). (Sl 145.17).

 

A posição elevada do ser humano e sua responsabilidade

Surpreendentemente, desde a Criação, o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, e coube a ele o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capacidade de procriar-se (Gn 1.22).[4]

Conforme já destacamos, como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele – abençoando e capacitando-o – do poder de nomear os animais – envolvendo neste processo inteligência e não arbitrariedade – e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20).

Ao homem foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar, estabelecer conexão e visualizar o invisível.[5]

Ao homem, portanto, foi concedido o privilégio responsabilizador de pensar, analisar, escolher livremente o seu caminho de vida,[6] verbalizar os seus pensamentos e emoções, podendo, assim, dialogar com o seu próximo (Gn 3.6) e com Deus (Gn 3.9-13), sendo entendido por ele e entendendo a sua vontade.

Quando usamos adequadamente dos recursos que o Senhor nos confiou para dominar a terra, estamos cumprindo o propósito da criação glorificando a Deus. É necessário, portanto, que o glorifiquemos em nosso trabalho pela forma legítima como o executamos.

Precisamos estar atentos ao fato de que o nosso domínio está sob o domínio de Deus. A Criação pertence a Deus por direito, a nós, por delegação de Deus (Sl 24.1; 50.10-11; 115.16).[7] Ele mesmo compartilhou conosco este poder, contudo não o transferiu a nós.[8] Teremos de lhe prestar contas.

Por isso, ainda que o nosso domínio seja demonstrado, especialmente pelo avanço da ciência, novos desafios surgem.  A plenitude desse domínio temos em Cristo Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] Voltaire, Cândido, São Paulo: Martins Fontes, 1990, XXX, p. 159.

[2] Padre Antonio Vieira, Sermão da Primeira Dominga de Quaresma (Pregado na Cidade de São Luís do Maranhão no ano de 1653). In: Sermões, Porto: Lello & Irmão, Editores, 1945, v. 3, iv, p. 18 e v, p. 22.

[3] Veja-se: Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 115-117.

[4] “Embora aos homens seja de natureza infundido o poder de procriar, Deus quer, entretanto, que seja reconhecido a Sua graça especial que a uns deixa sem progênie, a outros agracia com descendência, pois que dádiva Sua é o fruto do ventre” (Sl 127.3) (João Calvino, As Institutas, I.16.7).

[5]Cf. Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 18.

[6] Veja-se: Confissão de Westminster, IX.1-2.

[7]Veja-se: John W. R. Stott, O Discípulo Radical, Viçosa, MG.: Ultimato, 2011, p. 45.

[8] Veja-se: Gerard Van Groningen, Criação e Consumação, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, v. 1, p. 86-87, especialmente a nota 47.

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