O Seminário e a formação de Pastores – Parte 14
Centro missionário
Tanto na Academia como na igreja, muitos dos exilados passaram a ouvir Calvino diversas vezes por semana. Não era estranho o coração desses homens começar a pulsar mais acelerado movido pelo ardor missionário, passando a desejar voltar para as suas cidades e países a fim de proclamar com maior profundidade o Evangelho.
Calvino, após conversar com esses irmãos, os examinar e treinar, consentia em enviá-los de volta às suas terras. No entanto, esse envio os ligava para sempre ao coração de Calvino, que estava sempre disposto a se corresponder com eles os aconselhando, instruindo e orientando. A ampla correspondência de Calvino é um testemunho dessa ligação fraterna.
Além disso, Genebra se tornou um grande centro missionário, uma verdadeira “escola de missões”, porque os foragidos que lá se instalaram, puderam, posteriormente, levar para os seus países e cidades o Evangelho ali aprendido.[1] “O estabelecimento da Academia foi em parte realizado por causa do desejo de suprir e treinar missionários evangélicos”, informa-nos Mackinnon (1860-1945).[2]
Hughes (1915-1990) comenta:
A Genebra de Calvino era muito mais do que um paraíso e uma escola. Não era um lugar de isolamento teológico que vivia para si mesmo e por si mesmo, alheio à sua responsabilidade evangélica em relação às necessidades dos outros. Os vasos humanos foram preparados e equipados neste paraíso (…) para que se lançassem ao oceano das necessidades do mundo, encarando bravamente cada tempestade e perigo que os aguardava, a fim de levarem a luz do evangelho de Cristo àqueles que estavam na ignorância e nas trevas das quais eles mesmos tinham vindo. Eles foram ensinados nesta escola para que, em retorno, ensinassem aos outros a verdade que os libertara.[3]
Destacamos que, com exceção de Isaías, todos os comentários de Calvino sobre os profetas “consistem em sermões direcionados a alunos em treinamento para o trabalho missionário, principalmente na França”, informa-nos Parker (1916-2016).[4]
Imprensa
Calvino intensificou o seu trabalho usando a sua pena como uma poderosa arma para difundir o evangelho, reunindo impressores, comerciantes e diversos irmãos com recursos que pudessem financiar a publicação do Saltério, reimpressão das Institutas, Catecismo e demais obras que pudessem servir como instrumento de divulgação da Palavra especialmente na França, sua terra que tanto amava.
No período de 1551 a 1564, dos 500 títulos impressos em Genebra, 160 deles procediam da lavra de Calvino. A obra mais impressa foi o Saltério que passou por 19 edições em Genebra, sete em Paris e três em Lyon. Em 1562, cerca de 27.400 cópias foram impressas em Genebra.[5] Muitos de seus sermões foram impressos. Missionários levavam, juntamente com outras literaturas, seus sermões para França. Por vezes, eles eram lidos nos púlpitos de igrejas que não tinham pastor.[6]
Colportores
Como curiosidade cito que a palavra colportor que deriva do francês colporteur, significa “levar no pescoço”. Esse nome está associado ao costume dos colportores valdenses de levar os escritos sagrados debaixo da roupa (“porteur à col”) presos por uma correia em forma de alça que passa pelo pescoço.
Courthial (1914-2009) ilustra:
Muitos huguenotes naqueles dias, quer estivessem visitando quer estivessem de viagem, levavam no bolso de seu grande casaco uma Bíblia em francês ou uma cópia das Institutas, pessoalmente anotadas e com as passagens-chaves sublinhadas, ou levavam, ainda, algum folheto reformado de Genebra ou Basiléia! Quantos deles foram lançados nas chamas das estacas simplesmente porque tais obras foram descobertas com eles ou em suas casas, na gaveta de uma mesa, num armário ou em outro esconderijo, ou mesmo, em lugar de trabalho ou ainda em sua fazenda![7]
A Academia, portanto, além de um centro intelectual rigoroso, procurando vivenciar, pela graça, a sabedoria de Deus em seus estudos e ensino, era também um grande centro missionário, subordinando todo o saber a Cristo e, partir dele, viver e anunciar o Evangelho a todos os povos.
No entanto, os recursos eram poucos, as perseguições eram intensas – por vezes se juntando autoridades civis e igreja romana contra o protestantismo[8] –, havia lutas internas e externas à Genebra, além do recrudescimento da vigilância contra o pensamento protestante nas cidades e países de predomínio católico – o que seria mesmo de se esperar –, questões variadas a se posicionar e, também, não podemos nos esquecer: pastorear o seu rebanho (Pregando,[9] visitando, aconselhando) mais próximo: a igreja de Genebra, trabalho para o qual se sentia muito pequeno.[10]
Paixão pelas suas ovelhas de Genebra
Em 7 de maio de 1549, escreve a Bullinger (1504-1575). A certa altura, revela o seu profundo amor pela igreja de Deus em Genebra:
Se eu fosse considerar minha própria vida ou meus interesses particulares, deveria dirigir-me imediatamente para outro lugar. No entanto, quando considero o quanto esta região é importante para a propagação do reino de Cristo, tenho boa razão para sentir-me ansioso quanto a que ela seja cuidada com atenção.[11]
Comentando sobre as perseguições aos huguenotes na França, escreveu a Madame de la Roche-Posay (10.06.1549):
Quão alegres devemos estar quando o reino do Filho de Deus, nosso Salvador, multiplica-se e quando a boa semente de sua doutrina se espalha por toda parte (…). Na verdade, é uma espécie de milagre quando Ele se agrada de fazer sua gloriosa luz brilhar no lugar de tão profundas trevas. (…) Reconheça então que nosso bom Senhor estendeu a mão para você, até as profundezas do abismo, e que ao fazer isso Ele expressou uma infinita compaixão por você. Portanto, é seu dever, como nos disse São Pedro, empenhar-se em engrandecer seu santo nome. Pois, ao nos chamar a si mesmo, Ele nos consagra para que toda a nossa vida seja em sua honra, o que não pode acontecer sem que nos retiremos das poluições deste mundo. (…) No entanto, você deve se lembrar que, aonde quer que formos, a cruz de Jesus Cristo nos seguirá, mesmo no lugar onde você possa desfrutar do seu bem-estar e conforto. Considere isso, que mesmo no país onde você tem liberdade, tanto para honrar a Deus como para ser confirmado por sua palavra, você terá que suportar muitos aborrecimentos. Pois esta é a própria maneira pela qual Deus faria prova de nossa fé, e saberia se, ao buscá-lo, temos renunciado a nós mesmos.[12]
Irmãos perseguidos em Lyon
Comentando Filipenses, Calvino mostra um pouco do seu ardente coração pastoral:
Um dos sinais de um genuíno pastor é que, enquanto se encontrar a grande distância, e se detiver voluntariamente por atividades piedosas, não obstante será atingido por preocupação pelo seu rebanho, e terá saudade dele; e, ao descobrir que suas ovelhas se angustiam por sua causa, ele se preocupará com a tristeza delas.[13]
Em 7 de julho de 1553, Calvino escreve mais uma carta aos “prisioneiros de Lyon” que aguardavam a sua condenação por terem aderido à Reforma Protestante. Esta ele dirige em especial a dois deles: Denis Peloquin de Blois e Louis de Marsac. A certa altura, diz:
Meus irmãos (…), estejam certos de que Deus, que se manifesta em tempos de necessidade e aperfeiçoa Sua força em nossa fraqueza, não vos deixará desprovidos daquilo que poderosamente glorificará o Seu nome. (…) E como você sabe, temos resistido firmemente as abominações do Papado, a menos que nós renunciássemos o Filho de Deus, que nos comprou para Si mesmo pelo precioso preço. Medite, igualmente, naquela glória celestial e imortalidade para as quais nós somos chamados, e é certo de alcançar pela Cruz –– por infâmia e morte. De fato, para a razão humana é estranho que os filhos de Deus sejam tão intensamente afligidos, enquanto os ímpios divertem-se em prazeres; porém, ainda mais, que os escravos de Satanás nos esmaguem sob seus pés, como diríamos, e triunfem sobre nós. Contudo, temos meios de confortar-nos em todas as nossas misérias, buscando aquela solução feliz que está prometida para nós, que Ele não apenas nos libertará mediante Seus anjos, mas pessoalmente enxugará as lágrimas de nossos olhos.[14] E, assim, temos todo o direito de desprezar o orgulho desses pobres homens cegos, que para a própria ruína levantam seu ódio contra o céu; e, apesar de não estar neste momento em suas condições, nem por isso deixamos de lutar junto com vocês em oração, com ansiedade e suave compaixão, como companheiros, percebendo que agradou a nosso Pai celeste, em Sua bondade infinita, unir-nos em um só corpo sob Seu Filho, nossa cabeça. Pelo que eu lhe suplicarei que possa garantir a vocês essa graça; que Ele os conserve sob Sua proteção e lhes dê tal segurança disso que possam estar aptos a desprezar tudo o que é deste mundo. Meus irmãos os saúdam mui afetuosamente, e assim também muitos outros. –– Seu irmão, João Calvino.[15]
Louis de Marsac, na prisão, responde-lhe:
Senhor e irmão, eu não posso expressar o grande conforto que recebi… da carta que você enviou para meu irmão Denis Peloquin que passou-a a um de nossos irmãos que estavam numa cela abobadada acima de mim, e leu-a para mim em voz alta, porque eu não pude lê-la por mim mesmo, sendo incapaz de ver qualquer coisa em meu calabouço. Então, eu lhe peço que persevere nos ajudando com semelhante consolação, pois isso nos convida a chorar e orar.[16]
Posteriormente, Louis de Marsac, Etienne Gravot de Gyen, e Marsac, primo de Louis serão condenados à morte, sendo queimados: Morreram cantando o Salmo 9.[17] Aliás, o canto em meio às chamas tornou-se um testemunho fervoroso da fé calvinista na França, conforme apresentaremos alguns exemplos.[18]
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1]Para maiores detalhes, ver: Hermisten M.P. Costa, A Academia de Genebra e a Evangelização. In: Brasil Presbiteriano, São Paulo: Cultura Cristã, janeiro de 2009, p. 4-5.
[2] James MacKinnon, Calvin and the Reformation, London: Penguin Books, 1936, p. 195.
[3] Philip E. Hughes, John Calvin: Director of Missions: In: John H. Bratt, ed., The Heritage of John Calvin, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1973, [p. 40-53], p. 44-45.
[4]T.H.L. Parker em Prefácio à Versão Inglesa do Comentário de Daniel (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 13). Do mesmo modo, veja-se: Elias Medeiros, O compromisso dos reformadores calvinistas com a propagação do evangelho a todas as nações Elias Medeiros (https://www.martureo.com.br/wp-content/uploads/2017/10/o-compromisso-dos-reformadores_elias-medeiros.pdf) (Consultado em 23.12.2023).
[5] Cf. Herman J. Selderhuis; Albert Gootjes, John Calvin: a pilgrim’s life, Westmont, IL: IVP Academic, 2009, 240–241.
[6] Cf. T.H.L. Parker, Os Oráculos de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 42.
[7] Pierre Courthial, A Idade de Ouro do Calvinismo na França: (1533-1633): In: W.S. Reid, ed. Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, [p. 87-109], p. 90.
[8]Calvino escreveu em cerca de 1554: “Assim, em nossos dias, Deus parece ordenar algo impossível quando requer que seu evangelho seja proclamado em cada lugar no mundo inteiro, com o propósito de restaurá-lo da morte para a vida. Pois vemos quão grande é a obstinação de quase todos os homens, e que numerosos e poderosos métodos de resistência Satanás emprega; de modo que, em suma, todos os caminhos de acesso a esses princípios se acham obstruídos. Contudo, cabe aos indivíduos cumprir seu dever e não ceder diante dos impedimentos; e, finalmente, nossos esforços e nossos labores de modo algum deixarão de ter sucesso, mesmo que este ainda não sejam vistos” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker, 1996 (Reprinted), v. 1/1, (Gn 17.23), p. 465).
[9] Estima-se que Calvino durante os seus vinte e cinco anos de Ministério – pregando dois sermões por domingo e uma vez por dia em semanas alternadas – tenha pregado mais de três mil sermões. “260 sermões por ano”, especula Collinson. (Patrick Collinson, A Reforma, Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 115). (Vejam-se: J.H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, p. 126 e T. George, Teologia dos Reformadores, p. 187).
Bouwsma calcula que Calvino tenha pregado cerca de 4 mil sermões depois que voltou para Genebra em 1541, pouco mais de 170 sermões por ano; em média, mais de três por semana. (William J. Bouwsma, John Calvin: A Sixteenth-Century Portrait, New York; Oxford: Oxford University Press, 1988, p. 29). Em 11/9/1542, o Conselho decidiu que Calvino aos domingos, não pregasse mais do que um sermão. (Cf. W. Greef, The Writings of John Calvin: An Introductory Guide, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 110). Ainda em 1539 (20 de abril), Calvino em carta a Farel revela incidentalmente o quão pesada era a sua rotina diária: preparação de sermões, tradução para o francês da Instituição, cartas para responder, interrupções constantes, etc. (Veja-se: John Calvin, To Farel, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 34).
[10] Veja-se: João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, p. 23.
[11] In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 5 (Letters, Part 2), 1983, p. 227.
[12]In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 5 (Letters, Part 2), 1983, p. 229-231.
[13]João Calvino, Gálatas-Efésios-Filipenses-Colossenses, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2010, (Fp 2.26), p. 434.
[14] Comentando o salmo 56.8, Calvino assim se expressou: “…. Se Deus concede tal honra às lágrimas de seus santos [lembrar-se delas], então pode ele contabilizar cada gota do sangue que eles derramaram. Os tiranos podem queimar sua carne e seus ossos, mas seu sangue continua a clamar em altos brados por vingança; e as eras intervenientes jamais poderão apagar o que foi escrito no registro divino das memórias” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 56.8), p. 501).
[15] John Calvin, To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], nº 320.
[16]In: To the Prisoners of Lyons, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], nº 320. Calvino atendeu à solicitação e, em 22/08/1553, escreveu-lhes novamente (Ver: John Calvin, To Denis Peloquin and Louis de Marsache, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], nº 323).
[17]John Ker, Psalms in History and Biography, Edinburgh: Andrew Elliot, 1886, p. 26. (https://archive.org/details/psalmsinhistoryb00kerj/page/26); W. Stanford Reid, The Battle Hymns of the Lord: Calvinist Psalmody of the Sixteenth Century. In: C.S. Meyer, ed. Sixteenth Century Essays and Studies, St. Louis: Foundation for Reformation Research, 1971, v. 2, [p. 36-54], p. 45. (Disponível: https://www.jstor.org/stable/3003691?seq=10#metadata_info_tab_contents).
[18] Vejam-se: John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 299, 301. Encontramos alguns exemplos significativos em: Charles W. Baird, A Liturgia Reformada: Ensaio histórico, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 67ss.
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