Os 200 anos da Primeira Constituição Brasileira e a oficialização da tolerância Religiosa – Parte 1

Uma das metas primeiras do Estado deveria ser respeitar e preservar a liberdade de seus cidadãos individuais. − Quentin Skinner.[1]

Desde 1876 que eu escrevia e pregava contra o consórcio da Igreja com o  Estado; mas nunca o fiz em nome da irreligião: sempre em nome da liberdade. Ora, liberdade e religião são sócias, não inimigas. Não há religião sem liberdade. Não há liberdade sem religião (…) Assim como não admitíamos o Estado cativo à Igreja, não podíamos admitir a Igreja cativa ao Estado. − Rui Barbosa (1849-1923).[2]

Por toda a parte, até hoje, tem sido o sentimento religioso a inspiração, a substância, ou o cimento das instituições livres, onde quer que elas duram, enraízam, e florescem. – Ruy Barbosa.[3]  

 

 Introdução

Em 2024 comemoramos os 200 anos da outorga da primeira Constituição Brasileira. Creio que muitas penas eruditas escreverão sobre esse assunto enfocando sob as mais variadas temáticas e perspectivas. Sem dúvida, seremos em muito enriquecidos com o conhecimento de nossas origens constitucionais.

O objetivo de nosso despretensioso estudo, é analisar de forma relacionante, uma das causas – no caso, a Constituição do Brasil de 1824 –, que contribuíram para a implantação do Protestantismo no Brasil, considerando o aspecto jurídico que facultou legalmente o estabelecimento do Protestantismo em nossa pátria.

Para essa pesquisa, partimos da constatação de que o Art. 5º da Constituição de 1824 foi o primeiro dispositivo legal que abriu a oportunidade para o ingresso e prática de religiões acatólicas no Brasil.

Observamos também, que essa “abertura” religiosa – associada a um processo de desagregação do antigo sistema religioso –, deveu-se em parte a três elementos: 1) A influência iluminista de muitos constituintes, associada à ”Era das Revoluções” então em processo em parte da Europa e na América; 2) O crescente regalismo por parte dos intelectuais brasileiros; 3) A necessidade que o Brasil tinha de importar mão-de-obra de países europeus que, via de regra eram protestantes.

Ainda que sem o olhar arguto de um historiador, procuramos analisar também, por meio de documentação primária (o quanto possível), a evidência da presença protestante no Brasil até a outorga da Constituição de 1824 e depois dela.

Consideramos como evidência da presença protestante a existência de folhetos, Bíblias impressas pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, Livros religiosos, a presença de missionários, a existência de templos, fiéis, cultos, etc.

Fizemos amplo uso dos discursos dos Constituintes em 1823, evitando na maioria das vezes emitir juízo de valor, deixando que eles mesmos falem e, no caso, se mostrem aos leitores.

Procuramos estudar o uso que os missionários fizeram, quando solicitados, da Constituição de 1824, bem como da interpretação do art. 5º e similares, feita por três juristas dos mais respeitados na época (1859): Caetano Alberto Soares (1790-1867), José Tomás Nabuco de Araújo (1813-1878) e Urbano Sabino Pessoa de Melo (1811-1870), que estabeleceram, com o seu parecer, uma jurisprudência favorável à pregação protestante no Brasil.

A nossa abordagem representa um desafio à compreensão tradicional e ainda em vigor, de que o nosso país sempre foi fechado ao protestantismo e, que a sua penetração em solo pátrio deu-se sob perseguições das mais diversas.

O estudo da influência da Constituição de 1824 na implantação do Protestantismo no Brasil é de grande relevância para que se evidencie a relação entre o avanço científico, a filosofia moderna, a evolução das leis e a liberdade religiosa.

Esse tema, mesmo sendo conhecido e citado,  ainda não foi amplamente estudado, exceção feita ao trabalho de Boanerges Ribeiro (1919-2003) (Protestantismo no Brasil Monárquico, São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1973), que analisou o assunto de  forma pouco demorada – mais sem dúvida, inovadora –, objetivando, contudo, aspectos do Protestantismo no Brasil Monárquico. No entanto, as suas observações foram extremamente pertinentes, estabelecendo a relação da Constituição de 1824 com a implantação do Protestantismo no Brasil. Como sempre, em seus trabalhos, temos insights que despertaram e continuam estimulando pesquisadores para os mais variados temas.

Temos também os estudos de  Jean-Pierre Bastian (Historia del Protestantismo en América Latina, México: Casa Unida de Publicaciones, 1990; Protestantismos y modernidad latinoamericana: Historia de unas minorias religiosas activas em América Latina, México: Fondo de Cultura Económica, 1994), que num sentido mais amplo, sustenta que a implantação do Protestantismo no América Latina se deve a um fato “endógeno”, ou seja à luta por uma modernização liberal,  tendo o protestantismo se aliado a determinados grupos liberais (lojas maçônicas, grupos de intelectuais, sociedades parapolíticas, etc.), incrementando assim, esse projeto, somando-se também o interesse econômico britânico, havendo assim, uma força “associativa”.

Outro estudo, não sistemático é verdade (cf. prefácio do autor), encontramos em José Míguez Bonino (1924-2012) (Rostros del protestantismo latinoamericano, Grand Rapids; Buenos Aires: Nueva Creacion, 1995). Bonino segue de perto a “hipótese associativa” de Bastian, tentando contudo, aprofundar algumas de suas questões e responder ao problema: quem são os protestantes que assumem essa “associação”? Concluindo que esses são protestantes “evangélicos”, diríamos de formação conservadora-pietista.

Em outro trabalho, Bonino sustenta que a missão protestante na América Latina deve ser entendida como resultante  do “impacto teológico, cultural, econômico e político do Atlântico Norte”, iniciado no século XIX e ainda presente em nossos dias.[4]

Descrevendo a tese de Bonino, com suas próprias palavras, temos:

Em um momento em que a América Latina emergia lentamente de sua história colonial e buscava sua integração no mundo moderno, o protestantismo significou uma chamada à mudança, à transformação, centrada na esfera religiosa, porém que repercutia na totalidade da vida e da sociedade.[5]

Outro historiador digno de menção, é Mendonça, que em seus penetrantes trabalhos, enfatiza  a questão do conflito entre a o grupo romanizador e antiliberal da Igreja Romana e o Estado brasileiro, regalista e naturalmente liberal[6] bem como o “enfraquecimento da Igreja Católica debaixo do regime do padroado”.[7] Daí concluir: “O universo de ideias do século XIX é o liberalismo.”[8]

Mendonça observa que com a Constituição de 1824, “… foi sendo reduzida a hegemonia católica e os protestantes foram conquistando o seu lugar no espaço social brasileiro”,[9] ainda que permanecessem problemas a necessitar de soluções tais como: o sepultamento dos mortos protestantes, considerando que os cemitérios eram administrados exclusivamente pela igreja romana; a questão das escolas para os protestantes bem como a celebração de casamentos, já que só era reconhecido legalmente os realizados pelos padres.

Ao que parece, a questão que ainda não foi tratada demoradamente por nenhum autor, é a relação entre a Inquisição, o Iluminismo, a Constituição brasileira e o ingresso do Protestantismo no Brasil.

A nossa suspeita é que como a Inquisição  não teve penetração no Brasil, exceto as visitas do Santo Ofício, isso contribuiu para formar uma mentalidade mais tolerante entre os católicos. Onde a Inquisição era voraz em suas práticas, os seus horrores dominavam também as mentes.[10]

Nesses países o protestantismo não teve como florescer senão tardiamente. O Brasil, a rigor falando, não conheceu de forma plena a força dos tentáculos da Inquisição ainda que tenha se ressentindo de sua influência.

Associando-se a isso, temos o liberalismo brasileiro, fruto em grande parte do Iluminismo que teve preponderância no final do século XVIII em Portugal. Onde o Iluminismo teve ascensão, o espírito de tolerância era um ingrediente natural e compulsório. Ele não tardaria a manifestar os seus efeitos em Portugal, especialmente por intermédio das reformas político-pedagógicas do marquês de Pombal.

Como muitos dos Constituintes estudaram em Coimbra após a reforma pombalina, receberam uma influência iluminista e liberal que se manifestará em sua perspectiva religiosa.

O fato é que a Constituição de 1824 ofereceu a base legal para a implantação do culto protestante no Brasil.  A questão é: como isso se deu de forma concreta?

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] Quentin Skinner,  Liberdade antes do Liberalismo, São Paulo: Editora UNESP.; Cambridge University Press, 1999, p. 95.

[2] Rui Barbosa, Discurso no Colégio Anchieta, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1981: In: Vicente Barretto, org.  O Liberalismo e a Constituição de 1988: textos selecionados de Rui Barbosa,   Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 43.

[3] Ruy   Barbosa, Cartas de Inglaterra, 2. ed. São Paulo: Livraria Academica Saraiva & C. – Editores,  1929, p. 433.

[4] J. Míguez Bonino, La Fe en Busca de Eficacia, Salamanca: Sígueme, 1977, p. 36

[5] J. Míguez Bonino, Historia y Misión: In: Vários,  Protestantismo y Liberalismo en América Latina, San José, Costa Rica: Ediciones SEBILA, 1983, p. 21.

[6]Antônio G. Mendonça, A “Questão Religiosa”: Conflito Igreja Vs. Estado e Expansão do Protestantismo: In: Antônio Gouvêa Mendonça; Prócoro Velasques Filho, Introdução ao Protestantismo,  São Paulo: Loyola, 1990, p. 61.

[7] Antônio G. Mendonça,  O Celeste Porvir: A inserção do protestantismo no Brasil,  São Paulo: Paulinas, 1984, p. 21.

[8]Antônio G. Mendonça, A “Questão Religiosa”: Conflito Igreja Vs. Estado e Expansão do Protestantismo: In: Antônio Gouvêa Mendonça; Prócoro Velasques Filho,  Introdução ao Protestantismo, p. 63.

[9] Antônio G. Mendonça,  O Celeste Porvir: A inserção do protestantismo no Brasil,  p. 20.

[10]Como sabemos, nos Países Baixos (sob o domínio espanhol) quando houve panfletagem dizendo que a temida Inquisição Espanhola seria ali implantada, gerou terror no imaginário dos “hereges” (A. Duke, “A legend in the making: news of the ‘spanish inquisition’ in the low countries in German evangelical pamphlets, 1546-1550”. Nederlands archief voor kerkgeschiedenis/dutch review of church history. 77 (2): 125–144). De fato não houve tal implantação. No entanto, a Inquisição ali estabelecida tornou-se mais desapiedada do que aquela, com vários ingredientes de maldade. (Veja-se: Jorge P. Fisher, Historia de la Reforma,  Barcelona: CLIE., (1984), p. 272ss.).

Filipe II  de Espanha (1527-1598) era um católico fervoroso. Foi o primeiro soberano europeu a aceitar os editos de Trento. Ele o fez oficialmente em Madri no dia 12 de julho de 1564. (Cf. Henry A.F. Kamen, Filipe da Espanha, Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 159). Esforçou-se por eliminar a Igreja Reformada de seus domínios. Introduziu na Holanda a força militar por meio de tropas estrangeiras e a Inquisição de forma mais severa. (Veja-se: Frans Leonard Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês, (1630-1654), Recife, Pe.: FUNDARTE, (Coleção Pernambucana, 2ª Fase, v. 25), 1986, p. 25-28).

 

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