A Necessária Contenção da Maldade

“Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (Gn 9.6).

Não há lugar da sociedade ocidental que já não se tenha ouvido falar do dilúvio. Debate-se se foi parcial ou total. A evidência de que tenha sido total é mais forte, pois cobriu todos os montes da Palestina, o que resultaria a submersão de toda a terra. Teriam ficado partes da crosta terrestre emersas? Há a possibilidade quanto aos pontos mais elevados da camada terrestre.

O “catastrofismo”, ramo do chamado criacionismo científico, associa ao dilúvio o momento em que a pangeia (suposto supercontinente original) teria se separado. Pela imensurável pressão de lençóis de água violentamente abrindo caminho em direção à superfície teria levado imensas porções de terra, que se tornariam continentes, a se movimentar para lados opostos. Quando se empurra com força algo que contém coisas soltas em cima e há uma parada repentina, o que está em sua superfície é impulsionado para a mesma direção que se dava o movimento, acumulando-se nessa extremidade. É assim que explica, por exemplo, o surgimento da Cordilheira dos Andes e do Himalaia: porções de terra acumuladas nas extremidades quando cessou abruptamente o movimento de separação da pangeia.

O dilúvio está presente em várias culturas, reconhecido como um dos seus “mitos fundantes”. Nos escritos babilônicos há o famoso épico de Gilgamesh, cujo texto guarda algumas semelhanças com o relato bíblico do dilúvio. Aqui mesmo no Brasil, as etnias ameríndias do tronco macro-Jê, como os Kaingang e Xoklengs, habitantes do sul do país, têm em seus chamados mitos o relato de uma enorme inundação que cobriu toda terra, forçando-os a alcançar refúgio nas mais altas árvores.[1] Essa evidência cultural de narrativas de dilúvio presentes em diversas sociedades é uma das evidências da realidade de um cataclisma geral, que alcançou os quatro cantos do mundo.

Nas Escrituras, o dilúvio foi causado pela extrema maldade do homem. A queda não guardou ou conservou o homem original, como se fosse apenas uma separação de Deus. O Criador era a fonte de vida do ser humano, de onde vinha sua energia-vital para o corpo e para a alma. A queda significou para Adão o mesmo que para uma mão ser decepada do corpo: degeneração, apodrecimento. Não é por acaso que os que recebem nova vida são integrados ao Corpo de Cristo, que é a igreja. Não implica simplesmente algo espacial, como colocar várias pessoas juntas, mas uma rede na qual todos estão interligados, uma teia que concede e mantém vida eterna.

A maldade do homem cresceu não apenas em essência, tornando-se mais e mais densa, mas também em quantidade, à medida que o ser humano se multiplicava rapidamente. Por causa disso, houve um primeiro juízo total e definitivo para aquela primeira humanidade de até então, afetando toda a Criação, mas não significaria o término da história do pecado no mundo. Sem dúvida: “O juízo universal de Deus por meio do Dilúvio é proporcional ao grau de rebelião. A corrupção universal da humanidade leva Deus a corromper a terra inteira. Quando desabam as águas destruidoras, o plano de Deus, a esperança da humanidade e o futuro da criação flutuam na superfície do Dilúvio, na Arca de Noé”.[2]

Como o propósito de salvação ainda não estava completo, o Senhor não exerceu o juízo final. Por isso o que foi usado foi a água. O fogo seria reservado para o juízo final. A água lava. Por meio dela, o Senhor lavou o mundo da maldade que o homem havia tão abundantemente produzido. No final virá o fogo, elemento que purificará definitivamente a Criação, como que a derretendo e a refazendo perfeita como era, e punição eterna para todos aqueles que rejeitaram a salvação, bem como, o diabo e seus anjos.

Ao reconhecermos o dilúvio como uma primeira etapa de juízo para a geração pré-diluviana, torna-se bastante atraente a ideia de Jesus ter se manifestado a eles, no intervalo entre a sua morte e ressurreição, manifestando a condenação deles, por perderem definitivamente a salvação consumada que viria (1 Pe 3.19). A fim de cumprir sua promessa anunciada ao primeiro casal, qual seja, que haveria um descendente da mulher que esmagaria a cabeça da serpente, o Senhor preservou Noé e sua família da corrupção que contaminou toda a terra. Ela se deu pela mistura das linhagens de Adão, que se seguiu através de Sete e Enos, com a de Caim. Colocando isso de outra forma, o dilúvio foi causado pelo casamento misto, os filhos de Deus se casaram com as filhas dos homens:

Os primeiros são os descendentes da família de Sete, que professavam a religião; os segundos são da família de Caim, o apóstata. Os casamentos mistos entre pessoas de princípios e práticas opostas eram necessariamente fontes de grande corrupção. As mulheres, sendo irreligiosas, como esposas e mães, exerceriam uma influência fatal na existência da religião em seus lares e, por conseguinte, as pessoas daquela época posterior afundaram na mais abjeta depravação.[3]

Após o dilúvio, o Criador faz um pacto com Noé, uma aliança de preservação, na qual o Senhor se comprometia a não mais destruiria a terra. A prova disso é que colocou o seu arco nas nuvens (v. 13). O arco era a arma da época. O Arco Íris posto a partir do dilúvio é Deus mostrando que pendurou sua arma e não mais vai destruir a humanidade. No entanto, a maldade humana precisa ser reprimida, até mesmo para que haja condições mínimas de sociedade e sobrevivência para o próprio ser humano. Exatamente nesse texto onde Deus faz a aliança de preservação com Noé, ordena a pena de morte. Esse pacto marca o reinício da humanidade, trazendo agora, necessariamente, tópicos específicos para a realidade do homem caído.

É praticamente uma reedição adaptada da aliança feita com Adão no Éden, agora, para a realidade caída. Por isso, explica Van Groningen: “O mandato real para a humanidade, com vistas ao governo e ao cultivo do cosmos, foi repetido. A ordem da criação permaneceria com efeito (Gn 8.21, 22), e o mandato da humanidade continuaria também”.[4]  Percebe-se nitidamente uma sobreposição das figuras de Adão e Noé. Assim, é ordenado a Noé e sua família, que crescessem e se multiplicassem, que sujeitassem a terra, o mesmo que foi dito ao homem original no paraíso. As adaptações são perceptíveis, por exemplo, quando diz o Criador: “Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento; como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora” (v. 3). Percebe-se como há um novo formato, um ajuste do que foi dito inicialmente a Adão agora a uma nova e diferente realidade.

Exatamente devido ao homem agora ser outro, caído, um ente decepado de sua existência em unidade com o Criador, o fato de ser uma criatura que se degenera no corpo e na alma impõe a necessidade da contenção da maldade. A pena de morte, então, é ordenada como uma necessidade para o mundo caído. É apenas essa medida que é capaz de atenuar e conter a maldade que o homem é capaz de produzir. Claramente, a pena de morte substitui o dilúvio ou catástrofes semelhantes que poderiam ser enviadas pelo Criador. É como se o Senhor dissesse a Noé: “eu não vou mais matar o homem mal; vocês é que vão!” A pena de morte é ordenada! Sem ela, predomina o mal, a iniquidade e toda forma de pecado.

A sociedade humana, à medida que se afasta de Deus, se torna hipócrita e, por meio de sua hipocrisia, o mal se protege no inconsciente do homem pecador. Dessa forma, homens maus que apodrecem corpo e alma longe do Criador, imagens que perderam o referente que as reflete, atribuem bondade à sua própria espécie. O mal, travestindo-se de bem, se protege no inconsciente de ímpios, evitando e se levantando contra a única prática que tem poder para coibir o mal: a pena de morte. O assassinato, crime especialmente punido com a morte, é um homem exterminando o ser criado à imagem do Criador. Colocando isso de outra forma, é também revolta contra Deus, é matar aquele que reflete o Senhor. A mesma maldade que levou ao dilúvio está encubada no coração do ser humano.

A hipocrisia que reveste de bondade o homem é influência direta do pensamento marxista, e outros de linha semelhante. O marxismo é pelagiano. Pelágio foi o grande causador da pior controvérsia enfrentada por Agostinho, possivelmente o maior dos chamados Pais da Igreja. A heresia pelagiana afirmava que o homem nascia, na pior das hipóteses, neutro, sem disposição à maldade. Certamente, isso vai frontalmente contra o que afirmam as Escrituras e a própria realidade. Para Pelágio, o homem se tornava mal por influência, pois tinha em si realmente a capacidade de crescer e viver sem a disposição para o mal. Tal ideia simplesmente acaba com o relato de Gênesis e a doutrina do pecado original.

É assim que pensa boa parte de nossa sociedade: o homem é bom! É o meio que o corrompe. Isso é pelagianismo. Na verdade, o homem é um diabo. Aquele que praticou a maldade das maldades, vendeu e traiu o próprio Filho de Deus encarnado, recebeu essa exata alcunha: “Replicou-lhes Jesus: Não vos escolhi eu em número de doze? Contudo, um de vós é diabo” (Jo 6.70). Não há diferença entre a maldade que o diabo pode produzir e a que um homem pode realizar. É igual! É o Senhor quem não permite que todos produzam todo mal que têm capacidade, caso contrário, significaria a extinção da humanidade pelas mãos do próprio homem. Como digo em outro lugar:

Porém, os seres humanos colhem diuturnamente antecipações de juízo como consequências de seus atos que, em muitos casos, são mortais. Não é por acaso que o dilúvio sobreveio ao mundo por causa de terem se multiplicado os pecados. De igual forma, devido ao ser humano se tornar tão pecador, Deus limitou o tempo de sua vida para conter a onda de iniquidade. Quão desastrosa se transformou a existência deste ser criado à imagem e semelhança de Deus, tornado semelhante aos demônios em seu proceder! Todavia, embora o pecado seja tão destacado e explícito até mesmo aos olhos obtusos de seres humanos, o aguçado olhar do Senhor que a tudo vê não retribui imediata e definitivamente a impiedade dos homens. Pelo menos, não por enquanto.[5]

Mesmo a filosofia chegou à máxima: “O homem é o lobo do homem”. Se a humanidade se destruísse, Deus não poderia executar o propósito de salvação de seus eleitos. Temos visto mães matar seus próprios filhos motivadas por paixões infames. Na questão sexual, na Europa, quer-se legitimar a zoofilia: sexo com animais. Crianças são precocemente erotizadas, destruindo a infância que deveriam ter. Fala-se abertamente que não existe certo e errado, bem e mal. É por isso que a sociedade tem odiado cada vez mais a igreja, pois esta a faz sentir o cheiro de sua putrefação (2 Co 2.16).

Como cristãos, precisamos lutar pelos conceitos aprovados. Compreenda a necessária pena de morte para contenção da maldade. Não se deixe iludir pela hipocrisia, mesmo a loucura, que tomaram conta da sociedade ocidental. A maldade se protege e se esconde na hipocrisia de pecadores travestidos de bondade. O homem natural é um diabo e precisa que sua maldade seja coibida. Não existe liberdade para seres malignos. Mesmo o crente, por ainda ser pecador, é chamado “servo”, “escravo” de Deus, pois está obrigado à obediência para o seu próprio bem. A liberdade dos filhos de Deus não é liberdade para fazerem e buscarem o que quiserem, mas para se sujeitar à vontade e ao propósito do Senhor. Deus não precisa de nossa obediência! Nós é que precisamos obedecê-lo. É guardando os mandamentos de Deus que antecipamos, na medida do possível, a vida futura, a vivência da nova natureza.[6]

Busque viver e defender tudo o que é certo e aprovado, lembrando que mesmo a morte, para aqueles que estão em Cristo, é glória. Uma vez que Cristo venceu a morte ela se tornou nossa aliada.

 

Rev. Jair de Almeida Junior

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[1] “O profetismo entre os tupi-guaranis é, em si mesmo, um anúncio: a derrocada da sociedade conforme eles conheciam. Os profetas vaticinavam a “Terra sem Mal” (ywy mara eÿ), um paraíso imune a presente existência (ywy mba’emegua – “terra maligna”) que deve ser repudiada. É o local de descanso dos deuses, onde as caças são alvejadas voluntariamente por flechas que a si mesmas se disparam, onde o milho nasce e cresce sem a agência humana, terra habitada por videntes e não existem alienações. Era o ‘Éden perdido’, onde residiam os homens antes do dilúvio que destruiu a primeira humanidade e privou-a da morada comum com os deuses… A sociedade Kaingang é modelada pelo seu conjunto de crenças e mitos fundantes. Para os kaingangs, a origem do universo se resume ao surgimento do homem, tendo saído da terra. O mito de origem, na cultura kaingang, se confunde com o do dilúvio. Neste se percebe certa associação ou semelhança do homem com o animal, uma vez que os primeiros kaingangs eram homens e macacos ao mesmo tempo. Aqueles que durante o dilúvio se refugiaram no cume de Krinjijimbé, uma provável referência a Serra do Mar, são os descendentes dos homens, enquanto aqueles que permaneceram nas árvores assumiram, definitivamente, a forma símia. Ítala Becker considera que, falando-se genericamente, o mito de origem dos kaingangs não difere substancialmente daquele encontrado no Livro do Gênesis da tradição cristã: nele, o homem também veio da terra (BECKER, 1999, pp. 274, 307). Todavia, estritamente falando, são narrativas bem diferentes. O mito do dilúvio kaingang se distingue daquele encontrado nas Escrituras cristãs já a partir de sua motivação: não foi produto da ira dos deuses, ou do Criador contra a criatura. Para eles, simplesmente houve uma enorme inundação que cobriu toda terra, deixando de fora, tão-somente, o cume da montanha Krinjijimbé (BORBA, 1908, p 23)” (ALMEIDA JR., Jair. A Religião Contestada. São Paulo: Fonte Editorial, 2011, pp. 87, 88).

[2] WALTKE, Bruce K. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 351.

[3] JAMIESON, Roberto (et. al.). Comentario Exegetico y Explicativo de la Biblia. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones, 1988, Tomo 1, p. 25 – minha tradução.

[4] VAN GRONINGEN, Gerard. Revelação Messiânica no Velho Testamento. Campinas: Luz para o Caminho, 1995, p. 112.

[5] ALMEIDA JR., Jair. O Caminho de Deus é Perfeito. São Paulo: Publicações Reformata, 2022, p. 763.

[6] “(…) é somente quando os crentes forem glorificados que o mundo criado será libertado do seu “cativeiro da corrupção” (v. 21). Paulo raramente se refere ao mundo criado, e mesmo aqui ele traz os propósitos mais amplos da criação de Deus para o quadro com o objetivo de ilustrar e acentuar a redenção final do crente. No entanto, esses versículos revelam de forma importante que Paulo manteve a robusta esperança do Antigo Testamento de que o propósito de Deus se estenda além da esfera dos humanos para abranger toda a sua criação” (MOO, Douglas. A Theology of Paul and his Letters. Grand Rapids: Zondervan Academic, 2021, pp. 227, 228 – minha tradução).

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