A Voz Presbiteriana na Imprensa Evangélica − Breve Amostragem Documental
Introdução
A história do Protestantismo no Brasil está intimamente ligada aos processos de modernização política, social e cultural que marcaram o século XIX. Embora tenha chegado ao país por meio de imigrantes e missionários estrangeiros, sua consolidação se deu em meio a disputas por espaço público, reconhecimento legal e liberdade de culto.
Inicialmente tolerado por força de tratados diplomáticos e da Constituição de 1824, o Protestantismo encontrou na Proclamação da República, em 1889, um marco decisivo e uma oportunidade histórica para reivindicar não apenas a liberdade de culto, mas também a igualdade jurídica e institucional diante do Estado.
A separação entre Igreja e Estado e o reconhecimento jurídico das confissões religiosas não católicas tornaram-se bandeiras fundamentais para os evangélicos, que passaram a ocupar o espaço público com maior confiança e legitimidade.
Este artigo busca compreender como o Protestantismo brasileiro, especialmente o presbiteriano, se articulou nesse novo contexto republicano, contribuindo para o debate público e influenciando a configuração institucional do país. Por meio de discursos, editoriais e reivindicações – com destaque para os publicados na Imprensa Evangélica – observa-se a construção de uma consciência pública protestante que via na República não apenas uma mudança de regime, mas a possibilidade concreta de uma nova ordem social fundada na liberdade, na justiça e na plena separação entre Igreja e Estado.
O entusiasmo político era acompanhado por uma profunda expectativa de reconhecimento religioso, revelando o amadurecimento de uma visão teológica e cidadã comprometida com os princípios do Evangelho e com os ideais republicanos.
1. A Tolerância Inicial ao Protestantismo
Os Tratados de 1810 firmados entre Brasil e Inglaterra − o Tratado de Aliança e Amizade e o Tratado de Comércio e Navegação −, juntamente com a Constituição de 1824, foram fundamentais para a implantação do Protestantismo no Brasil. Esses marcos legais abriram caminho para o ingresso de imigrantes que, além de sua cultura, trouxeram consigo os valores de uma religião até então pouco conhecida no país.
Na esteira desse processo, chegaram os missionários, cujo objetivo não se limitava a pastorear os imigrantes, mas incluía também a evangelização dos nativos. Para isso, lançaram mão de diversos recursos: distribuição de Bíblias − prática já documentada em 1816 −, panfletos, sermões, pregações, conversas e até polêmicas públicas. Aos poucos, o Protestantismo foi conquistando seu espaço, enfrentando, é verdade, perseguições episódicas. No entanto, recorria-se com frequência à legislação vigente, e, em geral, os protestantes eram atendidos pelas autoridades constituídas.
No Brasil imperial, não se verificou um “rio de sangue” decorrente de perseguições sistemáticas por parte da Igreja Romana ou da população. Embora tenham ocorrido episódios de intolerância − por vezes intensos −, estes foram localizados e não institucionalizados. A mentalidade brasileira, moldada em grande parte pela miscigenação de povos e raças, favorecia uma postura mais tolerante.
A ausência da Inquisição como instituição permanente no Brasil − limitada a visitas do Santo Ofício − também contribuiu para essa tolerância. Em países onde a Inquisição atuou com maior rigor, seus horrores marcaram profundamente a consciência coletiva, dificultando o florescimento de outras confissões religiosas. O Brasil, embora tenha sentido sua influência em regiões como Bahia, Grão-Pará e Pernambuco, não experimentou plenamente os efeitos de seus tentáculos.
Outro fator relevante foi a presença do liberalismo entre os intelectuais brasileiros, herdeiro direto do Iluminismo europeu. Este, especialmente no final do século XVIII, teve forte expressão em Portugal, manifestando-se por meio de reformas como as promovidas pelo marquês de Pombal. Onde o Iluminismo floresceu, o espírito de tolerância tornou-se um valor natural e, em certa medida, compulsório.
Muitos dos constituintes brasileiros de 1823 estudaram em Coimbra após a reforma pombalina de 1759, absorvendo influências iluministas e liberais que se refletiram em sua visão religiosa e política.
Por fim, o fator econômico também desempenhou papel significativo, como se evidencia em diversos discursos proferidos na Assembleia Constituinte de 1823.
Em síntese, a Constituição de 1824 ofereceu a base legal para a implantação do culto protestante no Brasil, bem como para a prática religiosa não católica por parte dos próprios brasileiros.
2. Da tolerância à igualdade: o clamor por liberdade religiosa
Após o estabelecimento do Protestantismo no Brasil, os seus adeptos passaram a reivindicar não apenas tolerância, mas igualdade na liberdade de cultos. Esse anseio tornou-se mais evidente com a Proclamação da República, em 1889. Na semana seguinte ao evento, a Imprensa Evangélica publicou um editorial entusiástico intitulado “Estados Unidos do Brazil”,[1] no qual se celebrava o novo regime como um marco histórico.
O articulista inicia afirmando:
Acabamos de presenciar o acontecimento mais estupendo e extraordinário que se tem dado no século presente. Já está consumado, já ninguém duvida de sua realidade, mas tão maravilhoso ele se apresenta aos nossos olhos, que mais parece um sonho ilusório do que um fato real e acabado.
Contudo, o entusiasmo não se restringia à mudança na forma de governo. O verdadeiro motivo de júbilo, segundo o editorial, era o fato digno de orgulho: O Brasil “ter realizado a reforma mais radical sem deixar perceber a mínima alteração na ordem pública, e no sossego da nação.”
O texto destaca que, mesmo diante de tamanha transformação, e ao mesmo tempo de paz, não houve qualquer mudança nem “oscilação no câmbio, que se altera a qualquer queda ou mudança no ministério!”.
O editorial encerra com uma declaração de apoio à República e com a expectativa de que ela promova a liberdade religiosa plena:
Entretanto, vendo no governo atual ordem, liberdade e garantia, e esperando dele ainda a completa liberdade de cultos, não pode deixar de aderir de coração à forma de governo e prestar-lhe todo o seu apoio.
Todos os acatólicos, que no antigo regime apenas tinham uma tolerância para o seu culto e isto, para humilhação, em casa sem forma exterior de templo, ficarão sumamente satisfeitos vendo agora surgir a mais plena liberdade de cultos ou antes a plena liberdade de cultos que é o que deve ser decretado pela república.[2]
No periódico metodista, Expositor Christão, encontramos alegria semelhante:
15 de novembro, é hoje, é o dia mais glorioso na história desta grande nação. Pois este traz mais do que a liberdade dos nossos corpos. Com ele raiou a liberdade de consciência, a liberdade religiosa.[3]
Esse glorioso dia augura para todas as classes a mais plena liberdade religiosa e de consciência, de modo que ninguém, quer católico, quer acatólico seja estigmatizado pelas convicções sólidas e honestas que abrace.[4]
Em resumo, os protestantes viam na República não apenas uma mudança política, mas uma chance real de exercer sua fé com liberdade e dignidade − algo que antes era apenas tolerado, e agora se tornava um direito garantido.
A esperança outrora acalentada tornava-se, agora, uma exigência legítima. O texto recorda que, sob o regime monárquico, os acatólicos eram apenas tolerados, e isso de forma humilhante − limitados ao culto doméstico, sem direito à edificação de templos com forma exterior. A expectativa era que a República decretasse, sem demora, a plena igualdade de cultos: “O governo provisório da República não deve demorar por mais tempo o decreto da abolição da união da igreja com o estado, estabelecendo a plena igualdade de cultos no Brasil.”[5]
O editorial também interpela diretamente os republicanos, apelando ao ideal de justiça:
Ora, como poderá o governo da República sustentar por mais tempo a grande injustiça, ou antes o odioso monopólio, que até a própria monarquia já não podia mais suportar?
E prossegue, reafirmando os princípios republicanos:
O verdadeiro governo republicano deve ser a última expressão da liberdade, da igualdade da fraternidade; enquanto porém se vir ainda uma religião privilegiada e cheia de regalias para uns, e as outras apenas toleradas para outros enquanto se observar que para uns, o estado faz a despesa do culto, e para outros nega-lhes até o direito de terem uma igreja com forma exterior de templo, quando ambos pagam, na mesma razão, os direitos para as despesas da nação; enquanto se vir esta injustiça revoltante de uns quererem ter mais direitos de que os outros, não se pode admitir que haja liberdade, igualdade e fraternidade no Brasil. [6]
A Imprensa Evangélica também defende que cada religião seja mantida exclusivamente por seus próprios fiéis, sem subvenção estatal:
Cada religião deve manter-se à custa de seus próprios fiéis; aqueles que desejam ver nos templos ricos parâmetros, luxuriosos enfeites, e deslumbrantes decorações, abram a bolsa e paguem convenientemente esta regalia, e não queiram que os cofres do estado, que contém só o suor dos que trabalham, a satisfaçam esta despesa vaidosa e inteiramente desnecessária.
A manutenção de cada culto deve correr exclusivamente por conta de seus respectivos crentes; cada cidadão deve pagar aquilo de que goza; obrigar porém, a todos os cidadãos a concorrem para o subsídio de um culto que só parte da nação aceita, é isto uma injustiça revoltante, é uma tirania que a República não deve de modo algum tolerar por mais tempo.[7]
Em 07 de dezembro de 1889, novo editorial reafirma a confiança na República e antecipa o declínio do prestígio católico romano:
Estamos satisfeitos com o advento da República porque podemos ter a liberdade e justiça, que reclamamos há muitos anos.[8]
Temos confiança nos homens que hoje dirigem os altos negócios do Estado e esperamos ter em breve, plena liberdade para os nossos cultos e sabemos que o romanismo perderá grande parte do prestígio que nunca soube merecer.[9]
Por fim, conclama-se o povo evangélico a solidificar a liberdade conquistada por meio da proclamação do Evangelho, lançando as bases da nova pátria sobre os princípios da fé cristã.
No mesmo editorial de 07 de dezembro de 1889, a Imprensa Evangélica conclama o povo evangélico a solidificar a liberdade recém-conquistada por meio da proclamação do Evangelho. A tarefa, segundo o articulista, ainda não estava concluída:
A nossa tarefa não está completa. (…) Às Igrejas Evangélicas compete o trabalho de lançar as bases da liberdade da pátria sobre a Rocha dos séculos, para que seja conhecida a religião pura sem a qual não pode haver verdadeira liberdade em país qualquer.[10]
O texto prossegue, afirmando que:
Por mais que proclamem a liberdade e a fraternidade no Brasil ou em outro país qualquer, onde não haja uma aceitação geral da Sagrada Escritura, de seus princípios divinos e de sua moral pura e severa, não pode haver uma República bem assentada e bem dirigida.[11]
A Imprensa Evangélica manteve sua campanha em favor da liberdade de culto. Na edição de 14 de dezembro de 1889, propôs demonstrar que o católico romano praticante − aquele que segue fielmente os mandamentos da “Santa Madre Igreja” − representava uma minoria entre os 15 milhões de habitantes do Brasil.[12]
Já no editorial de 21 de dezembro de 1889, o tom se torna mais moderado. Reconhecendo os desafios do novo regime, o periódico conclama as igrejas evangélicas à oração: “Atualmente o horizonte está carregado. Assinalamos tudo isto em nossas colunas, não para causar desânimo no espírito de qualquer pessoa, mas para chamar as igrejas evangélicas à oração.”[13]
Na última edição daquele ano, publicada em 28 de dezembro de 1889, a Imprensa Evangélica rememora os fatos marcantes daquele ano, conclamando a igreja a agradecer a Deus pela República e a interceder pelo Governo provisório.
Outro motivo, e é o último que mencionaremos, porque o ano agora findo merece que especialmente o povo brasileiro lhe conserve memória fiel é a queda da monarquia e o estabelecimento de um governo republicano entre nós.(…)
Peçam todos, pois, a bênção de Deus sobre o governo provisório e todas as autoridades estabelecidas. E sejam estas justas para com todos e tenham diante de si sempre o temor de Deus.[14]
Finalmente, em 24 de fevereiro de 1891, é promulgada a “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.” O artigo 72, intitulado “Declaração de Direitos”, consagra os princípios tão aguardados pelos protestantes:
- 2º: Todos são iguais perante a lei.(…)
- 3º: Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.
- 7º: Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados.
- 28: Por motivo de crença ou função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos, nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever cívico.
O desejo acalentado por décadas − a separação entre Igreja e Estado e a plena liberdade religiosa − tornava-se, enfim, realidade jurídica. Contudo, a articulista, perseguições se intensificariam a partir desse momento. Essa nova fase, porém, escapa ao escopo deste artigo e à competência da autor.[15]
Considerações Finais
A promulgação da Constituição de 1891, com seus dispositivos sobre liberdade religiosa, coroou décadas de expectativa e luta. Contudo, como o próprio artigo sugere, os desafios não cessaram com o reconhecimento legal. A nova fase exigiria vigilância, oração e ação contínua das igrejas evangélicas, para que a liberdade conquistada fosse solidificada sobre os princípios eternos da Palavra de Deus.
Ao contemplarmos o entusiasmo dos missionários protestantes diante da Proclamação da República, somos confrontados com um contraste doloroso. Aqueles homens e mulheres que, com fé e coragem, celebraram o advento de um regime que prometia liberdade, justiça e igualdade, talvez hoje se espantassem ao ver os rumos tomados pela nação.
A República, que outrora foi saudada como a expressão máxima da liberdade religiosa e da separação entre Igreja e Estado, tornou-se, em muitos aspectos, palco de confusão moral, relativismo ético e desprezo pela verdade. A liberdade tão desejada foi, em parte, convertida em licenciosidade; a igualdade, em ideologia; e a justiça, em instrumento de disputas políticas.
É possível que os missionários do século XIX, que viam na República uma oportunidade para lançar os fundamentos de uma pátria edificada sobre os princípios do Evangelho, hoje se perguntassem: “Onde está a Rocha dos séculos sobre a qual esperávamos ver a liberdade construída?”
Essa reflexão, porém, não deve nos conduzir ao desânimo, mas à renovação do compromisso com o Evangelho eterno. Se outrora os reformadores protestantes ergueram sua voz com ousadia para proclamar a verdade central da fé cristã – que o ser humano é justificado unicamente pela graça de Deus, mediante a fé em Jesus Cristo, e não por méritos ou obras –, hoje somos igualmente chamados a reafirmar essa verdade com convicção, humildade e coragem. Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é o fundamento da nossa salvação e da nossa esperança. Nele, e somente nele, encontramos a justiça que nos reconcilia com Deus e nos liberta para amar o próximo.
A tarefa permanece: edificar uma sociedade verdadeiramente livre e justa sobre o alicerce inabalável da Palavra de Deus. Pois onde a graça é esquecida e a fé é substituída por ideologias humanas, a justiça se torna frágil e a liberdade, ilusória.
Que a igreja evangélica brasileira, em meio às tensões de nosso tempo, não perca sua voz profética, nem se acomode à cultura dominante. Que sejamos, como nossos antecessores, instrumentos da verdade, proclamadores da graça e defensores da liberdade que só Cristo pode oferecer. Amém.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Imprensa Evangélica, 23/11/1889, p. 369-370.
[2] Imprensa Evangélica, 23/11/1889, p. 370. Para uma análise mais ampla do contexto social, político, econômico e intelectual deste período, veja-se: José Murilo de Carvalho, Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 15-41.
[3] Expositor Christão, 01/12/1889, p. 1.
[4] Expositor Christão, 01/12/1889, p. 1.
[5] Imprensa Evangélica, 23/11/1889, p. 370.
[6] Imprensa Evangélica, 30/11/1889, p. 377.
[7] Imprensa Evangélica, 30/11/1889, p. 378.
[8] Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 385.
[9] Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 386.
[10]Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 385.
[11] Imprensa Evangélica, 07/12/1889, p. 385.
[12] Imprensa Evangélica, 14/12/1889, p. 393-394.
[13] Imprensa Evangélica, 21/12/1889, p. 401.
[14] Imprensa Evangélica, 28/12/1889, p. 410.
[15] Um estudo ainda considerado pioneiro sobre esse tema é o de Boanerges Ribeiro, Igreja Evangélica e República Brasileira (1889–1930), publicado em São Paulo pela editora O Semeador, em 1991, com 317 páginas.
