O Natal e a Glória da Encarnação: A Obra Trinitária da Redenção

Veio para salvar a todos mediante a sua pessoa, todos, digo, os que por sua obra renascem de Deus, crianças, meninos, adolescentes, jovens e adultos. Eis por que passou por todas as idades, tornando-se criança com as crianças, santificando as crianças; com os adolescentes se fez adolescente, santificando os que tinham esta mesma idade e tornando-se ao mesmo tempo para eles o modelo de piedade, de justiça e de submissão. Jovem com os jovens, tornou-se seu modelo e os santificou para o Senhor; da mesma forma se tornou adulto entre os adultos, para ser em tudo o mestre perfeito, não somente quanto à exposição da verdade, mas também quanto à idade, santificando ao mesmo tempo os adultos e tornando-se também modelo para eles. E chegou até a morte para ser o primogênito entre os mortos e ter a primazia em tudo, o iniciador da vida, anterior a todos e precedendo a todos. – Irineu (c. 130-200).[1]

O Natal é a celebração central da fé cristã, momento em que o eterno Verbo de Deus se faz carne e habita entre nós. Este evento transcende a mera história, pois revela a profundidade da graça divina que penetra a condição humana marcada pelo pecado, oferecendo esperança e redenção. A encarnação de Jesus Cristo é a manifestação suprema do amor de Deus, que, em sua misericórdia, assume nossa fragilidade para nos restaurar e reconciliar consigo. (Jo 1.14).[2]’

1. A Identidade de Cristo: Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem

Então o que os chamados Sábios e Prudentes pensam desse grande milagre? Bem, eles preferem pensar nele como uma bela história, em vez de um fato sólido. Assim, quando se trata de Cristo aparecer como homem e Deus ― claramente uma consideração divina ― eles têm problemas. Pensam que está abaixo de si crer em coisas que não são humanas, que há coisas que são, de fato, divinas. (…) Para eles, é simplesmente embaraçoso que Deus ande por aí em um corpo estranho e desajustado. Para nós, é claro, é uma visão genuinamente encorajadora. Dito de outra forma, que certamente parecerá perversa aos Tolos e Imprudentes, quanto mais impossível lhes parecer o nascimento virginal de um ser humano, mais divino nos parecerá. – Agostinho (354-430).[3]

Jesus Cristo é a perfeita união da divindade e humanidade, o Filho eterno de Deus que se fez homem para habitar entre nós. Ele não é apenas um mestre ou profeta, mas o Salvador que confronta a realidade do pecado humano e oferece a graça que transforma. Sua pessoa é o centro da fé cristã, pois somente nele encontramos a plenitude da salvação e a verdadeira revelação do caráter e vontade de Deus. (Is 9.6).

No entanto, somente os eleitos de Deus conseguem ter a visão real da encarnação:

Cristo se fez conhecido e exibido à vista de todos, porém somente os eleitos são aqueles a cujos olhos Deus abre para que o busquem por meio da fé. Aqui também se exibe um prodigioso efeito da fé, pois por meio dela recebemos a Cristo como ele nos foi dado pelo Pai – ou seja, como aquele que nos libertou da condenação da morte eterna e nos fez herdeiros da vida eterna, porque, pelo sacrifício de sua morte, ele fez expiação por nossos pecados para que nada nos impeça de ser reconhecidos por Deus como seus filhos. Portanto, visto que a fé abraça a Cristo, com a eficácia de sua morte e o fruto de sua ressurreição, não carece surpresa se por meio dela obtivermos igualmente a vida de Cristo.[4]

2. O Espírito Santo no Ministério de Cristo

Desde o momento da concepção virginal, o Espírito Santo está presente na vida de Jesus, operando o milagre da encarnação. No batismo de Jesus, o Espírito desce sobre Ele em forma de pomba, sinalizando a unção para a missão redentora que se iniciava na história. Durante todo o ministério terreno, o Espírito Santo guia, fortalece e capacita o Filho para cumprir a vontade do Pai. Essa íntima comunhão entre as três pessoas da Trindade revela que a obra da salvação é fruto da ação conjunta do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

O Espírito Santo não apenas acompanha Jesus, mas é o agente que manifesta a presença e o poder de Deus em sua missão. Ele capacita Jesus para pregar o evangelho, realizar milagres, expulsar demônios e anunciar o Reino de Deus. A ação do Espírito é contínua e vital, mostrando que a missão de Cristo é sustentada e glorificada pela presença divina que habita nele. (Lc 4.1,18).

Calvino (1509-1564) resume:

Verdadeiramente Cristo foi santificado desde a primeira infância para que pudesse santificar em si mesmo seus eleitos, de qualquer idade e sem distinção. Ora, para destruir a culpa da desobediência que tinha sido cometida em nossa carne, ele assumiu essa mesma carne, para que, nela, por nossa causa e em nosso lugar, pudesse prestar perfeita obediência. Assim, ele foi concebido pelo Espírito Santo para que, impregnado plenamente com a santidade do Espírito, pudesse transmiti-la a nós. Se temos em Cristo o mais perfeito exemplo de to­das as graças que Deus concede aos seus filhos, a esse respeito, evidentemente, ele também é prova de que a idade da infância não é totalmente incompatível com a santificação. Seja como for, consideramos fora de dúvida que o Senhor não leva desta vida nenhum de seus eleitos sem que primeiro seja santificado e regenerado por seu Espírito.[5]

3. A Condição Humana: Pecado e a Necessidade da Graça

A humanidade está profundamente marcada pelo pecado, uma condição que separa o ser humano da glória e comunhão com Deus. Essa realidade de alienação e fragilidade impede que alcancemos a justiça por nossos próprios méritos. O Natal nos lembra que, apesar dessa condição, Deus oferece uma graça abundante e imerecida por meio da encarnação de Cristo.[6]

A encarnação é o gesto supremo dessa graça, pois Deus se faz vulnerável, assumindo a natureza humana para nos resgatar. Essa ação divina revela que a salvação não é fruto do esforço humano, mas um dom gratuito que transforma e restaura. Em Jesus, a graça de Deus se manifesta plenamente, oferecendo perdão, reconciliação e vida nova. (Rm 5.8).

4. Cristo como Personificação da Graça

Jesus é a encarnação da graça e da verdade, a manifestação visível do amor imerecido de Deus. Sua vida, ensinamentos, morte e ressurreição revelam a profundidade da misericórdia divina que perdoa, restaura e transforma. A graça que Ele oferece não apenas cobre o pecado, mas capacita o crente a viver uma nova vida em comunhão com Deus, marcada pela santidade e pelo amor. (Ef 2.8).

5. A Missão Redentora de Cristo

A encarnação inaugura a missão redentora de Deus no mundo. Jesus veio revelar o Pai, reconciliar o seu povo e inaugurar o Reino de Deus. Sua missão é marcada pelo serviço humilde, pelo sacrifício e pelo amor incondicional, culminando na cruz, onde a justiça é cumprida, o pecado é vencido e a graça plenamente revelada (Mc 10.45).[7]

O Espírito Santo continua essa missão, aplicando a obra de Cristo na vida dos crentes, guiando-os em santificação, fortalecendo-os na fé e capacitando-os para o testemunho no mundo. Assim, a missão redentora é uma obra trinitária que envolve a ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo em favor da humanidade. (Jo 14.26; Ef 1.3-14).

6. A Singularidade do Cristianismo e a Centralidade de Cristo

O cristianismo distingue-se por sua ênfase na pessoa histórica e divina de Jesus Cristo, que é a revelação definitiva de Deus. A fé cristã não se baseia em ideias abstratas, mas na experiência viva do encontro com Cristo, que transforma vidas pelo poder do Espírito Santo. (Jo 14.6).

Essa singularidade convida cada pessoa a refletir sobre sua própria condição diante de Deus, reconhecendo a necessidade da graça e respondendo com fé ao chamado para viver em conformidade com o Senhor. A centralidade de Cristo é o fundamento da esperança e da transformação pessoal e comunitária.[8]

7. Cristo, a Cruz e a Ressurreição: A Vitória sobre o Pecado

A encarnação aponta para a cruz, onde a justiça e a misericórdia de Deus se encontram. A cruz revela a gravidade de nossa ofensa ao Deus santo, a santa majestade de Deus e, também, a grandeza incomensurável e incompreensível de seu amor. Na cruz, Cristo assume o peso do pecado humano, oferecendo-se como sacrifício perfeito e definitivo. A ressurreição confirma a vitória sobre a morte e inaugura a nova criação. (1Co 15.3-4).

O Espírito Santo ressuscita e vivifica os crentes, garantindo a aplicação contínua dessa vitória em sua vida. Por meio do Espírito, os fiéis são capacitados a viver na liberdade da graça, superando o poder do pecado e caminhando em santidade. (Rm 8.11).

8. O Espírito Santo e a Glória de Cristo

O Espírito Santo não apenas acompanha Cristo em sua missão, mas também o glorifica. Ele revela a glória do Filho aos corações humanos, convencendo-os do pecado, da justiça e do juízo. Além disso, o Espírito capacita a igreja a viver na luz da encarnação, sustentando os fiéis na fé e na esperança. (Jo 16.13).

A         ação do Espírito é essencial para que a graça de Deus se torne eficaz na vida dos crentes, promovendo a transformação interior e a comunhão com Deus. Assim, o Espírito Santo é o agente que torna presente e atual a glória de Cristo no mundo.

9. O Natal na Tradição Litúrgica e Cultural

Ao longo dos séculos, o Natal tem sido celebrado como a festa da encarnação, enriquecido por símbolos — alguns até distantes do evento em si — mas que, de diferentes formas, procuram traduzir a alegria da presença de Deus entre nós. A luz que rompe as trevas, o presépio que revela a humildade do Salvador e os cânticos que anunciam a paz conduzem a comunidade a contemplar o mistério da graça divina.
“Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz” (Is 9.6).

Essas tradições litúrgicas e culturais não apenas comemoram um evento passado – independentemente de sua cronologia – mas, em muitos casos, procuram renovar a experiência da presença de Deus no presente, convidando os fiéis a viverem na esperança e na alegria da salvação.

10. A Relevância Contemporânea do Natal

Em um mundo marcado pelo pecado, injustiça e sofrimento, o Natal permanece como um chamado a um encontro pessoal com Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A encarnação, a começar por uma fé pessoal em Jesus Cristo, desafia as estruturas de poder e convida à solidariedade, à paz e ao amor.

Celebrar o Natal é afirmar que Deus se importa com a humanidade e oferece graça para o nosso arrependimento e fé; restaurando a comunhão perdida, renovando a esperança em meio às trevas. É um convite para que cada pessoa reconheça sua condição de pecado, aceite a graça de Deus e viva uma vida transformada pelo Espírito Santo. (Jo 3.16).

Considerações finais

O Natal é a celebração da encarnação do Filho eterno de Deus, que, sob a ação contínua do Espírito Santo, veio ao mundo para salvar uma humanidade perdida no pecado, constituindo assim, a Igreja.  Ele é a personificação da graça divina, o centro da revelação e o Senhor da glória.

Reconhecer essa verdade é aceitar a oferta de salvação e viver na luz da redenção que transforma e renova. Fora de Cristo, não há salvação, mas nele encontramos a plenitude da vida e da graça, sustentados pela ação contínua do Espírito Santo que nos guia e fortalece.

Este mistério da encarnação e da presença do Espírito Santo no ministério de Cristo é a fonte de nossa esperança e a base para uma vida de fé autêntica, marcada pela justiça e graça divinas, pela transformação e pelo amor.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1985, II.22.4.

[2] “O paradoxo é surpreendente [Jo 1.14]. O Criador assumiu a fragilidade humana de suas criaturas. O eterno entrou no tempo. O onipotente fez-se vulnerável. O santíssimo expôs-se à tentação. E por fim o imortal morreu” (John Stott, O Incomparável Cristo, São Paulo: ABU., 2006, p. 33).

[3]Augustine of Hippo, Sermons to the People: Advent, Christmas, New Year’s, Epiphany, New York: Doubleday,  2002, (Sermo, 184), (eBook Kindle) (Página 56 de 232).

[4]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.16), p. 133-134. Do mesmo modo Owen (1616-1683): “A glória de duas naturezas de Cristo numa única pessoa é tão grande que o mundo incrédulo não pode ver a luz e a beleza que irradiam dela.” (John Owen,  A Glória de Cristo,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 24).

[5]João Calvino, As Institutas, IV.16.18..

[6] “Ao longo de toda a sua vida, os homens se afastam cada vez mais de Deus, até Ele, com sua própria mão os traga de volta ao caminho da qual se desviaram.” (João Calvino, Pastorais (Série Comentários Bíblicos) (Portuguese Edition). (Tt 3.5) (p. 353). Editora Fiel. Edição do Kindle).

[7]“Pois foi necessário que o Filho de Deus se tornasse homem, e ser um participante de nossa carne, para que pudesse ser o nosso irmão: foi necessário que, pela morte, ele se tornasse um sacrifício, para que fizesse com que seu Pai fosse propício a nós” (John Calvin, Commentary on the Epistle to the Colossians, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (reprinted), v. 21, (Cl 1.22), p. 159).

[8] “Somos salvos em Cristo, e somente por Cristo; não por seu ensino, mas pelo que Ele fez, pelo que Ele realizou, e pelo que Deus fez em Cristo e por intermédio dEle” (D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 151).