A Fé que Não Salva: O Perigo de Crer Sem Cristo

Introdução à série

 

A presente série de cinco reflexões teológicas tem como propósito examinar, à luz das Escrituras e da tradição reformada, a natureza da fé salvadora e os perigos de uma crença desvinculada da pessoa e obra de Jesus Cristo. Em tempos marcados por religiosidade superficial, relativismo moral e confusão doutrinária, torna-se urgente reafirmar que a justificação diante de Deus não se dá por méritos humanos, nem por uma fé genérica, mas exclusivamente pela graça, mediante a fé em Cristo — o único justo que pode justificar o pecador.

 

Partindo de uma abordagem bíblica, teológica e filosófica, a série confronta a ilusão de uma fé que não transforma, que não se enraíza na verdade do Evangelho e que, por isso, não salva. A análise percorre textos fundamentais como Romanos, Efésios, Isaías e os Salmos, além de obras clássicas de autores como João Calvino, Turretini, Herman Bavinck, Tomás de Aquino, C.S. Lewis, Billy Graham, Karl Marx, Lloyd-Jones, R.C. Sproul, John Piper e John Frame, estabelecendo um diálogo entre Escritura, razão e cultura.

 

A série também aborda a crise da justiça, a impunidade social e espiritual, o vazio existencial e a busca humana por sentido — temas que convergem para a pergunta essencial: “Como me apresentarei diante do Senhor?” (Mq 6.6). A resposta bíblica é clara: Deus se agrada de nós não por quem somos em nós mesmos, mas por quem somos em Cristo. A fé verdadeira é aquela que repousa inteiramente na obra redentora do Filho — e é essa fé que justifica, transforma e sustenta a Igreja.

A Fé que Não Salva: O Perigo de Crer Sem Cristo

É somente a fé que justifica, e ainda assim a fé que justifica não está só. − John Calvin (1509-1564).[1]

Só conseguimos ser justificados diante de Deus unicamente pela intercessão da justiça de Cristo. Isso equivale exatamente se fosse dito que o homem não é inerentemente justo, mas o é, pelo contrário, devido à justiça de Cristo que se comunica com ele por imputação, o que é digno de acurada consideração. − João Calvino.[2]

A fé não justifica por meio de sua própria essência, nem age por ela mesma ser justa, mas por seu conteúdo, porque é fé em Cristo, que é nossa justiça. Se a fé justificasse por si mesma, o objeto desta fé (isto é, Cristo) perderia totalmente seu valor. Mas a fé que justifica é precisamente a fé que tem Cristo como seu objeto e conteúdo. − Herman Bavinck (1854-1921).[3]  

Uma justiça cambaleante e o silêncio do Justo Senhor

Há contextos em nossa existência em que a maldade parece adquirir tal onipresença que já não resta espaço para a bondade, a honradez e a justiça.[4]  Essas virtudes, aliás, tornam-se tão ausentes que sequer são nomeadas − como se tivessem sido banidas do vocabulário humano.

Essa realidade teológica se reflete também na experiência humana, como vemos nos salmos. O cenário descrito por Davi revela a ausência de justiça e a necessidade urgente da intervenção divina.

Embora não seja possível determinar com precisão a ocasião da redação do Salmo 12,[5] seu conteúdo parece refletir o cenário vivido por Davi durante a perseguição promovida por Saul.[6] A impiedade dominava; os fiéis estavam sendo extintos − alguns por se corromperem, outros por se calarem. No horizonte do salmista, eles desapareceram, o que o leva a clamar: “Socorro, SENHOR! Porque já não há homens piedosos; desaparecem os fiéis entre os filhos dos homens” (Sl 12.1).

O ambiente descrito é marcado por bajulação e hipocrisia (Sl 12.2), onde a soberba autoconfiante é proclamada como virtude. Não se crê no poder da verdade, mas na força que emana da manipulação, da pressão, da extorsão e da ameaça. O que se sustenta não é a verdade, mas o poder pessoal − a capacidade de impor narrativas.

A epistemologia e a lógica desses agentes não se fundamentam no princípio de que “o que é, é”,[7] mas na fórmula tão cara ao coração humano: “o que é, é o que eu digo que seja”.[8] A verdade é moldada pela vontade, não pela realidade. Como consequência, os pobres e necessitados, esmagados por esse sistema perverso, suspiram pela libertação que só Deus pode realizar: “Por causa da opressão dos pobres e do gemido dos necessitados, me levantarei agora, diz o SENHOR; porei a salvo aquele para quem eles suspiram” (Sl 12.5).

 

A impunidade aparentemente alvissareira

Quando a maldade é exaltada, a perversidade se alastra por todas as instâncias e cargos (Sl 12.8).[9]  Quando a justiça cambaleia, a impunidade se torna um incentivo à multiplicação do mal, que se manifesta de forma variada e progressiva em todas as esferas da sociedade.

Esse ambiente de impunidade não se limita ao contexto bíblico; ele ecoa em nossa realidade contemporânea, onde há diversos tipos de sanções sociais. Em contextos de oposição mais branda, pode haver zombarias e escárnio contra os que permanecem fiéis; ainda assim, somos chamados a permanecer firmes. O Salmo 14.6 descreve a atitude dos que negam a Deus, destacando sua hostilidade contra os que confiam no Senhor: “Meteis a ridículo  (vwB) (bosh) (= Confundem, envergonham) o conselho (hc'[e) (’etsah) (= Caminho, desígnio) dos humildes, (ynI[‘) (‘aniy)[10]mas o SENHOR é o seu refúgio” (Sl 14.6).

Além da exploração e destruição dos pobres, há também uma perseguição no campo das ideias. Os ímpios, por se julgarem fortes − por serem maioria e, portanto, supostamente mais consistentes intelectualmente −, agem como se não houvesse nada nem ninguém acima deles. Sentem-se livres para praticar toda sorte de maldade. A maioria tende a cultivar uma falsa sensação de impunidade, especialmente quando detém o poder.

Por isso, ridicularizam (envergonham,[11] submetem a vexame,[12] confundem)[13] os projetos dos pobres, daqueles que não podem se defender.[14]  O ímpio acredita, com convicção, que poderá continuar praticando o mal indefinidamente, sem sofrer qualquer consequência. “Os ímpios com frequência vomitam linguagem soberba a esse respeito.” [15]  O senso de impunidade torna-se um combustível para a sofisticação da crueldade.[16]

Essa é uma atitude recorrente entre os ímpios, como retrata o Salmo 10:

2Com arrogância, os ímpios perseguem o pobre (ynI[‘) (‘aniy). (…) 8 Põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos lugares ocultos; seus olhos espreitam o desamparado. 9Está ele de emboscada, como o leão na sua caverna; está de emboscada para enlaçar o pobre (ynI[‘) (‘aniy): apanha-o e, na sua rede, o enleia. 10 Abaixa-se, rasteja; em seu poder, lhe caem os necessitados. (Sl 10.2,8-10).

Em outro contexto, Calvino (1509-1564) comenta com lucidez: “Pois os homens se lisonjeiam, como bem sabemos, e cometem atos perversos impunemente; são tão empedernidos no pecado, que amontoam mal sobre mal e pecado sobre pecado, considerando seus vícios como se fossem virtudes.”[17]

Em uma sociedade assim, torna-se difícil definir ou mesmo preservar qualquer conceito de justiça − ou do que é verdade

 

“Quem é como Jeová?” – O homem diante do Justo Senhor

Por volta de 725 a.C., Deus dirige-se ao Reino do Norte, confrontando seu povo rebelde por meio do profeta Miquéias.[18]  Diante dessa revelação, o profeta levanta uma pergunta fundamental que ecoa através dos séculos: “Com que me apresentarei ao Senhor?” (Mq 6.6).

Essa é, sem dúvida, a grande pergunta que todo ser humano enfrentará um dia. O homem foi criado para se relacionar com seu Criador. Ao formá-lo, Deus lhe conferiu uma identidade singular, distinta de toda a criação. Essa identidade não é apenas funcional, mas relacional: fomos feitos para estar diante de Deus.

A revelação geral manifesta aspectos do poder, da sabedoria e da bondade de Deus. Por meio dela, o ser humano pode perceber lampejos do ser divino revelados na ordem criada. Essa percepção, no entanto, não é fruto de descoberta autônoma, mas da iniciativa divina. Deus escolheu revelar-se, deixando seu “rastro”, sua “assinatura” impressa em toda a criação.

Por isso, é legítimo falar em uma “teologia natural”, desde que se reconheça que ela não nasce das elucubrações humanas, mas da ação reveladora de Deus. Ela não parte de baixo, mas de cima; é transcendental. É Deus quem se dá a conhecer de maneira compatível com a estrutura intelectual que Ele mesmo nos concedeu. Foi Ele quem nos criou com um apelo íntimo e irrevogável ao Eterno. A saudade do Eterno habita em todo ser humano − ainda que, na maioria das vezes, não saibamos nomeá-la. No princípio, é sempre Deus.[19]

 

A Digital de Deus na Criação

Aquino (1225-1274) argumenta que a Criação tem a “digital” de Deus; a marca do grande artista em sua obra:

Pela meditação sobre as obras [de Deus] podemos admirar de algum modo e considerar a sabedoria divina: as coisas realizadas pela arte são representativas da arte, porque são realizadas à sua semelhança. Ora, Deus, pela sua sabedoria, deu o ser às coisas, razão por que é dito: Tudo fizestes com sabedoria (Sl 103.24). Daí podermos, pela consideração das obras, recolher a sabedoria divina, que está como que espelhada nas criaturas por certa comunicação da sua semelhança.(…)

Essa consideração faz-nos admirar a última virtude de Deus e, consequentemente, produz nos corações dos homens a reverência para com Deus. Com efeito, convém que a capacidade do artista seja tida como superior às coisas que ele faz. (…)

Dessa admiração provém o temor de Deus e a reverência. (…)

Como a fé cristã esclarece o homem principalmente a respeito de Deus e, pela luz da revelação divina, o faz conhecedor das criaturas, realiza-se no homem uma certa semelhança da sabedoria divina,[20]

Calvino (1509-1564), discorrendo sobre a revelação de Deus na natureza, diz:

Em toda a arquitetura de seu universo, Deus nos imprimiu uma clara evidência de sua eterna sabedoria, munificência e poder; e embora em sua própria natureza nos seja ele invisível, em certa medida se nos faz visível em suas obras. O mundo, portanto, é com razão chamado o espelho da divindade, não porque haja nele suficiente clareza para que os homens alcancem perfeito conhecimento de Deus, só pela contemplação do mundo, mas, porque ele se faz conhecer aos incrédulos de tal maneira que tira deles qualquer chance de justificarem sua ignorância. (…) O mundo foi fundado com esse propósito, a saber: para que servisse de palco à glória divina.[21]

Este mundo é semelhante a um teatro onde Senhor exibe diante de nós um surpreendente espetáculo de sua glória.[22]

Ele entende que “o princípio da religião” que é implantado nos homens é uma das evidências da sua “preeminente e celestial sabedoria”.[23]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] John Calvin, Antidote to the Canons of the Council of Trent: In: Tracts and Treatises in Defense of the Reformed Faith, Edinburgh: The Calvin Translation Society, 1851, v. 3, p. 152. (Edição mais recente dessa obra: John Calvin, Acts of the Council of Trent: with the antidote: In: Henry Beveridge, ed. and transl. Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1983 (Reprinted), v. 3, p. 152).  (Agora em português: João Calvino, Tratado contra o Concílio de Trento, Firminópolis, /GO.: João Calvino Publicações, 2024, p. 191).

[2]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã, 3. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2022, III.11.23.

[3]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 214.

[4]Trato desse assunto de forma  mais ampla em meu livro: Hermisten M.P. Costa, O Homem no Teatro de Deus: providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019.

[5] Peter C. Craigie; Marvin E. Tate, Psalms 1-50, 2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v. 19), 2004, (Sl 12), p. 137.

[6]Essa é a hipótese sustentada por Calvino (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 12), p. 248).

[7] É conhecida a importante definição de Agostinho: “O verdadeiro é o que é em si (…) é o que é” (Agostinho, Solilóquios, São Paulo: Paulinas, 1993, II.5.8. p. 76-77).

[8]3 Corte o SENHOR todos os lábios bajuladores, a língua que fala soberbamente, 4 pois dizem: Com a língua prevaleceremos, os lábios são nossos; quem é senhor sobre nós?” (Sl 12.3-4).

[9]“Por todos os lugares andam os perversos, quando entre os filhos dos homens a vileza é exaltada” (Sl 12.8).

[10]ynI[‘ (‘aniy) (“necessitado”, “fraco”, “pobre”, “aflito”, “humilde”). Indica alguém que está indefeso, sujeito à opressão (Ver: Leonard J. Coppes, ‘Ãnâ: In: R. Laird Harris, et. al.  eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1145-1146).

[11] Gn 2.25; 2Sm 19.5; Sl 25.2,3 (duas vezes); 119.46.

[12] Sl 6.11.

[13] Sl 22.6.

[14]“…. Nada parece mais ilógico aos sentidos da carne do que lançar-se nas mãos de Deus quando Ele nem mesmo percebe nossas calamidades; e a razão é que a carne julga a Deus tão-somente pelo prisma do que ela presencia imediatamente o que provém de sua graça. Portanto, sempre que os incrédulos veem os filhos de Deus tragados pelas calamidades, eles os invectivam por sua infundada confiança, segundo a impressão que eles têm, e com sarcásticos escárnios se riem da inabalável esperança com que se entregam a Deus, de quem, não obstante, não recebem socorro algum” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 14.6), p. 284-285).

[15] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 10.5-6), p. 215.

[16]“A impunidade é mãe da libertinagem” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 6.9), p. 186).

[17]João Calvino, Sermões sobre Gálatas, volume 2 (Portuguese Edition), (Gl 5.19-23), (p. 227). Editora Monergismo. Edição do Kindle.

[18]O nome Miquéias hfkyIm (Mïkãh) é uma forma abreviada de hfyfkyIm (Mïkãyãh), que também é uma contração de UhfyfkyIm   (Mïkãyãhü) “Quem é como Jeová?”. Trata-se de uma pergunta retórica que exalta a incomparabilidade de Deus. Como observa Pott, “o nome em si mesmo é um credo, pois louva a grandeza de Jeová como Deus de Israel e o Redentor de seu povo” (Jerónimo Pott, El Mensaje de los Profetas Menores, Grand Rapids, Michigan: SLC., 1977, p. 46).

Miquéias era natural de Moresete-Gate, uma pequena aldeia situada no Reino do Sul, a aproximadamente 30 a 40 quilômetros a sudoeste de Jerusalém. A região, em tempos anteriores, esteve sob domínio filisteu. É provável que o profeta tenha vivido ali por boa parte de sua vida, vindo de uma família modesta, já que seus pais não são mencionados nas Escrituras. (Cf. Raymond B. Dillard; Tremper Longman III, Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 380).

Enquanto Isaías atuava na corte e dirigia seus oráculos principalmente à elite de Jerusalém, Miquéias é geralmente descrito como um profeta de perfil mais rústico, com um ministério voltado ao contexto rural. Ambos, no entanto, foram instrumentos de Deus para proclamar sua Palavra ao povo, cada um segundo sua vocação e esfera de atuação.

Miquéias exerceu seu ministério profético entre aproximadamente 750 e 686 a.C., durante os reinados de Jotão, Acaz e Ezequias (Mq 1.1; Jr 26.18). Foi contemporâneo de Isaías (Is 1.1) e também de Oséias (Os 1.1), embora possivelmente mais jovem que ambos. Sua mensagem, marcada por denúncias sociais, apelos à justiça e esperança messiânica, permanece atual e profundamente relevante.

[19] Veja-se uma iluminadora exposição sobre a possibilidade de uma “teologia natural” em: Alister McGrath, A Ciência de Deus: Uma introdução à teologia científica, Viçosa, MG.: Ultimato, 2016, p. 85-103.

[20]Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Caxias do Sul, RS.; Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Universidade de Caxias do Sul; Livraria Sulina Editora, 1990, v. 1,  II.2.1-2,4.

[21] João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 300-301.  Vejam-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 8.1), p. 356; João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 5.3), p. 202;  v. 2, (Jo 13.31),  p. 78; João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 62.

[22]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 1.21), p. 63.

[23]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 167.