A Fé que Não Salva: O Perigo de Crer Sem Cristo – 2

Ateísmo sincero?

O ateísmo (…) é uma coisa por demais simplista. Se todo o universo não tem sentido, nunca descobriríamos que ele não tem sentido, do mesmo modo que, se não houvesse luz no universo, nem, consequentemente, criaturas com olhos, nunca saberíamos que era escuro. A palavra escuro seria uma palavra sem sentido. − C.S. Lewis (1898-1963).[1]

Essa percepção do vazio humano é compartilhada por diversos pensadores cristãos. Calvino, por exemplo, afirma que “no coração de todos jaz gravado o senso da divindade” [2] e argumenta que a tentativa humana de negar a Deus nada mais é do que uma revelação do “senso de divindade que, tão ardentemente, desejariam extinto”.[3] Conclui, assim, que é impossível haver verdadeiro ateísmo.

É justamente pelo fato de o homem carregar, em grau máximo, a impressão pessoal de Deus, que, ao romper com o Criador, sente a necessidade de voltar-se para Ele.

Nossa fome espiritual nada mais é do que a revelação do vazio interior e da necessidade de preenchê-lo com algo que transcende nossas possibilidades. [4] Por isso, o vazio é um tema recorrente na experiência humana.[5]

Paradoxalmente, o ateísmo é uma expressão doentia da ausência de Deus − uma resistência relutante em voltar-se para Ele.

Frame escreve:

O argumento bíblico a ser mencionado aqui é que ninguém é realmente ateu, no sentido mais sério desse termo. Quando as pessoas se afastam da adoração ao Deus verdadeiro, elas não rejeitam o absoluto em geral. Antes, em vez do verdadeiro Deus, eles adoram ídolos, como Paulo ensina em Romanos 1:18-32. A grande divisão na humanidade não é que alguns adorem um deus e outros não. Pelo contrário, é entre aqueles que adoram o Deus verdadeiro e aqueles que adoram falsos deuses, ídolos. A adoração falsa pode não envolver ritos ou cerimônias, mas sempre envolve o reconhecimento da asseidade, honrando alguns que não dependem de mais nada.[6]

O ateísmo incorre inevitavelmente em contradição: destrói a fé e a religião, mas idolatra seus próprios sistemas de pensamento.

Marx (1818-1883), que via a religião como “ópio do povo” [7] e buscava eliminá-la como obstáculo ao progresso,[8] recebe uma crítica perspicaz do agnóstico Bertrand Russell (1872-1970), que observa: “Marx se dizia ateu, mas conservava um otimismo cósmico que somente o teísmo poderia justificar.”[9]

Retomando nosso ponto, a questão permanece − não como uma indagação retórica, mas como uma realidade ontológica e, portanto, existencial: Como nos colocaremos diante do Deus absolutamente santo e justo? Como agradá-lo?

 6 Com que me apresentarei ao SENHOR e me inclinarei ante o Deus excelso? Virei perante ele com holocaustos, com bezerros de um ano?  7 Agradar-se-á o SENHOR de milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite? Darei o meu primogênito pela minha transgressão, o fruto do meu corpo, pelo pecado da minha alma?  8 Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus. (Mq 6.6-8).

A resposta de Deus à pergunta de Miquéias é clara: Ele deseja obediência, não rituais vazios. Quer que façamos a sua vontade − que é sempre boa, perfeita e agradável (Mq 6.8; Rm 12.2), e não é penosa (1Jo 5.3).

 

Deus se agrada de nós

O mais surpreendente em tudo isso é que o Deus santo, justo e perfeito se agrada de nós.

A grande palavra de consolo que recebemos não tem origem humana; ela procede do próprio Deus que, em sua graça, nos acolhe. Esse é o testemunho do salmista, inspirado pelo Espírito que se alegra na salvação concedida pelo Senhor ao seu povo: “Porque o SENHOR se agrada (hc’r’) (ratsah)[10] do seu povo e de salvação adorna (ra;P’) (paar) os humildes (wn”[‘) (anav)[11] (“fraco”, “pobre”, “humilde”) (Sl 149.4).

O Filho, por sua vez, se alegrará ao contemplar o fruto doloroso de seu amor redentor: Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si.” (Is 53.11).

Aqui está o fundamento da justificação: o Servo assume voluntariamente as culpas alheias, tornando-se sacrifício expiatório. Ele carrega os pecados como o cordeiro do sacrifício levítico, cumprindo o papel de substituto. Sua obediência e sofrimento são creditados àqueles que, por si mesmos, nada têm a oferecer.

O Senhor, então, adorna e embeleza sua igreja − formada por pessoas como nós, totalmente depreciadas em seus pecados e carentes de misericórdia e perdão. Deus se agrada de nós. Que gloriosa revelação!

Mas como isso é possível? Como pode o Deus santo e justo se agradar de nós, constituindo-nos como seu povo? O que há em nós que nos torne prazerosos a Ele?

A resposta é desconcertante: não há nada em nós que, por natureza, seja agradável a Deus. Parece contraditório − Deus se agrada do desagradável.

As Escrituras nos ensinam que, após a queda, nada em nós pode resistir ao escrutínio da santidade divina. Somos, por natureza, filhos da ira (Ef 2.3), inimigos de Deus (Rm 5.10), e espiritualmente mortos (Ef 2.1). Então, como escapar desse labirinto, onde não parece haver saída para nós, pecadores?

A única resposta possível é a graça. Deus se agrada de nós porque se agradou de Cristo − e nos vê nele. O que é impossível aos homens, é possível a Deus. O que é desprezível aos olhos humanos, é redimido pelo olhar misericordioso do Senhor. A justificação, portanto, não é uma conquista humana, mas uma dádiva divina. É Deus quem nos torna agradáveis, ao nos revestir da justiça de seu Filho.

 

O Messias é perfeitamente agradável a Deus

No livro do profeta Isaías lemos a respeito do Messias, O Servo Sofredor: “Eis aqui o meu servo, a quem sustenho; o meu escolhido (ryxiB’) (bachiyr), em quem a minha alma se compraz (hc’r’) (ratsah); pus sobre ele o meu Espírito, e ele promulgará o direito para os gentios” (Is 42.1).

No registro do batismo de Jesus Cristo, há uma manifestação trinitária: 16 Batizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele.  17 E eis uma voz dos céus, que dizia: Este é o meu Filho amado (a)gaphto/j), em quem me comprazo” (Mt 3.16-17).

Jesus Cristo é o Filho eterno de Deus. Ele é o escolhido do Pai, em quem há plena satisfação. Somente Ele é descrito nas Escrituras como “O Amado” (Ef 1.6). Somente nele o Pai tem plena satisfação.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]C.S. Lewis, A essência do Cristianismo autêntico, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, (1979), p. 21.

[2]João Calvino, As Institutas, I.3.1. “Assim como não se pode encontrar homem algum, por mais bárbaro e mesmo selvagem que possa ser, que não seja tocado por alguma ideia de religião, é certo que todos somos criados a fim de conhecer a majestade de nosso Criador, e tendo-a conhecido, estimá-la acima de todas as coisas e honrá-la com todo temor, amor e reverência.”  (João Calvino, Instrução na Fé Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 1, p. 11).

[3]João Calvino, As Institutas, I.3.3.

[4]“O tédio é um dos meios seguros de medir o seu próprio vazio interior! Ele tem a precisão de um termômetro para revelar a extensão do vazio do seu espírito. A pessoa que está por completo entediada, vive e trabalha em um vácuo. Seu eu interior é um vácuo, e não há nada que ofenda mais à natureza do que um vácuo. É uma das regras infalíveis deste universo que todos os vácuos devem ser preenchidos e preenchidos de imediato.” (Billy Graham, Em Paz com Deus, Rio de Janeiro; Record, © 1984, p. 18). “Por que estamos vazios? Porque o Criador nos fez para Si; e nunca encontraremos a perfeição e a plenitude longe de Sua comunhão” (Billy Graham, Em Paz com Deus, p. 19).

[5] Ver: Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da Realização Espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 7. “A perda total de significado implícita no ateísmo é de mais para que muitos suportem. As pessoas precisam de alguns valores, alguns padrões, algumas maneiras para orientar suas vidas. Entre essas pessoas, aqueles que continuam a resistir à crença no verdadeiro Deus tornam-se inconsistentes quanto ao seu ateísmo, ou tornam-se idólatras. Se não querem o verdadeiro Deus, terão de procurar outro” (John Frame, Apologética para a Glória de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 150).

[6]John M. Frame, A History of Western Philosophy and Theology, Phillipsburg, New Jersey: P & R Publishing, 2015, p. 7.

[7] “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo.

“A supressão [Aufhebung]* da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões” (Karl Marx. Crítica da filosofia do direito de Hegel (Coleção Marx e Engels) (Locais do Kindle 2056-2059). Edição do Kindle).

*Essa palavra alemã comporta sentidos distintos e, até mesmo contraditórios. Contudo, o que parece claro é que a doutrina “superada”, tornou-se “antiquada”. (Veja-se: Superar: In: José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, São Paulo: Edições Loyola, 2001, v. 4, p. 2794-2795.

[8] Em 1846, Marx e F. Engels (1820-1895) escreveram:

“Até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações em função de representações que faziam de Deus, do homem natural etc. Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações. Libertemo-los, pois, das quimeras, das ideias, dos dogmas, dos seres imaginários, sob o jugo dos quais definham. Revoltemo-nos contra este predomínio dos pensamentos” (Karl Marx; Friedrich Engels, A Ideologia Alemã, 3. ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1982, p. 17).

A conclusão de Marx, é que a religião deve ser suprimida. Na sua tese de doutorado, procurou provar que no país da razão, não há lugar para Deus:

“Leva o papel-moeda para um país onde não se conhece esse uso do papel e cada qual se rirá de tua representação subjetiva. Vai com teus deuses para um país em que vigoram outros deuses e terás a prova de que padeces de imaginações e abstrações. Com razão. Quem tivesse levado um deus eslavo para os gregos antigos teria encontrado a prova da não existência desse deus. Porque para os gregos ele não existia. O que um país bem determinado foi para deuses estrangeiros bem determinados o país da razão é para o Deus em geral, ou seja, um território em que ele deixa de existir” (Karl Marx,  Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro (Locais do Kindle 2895-2899). (Boitempo Editorial).

[9]Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. 3, p. 339.

[10]A aceitação divina envolve a sua boa vontade em ato de misericórdia e compaixão. Quanto ao emprego da expressão no Antigo Testamento, vejam-se: William White, Ratson: In: R. Laird Harris, et. al.  eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1450-1451; G. Gerleman, Rsh: In: E. Jenni; C. Westermann, Diccionario Teologico Manual Del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1978, v. 2, p. 1017-1021; G. Schrenk, Eu)doki/a: In: Gerhard Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co.  (reprinted) 1982, v. 2, p. 742-745; Terence E. Fretheim, Rsh: In: Willem A. VanGemeren, org.  Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 1178-1179.

[11]A palavra caracteriza um estrangeiro, sem-terra, sem cidadania, órfão. Descreve não raras vezes uma condição social, ainda que não uma classe social.  Por vezes, indica alguém que sofre algum tipo de aflição física, psíquica e espiritual, estando indefeso, sujeito à opressão (Vejam-se: Leonard J. Coppes, ‘Ãnâ: In: R. Laird Harris, et. al.  eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1143-1146; W.J. Dumbrell, Anaw: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011,   v. 3,  [p. 454-463], p. 454-455; 460-461). Para uma visão mais abrangente, envolvendo o NT, veja-se: C. Brown; H.H.-Esser, Pobre: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 564-573. Para uma abordagem mais social, com informações extremamente curiosas envolvendo a questão de salários, veja-se: Joachim Jeremias, Jerusalém no Tempo de Jesus, São Paulo: Paulinas, 1983, p. 156-169.