O Ministério Pastoral: Responsabilidade e Privilégio na Igreja de Deus

Introdução

A Igreja de Deus é uma comunidade formada por pecadores regenerados. Não é perfeita, mas é chamada a viver em santidade, sustentada pela graça de Cristo. Ao longo da história, surgem tensões internas: alguns, por se julgarem mais esclarecidos, desejam comandar os destinos da Igreja como se fosse propriedade particular; outros, temendo pelo futuro, agem como se a Igreja pudesse fracassar e ser destruída.

Ambas as posturas esquecem uma verdade fundamental: a Igreja é de Deus. Ele a elegeu, chamou e guardará até o fim. Essa convicção deve moldar não apenas a vida dos membros, mas especialmente a dos pastores, que têm a responsabilidade de servir como instrumentos de Cristo na edificação e preservação da Igreja.

 

1. A Igreja fundamentada em Cristo

Jesus declara: “Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16.18). A distinção entre pe/troj (petros) (Pedro) e pe/tra (petra) (rocha) indica que o fundamento último não é o homem, mas o próprio Cristo.[1] Paulo confirma: “Ninguém pode lançar outro fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo” (1Co 3.11).

Calvino  (1509-1564) enfatiza que “toda a eminência que os mestres porventura possuam entre si não deve impedir a Cristo de ser o único a governar sua Igreja nem de governá-la exclusivamente por meio de sua palavra”.[2]

Assim, a Igreja não se sustenta na fé vacilante dos homens, mas na rocha eterna. Os pastores, como servos, não são donos da Igreja, mas cooperadores na obra de Cristo. Sua responsabilidade é anunciar fielmente o Evangelho, lembrando que sem Cristo não há Igreja.

 

2. A Igreja edificada por Cristo

Jesus afirma: “Edificarei a minha Igreja” (Mt 16.18). A Igreja não é um plano secundário, mas parte do propósito eterno de Deus. Desde o Éden, Deus reúne o seu povo em aliança. Gerstner (1914-1996) observa que qualquer igreja que não permaneça em continuidade pactual com o povo de Deus é, por definição, uma seita.[3]

Os pastores participam desse processo como instrumentos da edificação. Paulo lembra aos presbíteros de Éfeso: “Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar” (At 20.32). A tarefa pastoral é, portanto, edificar pela Palavra, não por métodos humanos ou especulações.

Calvino advertia contra curiosidades estéreis: “O propósito divino não é satisfazer nossa curiosidade, mas ministrar instrução proveitosa”.[4] O pastor deve resistir à tentação de transformar o púlpito em palco de exibição intelectual ou em espaço de debates frívolos. Sua missão é edificar o povo de Deus pela Palavra e pelo Espírito.

 

3. A Igreja preservada por Cristo

Jesus assegura: “As portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16.18). A Igreja enfrenta ataques constantes de Satanás, que procura confundir, dividir e destruir. Contudo, Cristo a preserva. Paulo declara: “O Senhor é fiel; ele vos confirmará e guardará do Maligno” (2Ts 3.3).

Aqui se destaca a responsabilidade dos pastores: vigiar e proteger o rebanho. Paulo exorta: “Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos” (At 20.28). Stott (1921-2011) comenta que os pastores devem primeiro cuidar de si mesmos, para depois cuidar do rebanho.[5]

A vigilância pastoral é contínua. Calvino observa: “Grande prudência é requerida daqueles que têm a incumbência da segurança de todos”.[6] O pastor é chamado, em total dependência do Espírito, a discernir os ataques sutis, a resistir às heresias e a manter a Igreja firme na verdade.

 

4. O chamado ao ministério e a necessidade de um bom preparo

O ministério pastoral é uma vocação sublime, concedida diretamente por Cristo, o único Cabeça da Igreja. Os pastores não recebem sua autoridade da comunidade, mas do próprio Senhor, que os associa consigo como servos e cooperadores na edificação do seu povo. Como lembra Calvino:

Cristo não chama seus ministros para o ofício docente a fim de que, conquistando a Igreja, reivindiquem domínio sobre ela, mas para que ele faça uso de seus labores fiéis associando-os consigo. A designação de homens sobre a Igreja é uma distinção grande e sublime, para que representem a pessoa do Filho de Deus. Portanto, assemelham-se aos amigos a quem o noivo conduz a seu lado, para que o acompanhem na celebração das bodas. Mas devemos atentar bem para esta distinção, a saber: que os ministros, sendo cônscios de  sua posição, não se apropriem do que pertence exclusivamente ao noivo.[7]

Esse chamado, contudo, exige preparo rigoroso. O pastor não pode lançar mão do ofício irrefletidamente, nem ser promovido apenas por conveniência. É necessário que seja apto para ensinar, firme na doutrina e constante em sua devoção. A Escritura é a fonte de toda a sabedoria, e dela o ministro deve extrair tudo o que expõe ao rebanho. Como adverte Calvino:

Ora, como é possível que os pastores ensinem a outrem se eles mesmos não forem capazes de aprender? E se um homem tão excelente é admoestado a estudar a fim de progredir diariamente, não seria maior a nossa necessidade em atender a tal conselho? Ai da indolência dos que não examinam atentamente os oráculos do Espírito, dia e noite, com o fim de aprender neles como desempenhar seu ofício.[8]

Esta é a principal coisa que se exige dos ministros da Palavra. Não só que sejam bem instruídos a fim de que possam ensinar a outros, mas também que sejam firmes e constantes em seu fundamento, para lutar quando a verdadeira doutrina tiver de ser defendida, de modo que permaneça intocada. Eis por que a palavra que Paulo usa significa tanto “reter” quanto “abraçar”. Por isso, devemos ver que nosso ensino seja verdadeiro. Se estivermos fortemente apegados a ela, ela jamais se desvencilhará de nós. Por mais que o diabo faça seu melhor empenho para afastá-la de nosso alcance, jamais nos separaremos dela. Paulo ainda explica seu uso.[9]

A formação pastoral não se limita ao aspecto intelectual, mas envolve, sobretudo, a dimensão espiritual. O pastor deve conhecer a Deus não apenas para elaborar sermões, mas para permitir que sua própria vida seja moldada e transformada pela Palavra. Sua maior ambição deve ser a de ser reconhecido como fiel servo de Cristo. Pois “a honra mais excelente que pode sobrevir a um pastor piedoso é ser ele considerado um bom ministro de Cristo”.[10] O ofício pastoral é excelente, mas espinhoso; por isso, requer zelo, prudência e perseverança.

 

5. O privilégio do ministério pastoral

Se a responsabilidade é grande, o privilégio é ainda maior. Os pastores participam da obra de Cristo, sendo instrumentos para edificação, santificação e preservação da Igreja. Eles são chamados a proclamar a Palavra, que é o antídoto contra os lobos vorazes e contra os homens pervertidos que procuram corromper o povo de Deus.

Stott afirma: “A Igreja e o evangelho são inseparáveis. A Igreja é tanto o fruto como o agente do evangelho”.[11]

Esse privilégio, contudo, exige humildade. Calvino, em carta a Laelius Socino (1525-1562), [12] rejeitou especulações inúteis e reafirmou que sua única regra de sabedoria era a Palavra de Deus.[13] O verdadeiro pastor não busca glória pessoal, mas a glória de Cristo.

No primeiro dia de 1553, período turbulento, Calvino, então com 43 anos,  escreve a sua carta dedicatória dos comentários do Evangelho de João aos síndicos de Genebra. A certa altura diz:

Espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza e a excelência do ofício requer de um bom pastor, e como continuamente lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído de honestidade e sinceridade na realização de meu dever.[14]

 

6. A Igreja como coluna e baluarte da verdade

Paulo declara que a Igreja é “coluna e baluarte da verdade” (1Tm 3.15). Bavinck (1854-1921) explica que a Igreja deve ser o pedestal sobre o qual a verdade é apresentada e mantida.[15]

Os pastores, como servos da Igreja, têm o privilégio de sustentar essa verdade diante do mundo. Sua responsabilidade é dupla:

  • Não negociar os valores eternos em troca de relevância cultural.
  • Não privatizar a fé, reduzindo-a a mero sentimento individual.

A Igreja, guiada por seus pastores, deve proclamar com autoridade: somente Cristo, somente a graça, somente a fé, somente a Escritura, glória somente a Deus.

 

7. O pastor como modelo de vida cristã

Além de ensinar e proteger, o pastor é chamado a ser exemplo. Paulo exorta Timóteo: “Torna-te padrão dos fiéis, na palavra, no procedimento, no amor, na fé, na pureza” (1Tm 4.12).

O ministério pastoral não se limita ao púlpito. O pastor deve viver de modo que sua vida seja coerente com sua mensagem. Sua autoridade não vem apenas da função, mas da integridade de sua vida.

 

8. Desafios contemporâneos à responsabilidade pastoral

A Igreja se depara com grandes batalhas ideológicas que, se não são novas, assumem vestimentas mais atrativas ao nosso tempo: relativismo, subjetivismo, pragmatismo e toleracionismo. Esses “ismos” corroem a autoridade da Palavra e enfraquecem a Igreja.

O pastor, como servo de Cristo, deve resistir a essas pressões culturais. Sua responsabilidade é proclamar a verdade eterna, mesmo quando ela é considerada escândalo ou loucura (1Co 1.22-23).

 

Considerações finais

A Igreja de Deus é fundamentada, edificada e preservada por Cristo, e os pastores são chamados a servir como instrumentos dessa obra. O ministério pastoral, portanto, está inseparavelmente ligado à necessidade de um preparo sólido, que una conhecimento bíblico, maturidade espiritual e fidelidade ao Senhor.

Esse chamado envolve responsabilidade e privilégio. Responsabilidade, porque cabe aos pastores vigiar, ensinar e proteger o rebanho contra os ataques do inimigo e as tentações do mundo. Privilégio, porque participam da obra eterna de Deus, cooperando na edificação da Igreja e testemunhando a vitória de Cristo.

Assim, o ministério pastoral é um chamado sublime: viver e servir para que a Igreja permaneça firme como coluna e baluarte da verdade, até o dia em que Cristo consumar plenamente a sua obra.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]Apesar de haver esta distinção nas palavras utilizadas, é necessário que se diga que na literatura clássica, a diferença entre os termos não é tão nítida, sendo as palavras usadas, por vezes, indistintamente. (Cf. W. Mundle, et. al., Pedra: In:  Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, [p. 495-512), p. 495,500).

[2]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 143.

[3] John Gerstner, Alicerçada na Rocha Eterna: In:  John MacArthur, et. al. Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 50-51.

[4]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.14) p. 233. Veja-se também: Segundo Prefácio de Calvino à tradução da Bíblia feita por Pierre Olivétan (1546), In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 34.

[5]John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: Até os confins da terra,  São Paulo: ABU, (A Bíblia Fala Hoje),1994, (At 20.28-35), p. 369.

[6] João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 12.8), p. 434.

[7] João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 143.

[8]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.13), p. 123. “A erudição associada à piedade e aos demais dons do bom pastor sejam uma preparação para o ministério. Ora, aqueles que o Senhor destinou a tão grande ofício ele primeiro capacita com essas armas que são necessárias para cumpri-lo, de modo que não venham a ele vazios e despreparados.” (João Calvino, As Institutas, IV.3.11). “É preciso sempre verificar que sejam capazes e aptos para sustentar o ônus que lhes é imposto, isto é, que tenham sido dotados dessas capacidades que serão necessárias para o cumprimento de seu ofício. Assim, Cristo, quando estava para enviar os apóstolos, adornou-os com as armas e instrumentos de que tinham que ter [Mc 16.15-18; Lc 21.15; 24.49; At 1.8]. E Paulo, pintando a imagem do bom e verdadeiro bispo, exorta a Timóteo a que não se contaminasse elegendo alguém diferente dessa imagem [1Tm 5.22].” (João Calvino, As Institutas, IV.3.12).

[9]João Calvino, Sermões sobre Tito, Brasília, DF.: Monergismo,  2019, (Tt 1.7-9), p. 78. (Edição do Kindle).

[10]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 4.6), p. 116.

[11]John R.W. Stott; Basil  Meeking, editores, Dialogo Sobre La Mision, Grand Rapids, Michigan: Nueva  Creación, 1988, p. 62.

[12]Este é tio de Fausto Paolo Socino (1539-1604), teólogo italiano que entre outras heresias fruto de uma interpretação puramente racional das Escrituras, negava a doutrina da Trindade, a divindade de Cristo, sustentando a ressurreição apenas de alguns fiéis, etc. O movimento herético conhecido como Socinianismo é derivado dos ensinamentos de ambos.

[13] João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 93

[14]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  p. 23.

[15] Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 129.