Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas – 12

1.6. Todo-Poderoso (Continuação)

 

Deus nos observa com atenção

É preciso que entendamos que a soberania de Deus não significa algo apenas abstrato ou etéreo, antes, ela é percebida no seu cuidado para conosco: “Os seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam os filhos dos homens” (Sl 11.4).

A figura do salmista quer demonstrar que Deus observa com atenção. A sua soberania não é distante, indiferente, ou obra do gênio inventivo do homem. Antes, cremos em um Deus que se revela, dando-se a conhecer, demonstrando na Escritura o seu providente cuidado.

Ao mesmo tempo que as Escrituras nos falam de um Deus transcendente, anterior à Criação, majestoso e glorioso, aquele de quem tudo provém, ensina-nos também que este Deus se relaciona conosco.

A revelação de Deus começa pela criação de todas as coisas. “Ao criar o mundo por sua palavra e dar-lhe vida através de seu Espírito, Deus delineou os contornos básicos de toda a revelação subsequente”, interpreta Bavinck.[1]

O nosso Deus é um Deus transcendente e presente. Ele tem o controle de toda situação, de toda esta crise que o salmista está vivendo. Portanto, mais do que um simples exercício intelectual, a soberania de Deus é um desafio à nossa confiança no Deus poderoso e providente.

Jesus Cristo, no Sermão do Monte, nos instrui:

Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir (…). Não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal. (Mt 6.25,34).

Paulo, preso, seguindo os ensinamentos de Cristo, escreve aos filipenses: “Não andeis ansiosos de cousa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas diante de Deus as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graça” (Fp 4.6).

Calvino de forma bíblica e, com longa experiência espiritual a respeito dessa realidade, escreveu: “É pela fé que tomamos posse de sua providência invisível”.[2]

Deus sabe do que necessitamos

Deus sabe das nossas necessidades. O saber de Deus não é apenas intelectual: Deus sabe e por isso cuida (Mt 6.8). Ele não dorme, antes, sabe do que necessitamos antes mesmo que tenhamos consciência das delas.

A Bíblia também nos ensina que Deus nem sempre nos dá aquilo que pedimos; entretanto, sempre nos dá aquilo de que necessitamos de fato e de verdade, mesmo que nem ainda tenha penetrado em nosso coração a realidade da carência. A demorada consciência de nossas próprias carências não escapa à providência de Deus, nem à sua graciosa provisão.

Foi assim desde o início. No Éden, a constatação de Deus é que não seria bom para o homem permanecer só. É Deus mesmo quem percebe a necessidade ainda imperceptível ao homem. Tudo na criação era bom, exceto a solidão do homem. “Deus pôs o dedo na única deficiência existente no Paraíso”, interpreta Ortlund, Jr.[3]  Waltke acentua que a declaração “é altamente enfática. Essencialmente, é ruim para Adão viver sozinho”.[4]

Gênesis que inicia-se com uma demonstração do poder soberano de Deus criando todas as coisas do nada, continua com uma belíssima descrição do cuidado de Deus para com suas criaturas: “As cenas da criação são pintadas como se um artista as visualizasse: Deus, como o oleiro, formando o homem; como jardineiro, designando um jardim de beleza e abundância; e como um edificador de templo, tomando a mulher da costela do homem”, comentam Waltke e Fredericks [5]

O paraíso não era o céu.[6] O homem ainda não havia percebido isso, no entanto, Deus sabia que a solidão lhe faria mal. A carência vai se tornar evidente: Deus passou diante de Adão todos os animais para que ele pudesse nominá-los, distinguir cada uma das espécies.

Todavia, entre toda a Criação, não havia uma companheira à altura do homem. Como ser sociável já em sua gênese, o homem necessitaria compartilhar conhecimentos e afetos, amar e ser amado.[7] O homem, de fato, foi criado por Deus para viver em companhia de seus semelhantes, mantendo uma relação de ideias, valores e sentimentos. Se permanecesse sozinho, os seus sentimentos mais profundos permaneceriam guardados. Não havia para ele um ser igual, da mesma natureza com quem pudesse compartilhar, amar, se emocionar, ensinar, aprender, se divertir. O mesmo Deus que o criou, propõe-se, então, a criar uma companheira para sua obra prima (Gn 2.21-22).

Deus, como uma espécie de “pai da noiva”[8] (“padrinho de casamento”), leva-a até o noivo (Gn 2.22).[9] Adão aprovou a nova criação de Deus. As primeiras palavras do homem registradas nas Escrituras se configuram de forma poética: “Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; chamar-se-á varoa, porquanto do varão foi tomada” (Gn 2.23). A partir daí, tornou-se possível uma relação satisfatória para o homem e sua congênere. Ao mesmo tempo, eles poderão, agora, se perpetuar por meio da procriação – como ato que reflete a sua identidade de amor e complemento – encheriam a terra e sujeitando-a, conforme a ordem divina (Gn 1.28). O Paraíso está pronto para se expandir.[10]

Robertson comenta: “O ‘ser uma só carne’ descrito nas Escrituras não se refere simplesmente aos vários momentos da consumação marital. Em vez disto, esta unidade descreve a condição permanente de união alcançada pelo casamento”.[11]

 

Deus não nos é indiferente

Deus nos deu a sua Palavra e, nos empresta seus ouvidos para que possamos falar com Ele. Ele nos ouve em todas as circunstâncias. A sua Palavra deve ser o estímulo e o conteúdo de nossas orações.

Os salmistas, entre tantos outros servos de Deus, em suas angústias, diversas vezes se alimentavam na certeza de que Deus ouve as suas orações: “Tens ouvido ([m;v’) (shama),[12] SENHOR, SENHOR, o desejo dos humildes; tu lhes fortalecerás (!WK) (kûn)[13] o coração e lhes acudirás (bv;q’) (qashab)(Sl 10.17), expressa o salmista de modo confiante a sua vivência de fé.  (Voltaremos a tratar desse assunto)

 

Salmo 65 – As pegadas abençoadoras de Deus

O salmo 65, escrito por Davi, parece ter sido composto para o uso no santuário durante uma festa anual, possivelmente na Festa dos Tabernáculos, quando o povo lembrava o êxodo do Egito e as suas peregrinações no deserto. Esta festa ocorria cinco dias após o Dia da Expiação e prosseguia por sete dias (Lv 23.27-34).

O contexto do salmo indica a certeza do povo de ter se reconciliado com Deus, manifestando-se esta reconciliação em uma safra abundante (Lv 23.25-22/At 14.17)

Rememorando a majestade e as manifestações do poder de Deus, de forma poética o salmista nos fala das pegadas de Deus: “As tuas pegadas destilam fartura” (Sl 65.11).

Kidner (1913-2008) comenta: “As pegadas são as de um veículo para carregar produtos agrícolas; trata-se de uma figura poética para representar a ação de Deus em derramar as chuvas serôdias enquanto passa, deixando a abundância pelo caminho”.[14] Da mesma forma Schökel (1920-1998) e Carniti: “Etimologicamente, é a trilha ou sinal que os carros deixam passando repetidas vezes; também os sulcos”.[15]

Pelas “pegadas” de um veículo, por exemplo, podemos avaliar o tipo de veículo, a frequência naquele itinerário, peso total, etc. Nesse salmo Davi realça as pegadas fartas e abundantes das bênçãos de Deus sobre o povo (Sl 65.12/ Sl 36.8; 63.5/Sl 92.12-13).

É fundamental que consideremos com atenção a história, desenvolvendo a nossa percepção espiritual para que os nossos olhos vejam a eloquência dos feitos de Deus. Desse modo, possamos ter um vislumbre mais completo de como o Senhor, nosso Rei e Pastor tem nos abençoado.

Agostinho (354-430) escreveu com maestria, nos conduzindo à gratidão e ao louvor sincero:

Quando Deus nos abençoa, nós crescemos, e quando bendizemos ao Senhor, também crescemos; ambas as coisas são para o nosso proveito. (…) A bênção do Senhor vem-nos em primeiro lugar, e por consequência também nós bendizemos ao Senhor. A primeira é a chuva, e esta é o fruto. Por isso estamos entregando a Deus, o agricultor, que nos manda a chuva e nos cultiva, o fruto que produzimos. Cantemos estas palavras com devoção, mas não estéril, nem só de voz, mas com um coração sincero.[16]

 

Oração como antídoto para ansiedade 

Muitas de nossas angústias resultantes de pequenas coisas e algumas incertezas são o resultado da nossa falta de confiança em Deus e do seu cuidado.

Um dos pontos distintivos do Cristianismo é a certeza de que Deus não nos deixa à mercê de nossa sorte, antes, que Ele cuida pessoalmente de nós, amparando-nos, disciplinando, consolando, estimulando e fortalecendo.

Sproul (1939-2017), pondera com precisão que, “A corrupção da nossa compreensão fundamental da natureza e do caráter de Deus traz na sua esteira, sempre, a corrupção da doutrina da Providência divina”.[17]

No entanto, a verdade bíblica que fortalece o coração dos fiéis, é que o Deus Todo-Poderoso cuida de nós. Jesus Cristo nos instrui e consola:

29 Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. 30 E, quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados. 31 Não temais, pois! Bem mais valeis vós do que muitos pardais. (Mt 10.29-31/Mt 6.25-34).[18]

Portanto, o melhor antídoto[19] contra o veneno da ansiedade que, aparentemente sem motivo, domina o nosso coração pecador em meio aos problemas próprios de nossa existência,  é a oração sincera e confiante, por meio da qual expomos a Deus as nossas dúvidas, temores e confiança.[20]

Não podemos combater a ansiedade apenas argumentando contra ela. A oração sincera e submissa é o caminho para a paz em nossa mente e coração. Paulo instrui os filipenses:

6 Não andeis ansiosos de coisa alguma; em tudo, porém, sejam conhecidas, diante de Deus, as vossas petições, pela oração e pela súplica, com ações de graças. 7 E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará o vosso coração e a vossa mente em Cristo Jesus. (Fp 4.6-7).

Quando confiamos em Deus e depositamos sobre Ele as nossas angústias, podemos usufruir da sua paz que guarda a nossa mente e o nosso coração. A paz de Deus não significa, necessariamente, o escape do problema, ou um estado ideal de imperturbabilidade (“ataraxia” e “apatheia”)[21] como queriam os gregos;[22] mas, a paz em meio à dificuldade resultante da nossa confiança em Deus. (Salmos 3 e 4).

Motyer (1924-2016), comentou: “A oração produz uma alegria maior do que a que o mundo pode dar, por meio da paz e segurança que o Senhor pode proporcionar”.[23]

De certo modo, a oração é educativa na escola da adversidade. Portanto, “a oração é um antídoto para todas as nossas aflições”.[24] Por meio da oração podemos encontrar o lenitivo para as nossas almas.

Desse modo, orar é exercitar a nossa confiança no Deus da Providência, sabendo que nada nos faltará, porque Ele é o nosso Pai. Esse Pai é o Senhor. O Senhor é o nosso Pastor.

Calvino nos orienta pastoralmente: “Sempre que o Senhor nos mantém em suspenso e retarda seu socorro, não significa que Ele esteja inativo, mas, ao contrário, que regula suas operações de tal modo que só age no tempo determinado”.[25]

Portanto, cresçamos no conhecimento de Deus; exercitemos a nossa fé em sua Palavra, sabendo que o nosso Senhor Todo-Poderoso cuida de nós. Amém.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

__________________________________________________________________________

[1]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Prolegômena, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 308.

[2]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 13.1), p. 262.

[3]Raymond C. Ortlund, Jr.  Igualdade Masculino-Feminina e Liderança Masculina: In: John Piper; Wayne Grudem, compiladores, Homem e Mulher: seu papel bíblico no lar, na igreja e na sociedade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 1996, p. 38.

[4]Bruce K. Waltke; Cathi J. Fredericks, Gênesis, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 104.

[5]Bruce K. Waltke; Cathi J. Fredericks, Gênesis, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 94.

[6]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 584.

[7]Ver: Aristóteles, A Ética, I.7.6. e A Política, I.1.9. Do mesmo modo, G.W. Leibniz, Novos Ensaios, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 19), III.1.1. p. 167. Calvino (1509-1564), escreveu: “O homem é um animal social de natureza, consequentemente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, observamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas, II.2.13). Em outro lugar, entendendo que o princípio de que não seja bom que o homem viva sozinho não se restringe a Adão, diz que “o homem foi formado para ser um animal social”, acrescenta: “Mas ainda que Deus declarasse, no que respeita a Adão, que não lhe seria proveitoso viver sozinho, contudo não restrinjo a declaração unicamente à sua pessoa, mas, antes, a considero como sendo uma lei comum da vocação do homem, de modo que cada um deve recebê-la como dita a si próprio: que a solidão não é boa, excetuando somente aquele a quem isenta como que por um privilégio especial” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 2.18), p. 128).

[8]Cf. Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary, 3. ed. (Revised Edition), Bloomsbury Street London, SCM Press Ltd., 1972, (Gn 2.21-23), p. 84.

[9] Cf. Gerhard von Rad, El Libro del Genesis, Salamanca: Sigueme, 1977, (Gn 2.22), p. 101.

[10] Diz a Confissão de Westminster: “O matrimônio foi ordenado para o auxílio mútuo de marido e mulher, para a propagação da raça humana por uma sucessão legítima, e da Igreja por uma semente santa, e para evitar-se a impureza. Ref. Gn 2.18 e 9.1; Ml 2.15; 1Co 7.2,9” (Confissão de Westminster, XXIV.2).

[11] O. Palmer Robertson, Cristo dos Pactos, p. 68. “A relação em ‘uma só carne’ envolve mais do que sexo; é a fusão de duas vidas em uma; é consentir em compartilhar a vida juntos, através do pacto do casamento; é a completa entrega de si mesmo a um novo círculo de existência, ao lado de um companheiro” (Raymond C. Ortlund, Jr.  Igualdade Masculino-Feminina e Liderança Masculina: In: John Piper; Wayne Grudem, compiladores, Homem e Mulher: seu papel bíblico no lar, na igreja e na sociedade, p. 39).

[12] A palavra quando se refere a Deus como aquele que ouve, tem o sentido de ouvir e responder.

[13]A palavra tem o sentido de estabelecer, firmar, manter-se reto.

[14] Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e comentário, São Paulo: Mundo Cristão/Vida Nova, 1980, v. 1, (Sl 65.11), p. 254.

[15] Luís Alonso Schökel; Cecília Carniti, Salmos I: 1-72, São Paulo: Paulus, 1996, p. 827.

[16] Sto. Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1997, v. 2 (Sl (67) 66.1), p. 361.

[17] R.C. Sproul, A Mão Invisível, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 84-85.

[18] Bridges (1929-2016) desenvolve bem as implicações desta compreensão. Veja-se: Jerry Bridges, A Vida Frutífera, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 75-77.

[19]“A oração é o nosso principal meio de combater a ansiedade” (John MacArthur Jr.  Abaixo a Ansiedade, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 31). “Este [a oração] é o único remédio que pode aplacar nossos temores, a saber, lançar sobre ele todas as preocupações que nos atribulam” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 3.1-2), p. 82).

[20]Calvino comentando Rm 12.12, enfatiza que “a diligência na oração é o melhor antídoto contra o risco de soçobrarmos” (João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 12.12), p. 438).

[21] Cf. Ataraxia: In: Arnaldo Schüler, Dicionário Enciclopédico de Teologia, Canoas, RS.: Ed. ULBRA, 2002, p. 68-69.

[22] Veja-se: W. Foerster, Ei)rh/nh: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982 (Reprinted), v. 2, p. 400-402.

[23]J.A. Motyer, Salmo: In:  D.A. Carson, et. al.  eds. Comentário Bíblico: Vida Nova, São Paulo: Vida Nova, 2009, (Sl 4.8), p. 742.

[24]John Calvin, Commentary of the Book of Psalms, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (Calvin’s Commentaries, v. 6/4), 1996 (Reprinted), (Sl 118.5), p. 379.

[25]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 2.4),  p. 91.