6.1.5. Rei Glorioso
Portanto, se queremos ter um só e único Deus, lembremo-nos de que, na verdade, não se deve subtrair de sua glória nem sequer uma partícula, senão que deve conservar para ele o que é seu por direito. – João Calvino.[1]
Davi louvando ao Senhor vitorioso nas batalhas, canta:
7Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. 8Quem é o Rei da Glória (dAbK’) (kabod)? O SENHOR, forte e poderoso, o SENHOR, poderoso nas batalhas. 9Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória (dAbK’) (kabod). 10Quem é esse Rei da Glória (dAbK’) (kabod)? O SENHOR dos Exércitos, ele é o Rei da Glória (dAbK’) (kabod). (Sl 24.7-10).
Em outro salmo, o salmista liturgicamente canta: “Não a nós, SENHOR, não a nós, mas ao teu nome dá glória (dAbK’) (kabod), por amor da tua misericórdia e da tua fidelidade” (Sl 115.1).
Os textos acima, juntamente com outros que ainda utilizarei, representam apenas uma pequena amostra de como as Escrituras nos estimulam e convidam a glorificar a Deus. A glória pertence exclusivamente a Ele e, por extensão, ao seu Reino − não porque Deus derive glória de seu Reino, mas porque o Reino é glorioso por ser regido pelo Rei da Glória.
A glória de Deus não tem origem em suas obras, mas na sua própria essência. Ele é autoglorioso e, por isso, realiza obras gloriosas.
Não há relação que possamos estabelecer por nós mesmos capaz de descrever, mensurar ou comparar a santidade de Deus. Podemos, no entanto, recorrer às analogias que o próprio Deus nos oferece, criando conexões que nos permitem compreender — ainda que de forma limitada, mas genuína — aspectos de sua glória.
Assim, quando a palavra santo se refere a Deus, ela está diretamente ligada à sua Majestade. Deus não se confunde com a criação; Ele a transcende qualitativamente em todos os aspectos. Está acima de tudo o que existe — e tudo o que existe é sustentado por Ele.
Como observa Naudé: “A santidade de Deus, dessa forma, se torna uma expressão da perfeição do seu ser, a qual transcende todas as criaturas.”[2] Somente Ele é absolutamente santo; não há, nem haverá outro.[3] Por isso, somente o Senhor é o Rei Glorioso.
A glória de Deus é a expressão visível de sua santidade. Deus é santo, e a manifestação perceptível dessa santidade é o que chamamos de glória.
Piper, provavelmente inspirado em Motyer (1924-2016),[4] escreve:
A glória de Deus é a manifestação de sua santidade. A santidade de Deus é a perfeição incomparável de sua natureza divina. Sua glória é a exibição dessa santidade. (…) A santidade de Deus é sua glória oculta. A glória de Deus é a sua santidade revelada.[5]
Bavinck comenta:
Para essa glorificação de si mesmo Deus não precisa do mundo, pois não é a criatura que independente e suficientemente exalta a honra de Deus; pelo contrário, é Ele que, por meio de suas criaturas ou sem elas, glorifica seu próprio nome e revela-se a si mesmo. Deus, portanto, nunca procura a criatura para encontrar algo de que esteja precisando.[6]
Glória Excelsa revelada a todos os povos
Num universo permeado por “deuses locais”, o salmista exalta o Senhor como o Deus que é simultaneamente presente e transcendente. Ele declara: “Excelso (~Wr) (rum) (= exaltado) é o SENHOR, acima de todas as nações, e a sua glória (dAbK’) (kabod), acima dos céus” (Sl 113.4/Sl 138.5-6).
Ainda que de forma limitada, a natureza revela aspectos da glória do Rei eterno, evidenciando seu poder majestoso entre todas as nações. Reconhecendo essa revelação, o salmista convoca todos os povos a louvarem a Deus, contemplando a glória que se manifesta diante de toda a humanidade: “Os céus anunciam a sua justiça, e todos os povos veem a sua glória (dAbK’) (kabod)” (Sl 97.6).
A glória de Deus não está confinada a um espaço sagrado ou a um povo específico — ela resplandece sobre toda a terra: “Sê exaltado, ó Deus, acima dos céus; e em toda a terra esplenda a tua glória (dAbK’) (kabod)” (Sl 108.5).
A glória da criação não se compara à glória de Deus
Por mais gloriosa que seja a criação de Deus − mesmo antes da Queda −, revelando atributos do seu Criador como beleza, grandeza, soberania, sabedoria, harmonia e bondade, ela permanece infinitamente inferior ao próprio Criador. Deus é incomparavelmente mais glorioso do que tudo o que foi criado. A beleza pura, plena e consumada encontra-se exclusiva e absolutamente em Deus.
Assim, a obra de Deus não deve ser vista como um ato isolado de glória ou como uma tentativa de “superação” − à semelhança de um artista que se excede ao criar sua obra-prima. Antes, ela é uma expressão acessível à nossa limitada compreensão da glória transcendente de Deus, que excede infinitamente nossa capacidade de sondá-la (Rm 11.33–36; Jó 36.22,26; 37.5,16).
A glória de Deus está impressa em tudo o que Ele realiza. Sua natureza se revela em cada uma de suas obras. Como bem observa Allen:
Essas relações conosco não conseguem revelar e não revelam a essência divina para nós; pois a criação é um efeito de Deus. A encarnação e nossa recepção da nova vida vêm dela também são resultados da ação de Deus. Todos estes efeitos de Deus não esgotam a magnitude de sua fonte. Um efeito, mesmo grande, não pode revelar a plena extensão ou natureza de sua fonte inexaurível. Assim, até mesmo nos atos de criação e redenção, a natureza essencial de Deus, ou Seu ser não é conhecível. Embora essa natureza essencial esteja presente, e presente de maneira inédita na encarnação, nós não podemos compreendê-la plenamente. As ações de Deus nunca exaurem a natureza divina, e nós conhecemos a Deus somente quando Ele age ou se relaciona conosco.[7]
A glória de Deus, por pertencer essencialmente a Ele, é ontológica − inerente ao seu próprio ser. Não lhe é atribuída, acrescentada, diminuída ou esgotada em sua complexidade. [8] Ela é totalmente intrínseca. Por isso, Deus não carece de nada fora de si mesmo: sua glória permanece inalterada em tudo o que criou e preserva.[9] Nada nem ninguém lhe comunica glória.
Ele é o Rei, o Senhor e o Pai da Glória (Sl 24.7-10; At 7.2; Ef 1.17),[10] que, por meio de seu Filho, como bem expressa Calvino, “vestido de nossa carne, se revelou agora para ser o Rei da glória e Senhor dos Exércitos” (1Co 2.8; Tg 2.1/Jo 1.14).[11]
Schreiner está correto ao afirmar: “Eu definiria a glória de Deus como a beleza, majestade e grandiosidade de quem Ele é; portanto, a grandiosidade de seu ser é demonstrada em tudo o que Ele faz, quer na salvação, quer no julgamento.”[12]
Durante o ministério terreno de Jesus Cristo, a maioria das pessoas não conseguia perceber que aquele homem − tão decidido, doce e acessível, amado e odiado, reverenciado e temido − era o próprio Deus encarnado. O Senhor da glória.[13]
Paulo escreve aos coríntios revelando a nulidade do conhecimento humano diante da sublimidade de Cristo: “Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor (ku/rioj) da glória”, maravilha-se Calvino. (1Co 2.8/Tg 2.1/Jo 17.1-5).
Nossos cânones intelectuais, sociais e culturais são insuficientes para enxergar a majestade do Filho, pois não temos como mensurar o incomensurável. E como essa é também uma questão essencialmente espiritual, Satanás atua no velamento do entendimento humano, para que a glória do Filho revelada no Evangelho não resplandeça a nós: “O deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4).
Como reafirmado, a realidade criada − os fenômenos gloriosos da criação, envolvendo homens e animais − revela, ainda que de forma limitada, a glória de Deus.
Deus criou todas as coisas − inclusive a Igreja − para a manifestação de sua glória. A criação não é um fim em si mesma, mas um meio pelo qual a excelência dos atributos divinos se torna visível. Como bem afirmou Hodge (1823–1886): . “Glória é excelência manifestada. A excelência dos atributos de Deus é manifestada por sua operação”.
Cada ato criador, cada intervenção redentora, cada expressão de juízo ou graça revela, de forma singular, a majestade do Ser divino. A Igreja, como povo redimido, é chamada não apenas a contemplar essa glória, mas a vivê-la e proclamá-la − sendo, por vocação, “para louvor da sua glória” (Ef 1.6,12,14).
Deus criou todas as coisas, inclusive a Igreja, para a sua Glória. “Glória é excelência manifestada. A excelência dos atributos de Deus é manifestada por sua operação”, diz Hodge (1823-1886).[14]
A Igreja e a glória de Deus
Como vimos, a criação revela aspectos da glória divina − beleza, ordem, poder e sabedoria −, mas a Igreja é uma expressão singular e especial dessa glória. Calvino observa com precisão: “Ainda que Deus seja suficiente a si mesmo e se satisfaça exclusivamente consigo mesmo, não obstante quer que sua glória se manifeste na Igreja”.[15]
O alvo final de todas as coisas é a glória Deus. Nada é mais elevado, mais essencial ou mais digno do que o próprio Deus. Essa verdade nos confronta com um desafio profundo − tanto individualmente quanto como Igreja: renunciar aos nossos interesses, que nos parecem tão urgentes e relevantes (aliás, em nossa ótica, o que há de mais importante do que os nossos interesses?) pelo que, de fato, é urgentemente relevante em sua própria essência: Reconhecer a glória de Deus manifestada em sua criação, palavra e atos na história.
Algumas considerações
A Igreja existe para refletir e proclamar a glória de Deus, vivendo com os olhos fixos naquele que é santo e incomparável. Seu culto deve ser reverente, centrado na majestade divina, e não moldado pelas preferências humanas.[16] Liturgia, música, pregação e oração devem exaltar o Senhor da glória.[17]
Mais do que promover interesses próprios, a Igreja é chamada a manifestar a excelência de Deus, renunciando ambições pessoais e institucionais em favor daquilo que é eternamente relevante: a glória do Criador revelada em sua Palavra, em suas obras e, sobretudo, em Cristo.
Diante da grandeza divina, a Igreja se curva em reverência, reconhecendo seus limites e rejeitando qualquer arrogância espiritual. Sua missão não se restringe à salvação de almas, mas à proclamação da beleza e majestade de Deus entre as nações.
Cristo, o Senhor da glória, é o centro da mensagem da Igreja.
Como a revelação dessa glória é espiritual e frequentemente obscurecida pelo inimigo, é essencial cultivar discernimento, oração e dependência do Espírito para que a luz do Evangelho resplandeça com clareza.
A vocação da Igreja é viver para o louvor da glória de Deus − não apenas nos cultos, mas em cada aspecto da vida. Santidade, gratidão e adoração devem marcar o cotidiano dos redimidos. Afinal, Deus criou todas as coisas, inclusive a Igreja, para a manifestação de sua glória.
Esse é o seu propósito mais elevado: contemplar, viver e anunciar a glória de Deus.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1]João Calvino, As Institutas, I.12.3.
[2]Jackie A. Naudé, Qds: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 876.
[3] “Sua santidade é sua essência divina totalmente única, transcendente, pura, a qual, em sua singularidade, tem valor infinito. Ela determina tudo quanto ele é e faz e não é determinada por ninguém. A sua santidade é o que ele é como Deus, o que ninguém mais é nem nunca será” (John Piper, Na sala do trono: In: Kathleen B. Nielson; D.A. Carson, orgs. Este é o nosso Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 61).
[4]“A santidade é a glória escondida de Deus; a glória é a santidade onipresente de Deus” (Alec J. Motyer, O Comentário de Isaías, São Paulo: Shedd, 2016, p. 101).
[5]John Piper, Na sala do trono: In: Kathleen B. Nielson; D.A. Carson, orgs. Este é o nosso Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 61,62.
[6]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP. 2001, p. 183.
[7]Diógenes Allen; Eric Springsted, Filosofia para entender Teologia, 3. ed. Santo André, SP.; São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2010, p. 25-26. Calvino, escrevera: “Ora, visto que a majestade de Deus, em si mesma, vai além da capacidade humana de entendimento e não pode ser compreendida por ela, devemos adorar sua grandiosidade em vez de investigá-la, a fim de não permanecermos extasiados por tão grande esplendor. Assim, devemos buscar e considerar Deus em suas obras, que as Escrituras chamam de representações das coisas invisíveis (Rm 1.20; Hb 11.1), visto que estas obras representam, para nós, aquilo do Senhor que de outra forma não podemos ver. Ora, isso não mantém nosso espírito suspenso no ar através de especulações frívolas e vãs, mas é algo que devemos conhecer e que gera, nutre e confirma em nós uma piedade verdadeira e sólida, ou seja, uma fé unida ao temor reverente” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 3, p. 13).
[8]“Pois se homens e anjos juntassem sua eloquência em função deste tema, ainda assim tocariam mui diminutamente em sua imensurabilidade” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.14), p. 39).
[9]Veja-se: João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.36), p. 430.
[10]“Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é o Rei da Glória? O SENHOR, forte e poderoso, o SENHOR, poderoso nas batalhas. Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é esse Rei da Glória? O SENHOR dos Exércitos, ele é o Rei da Glória” (Sl 24.7-10). “Estêvão respondeu: Varões irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai, quando estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã” (At 7.2). “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Ef 1.17). (Destaques meus).
[11]“Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (do/ca)” (1Co 2.8). “Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória (do/ca), em acepção de pessoas” (Tg 2.1). “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória (do/ca), glória (do/ca) como do unigênito do Pai” (Jo 1.14).
[12]Thomas R. Schreiner, Uma Teologia bíblica da glória de Deus: In: S. Storms; J. Taylor, orgs. John Piper: ensaios em sua homenagem, São Paulo: Hagnos, 2013, p. 262.
[13] Veja-se: R.C. Sproul, A Glória de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 1997.
[14]A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata & Sanches, 1895, p. 223.
[15]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 2.17), p. 100.
[16] “Devemos ter sempre em mente que, tudo quanto não agrada a Deus, que vise a seu próprio bem, e somente até onde ele leva a algum outro fim, se porventura é posto no lugar de seu culto e serviço verdadeiros, é por ele rejeitado e desvanece.” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 40.6), p. 226-227).
[17] “Os homens motejam de Deus simplesmente por apresentar-lhe cerimônias fúteis e sem proveito, a menos que a doutrina da fé os preceda, estimulando-os a invocar a Deus; e, também, a menos que a lembrança de seus benefícios lhes injete motivação para o louvor. Sim, é uma terrível profanação de seu nome quando o povo apaga a luz da verdade divina e se satisfaz meramente em praticar um serviço externo.” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 81.1-3), p. 278).