1.2.5. Juízo eterno
O direito de Deus agir como juiz é estabelecido por Ele mesmo; decorre de sua natureza e soberania. Foi o próprio Deus quem “erigiu” o seu trono para julgar − e é Ele quem o preserva. Esse trono é símbolo do seu poder absoluto e autônomo.
O mesmo Deus que estabeleceu as estrelas nos céus (Sl 8.3);[1] os céus[2] e a Terra,[3] firmou o seu trono nos céus (Sl 103.9).[4]
seu juízo permanece para sempre: “Mas o SENHOR permanece no seu trono eternamente (~l’A[) (‘olam), trono que erigiu (!WK) (kun) para julgar (jP’v.mi) (mishpat)” (Sl 9.7).
Leis que “não pegam”
No Brasil, é comum ouvirmos falar de leis que “não pegam”. Ou seja, leis que existem formalmente, mas não são efetivamente aplicadas. Muitas vezes, o Poder Executivo não possui meios para implementá-las, fiscalizá-las ou garantir seu cumprimento. Assim, há leis que permanecem apenas no papel, enquanto outras são modificadas, substituídas ou simplesmente abolidas[9] − independentemente de terem sido praticadas ou não.
O que antes era legal, agora deixou de ser. Isso ocorre em diversos campos da vida social e acadêmica:
- Regras para uso das vias públicas.
- Normas mecanográficas para trabalhos acadêmicos.
- Normas ortográficas.
- Penalidades para determinados crimes.
- Leis de trânsito.
- Regulamentações sobre horários de funcionamento de shoppings e comércio. Durante a pandemia, por exemplo, essas normas variaram frequentemente entre regiões e até dentro de um mesmo Estado.
- Reforma tributária.
Leis que permanecem
É verdade que existem leis que permanecem, como as da termodinâmica, da gravidade, entre outras. No entanto, essas leis não persistem por terem sido descobertas, mas porque Deus as criou e as sustenta. Elas já existiam antes de serem reconhecidas como “leis” − e Deus nos governa por meio delas, bem como por inúmeras outras que sequer conhecemos.
Nossa percepção científica não constitui parâmetro absoluto da realidade. As coisas não passam a existir simplesmente porque as identificamos ou compreendemos. A ignorância humana quanto a determinada realidade não a invalida nem a extingue. O que é verdadeiro permanece, independentemente de nossa capacidade de percebê-lo ou explicá-lo.
Juízos verdadeiros e eternos
Os juízos de Deus, por serem verdadeiros e fundamentados na verdade que emana do próprio Deus, duram para sempre. Como afirma o salmista: “As tuas palavras são em tudo verdade desde o princípio, e cada um dos teus justos (qd,c) (tsedeq) juízos (jP’v.mi) (mishpat) dura para sempre (~l’A[) (‘olam)” (Sl 119.160).
Dessa forma, o que desejo enfatizar é que o juízo de Deus − tanto em seu aspecto deliberativo quanto executivo − é eterno. Deus cumpre fielmente aquilo que determina. Ele possui total autonomia e poder para agir conforme Sua vontade. Não há instância superior à qual se possa recorrer; não existe grau de recurso além dele. [10] Nenhum obstáculo pode impedir o cumprimento de Seus decretos.
Barnes (1798-1870) comenta:
Deus é soberano. Seu trono é fixo e firme. Seu domínio não é vacilante nem mutável. Seu reinado não é como o reinado dos monarcas terrenos, que depende do capricho de uma vontade mutável, ou de paixão; não está sujeito a ser alterado pela morte, por revolução ou por nova dinastia. O trono de Deus é sempre o mesmo, e nada o pode abalar nem derrubar. (…) Ele reina sobre todo o universo – os céus e a terra; por isso pode executar todos os seus propósitos.[11]
Descanso na Justiça de Deus
Desse modo, podemos descansar confiantes no cuidado e na proteção de Deus. O salmista expressa essa certeza: “Pois o necessitado não será para sempre esquecido, e a esperança dos aflitos não se há de frustrar perpetuamente (d[;)(‘ad)” (Sl 9.18).
Em meio a uma crise intensa, cercado por inimigos e diante de conselhos contraditórios, Davi recorre à sua convicção sobre o caráter de Deus. Ele declara: “Porque o SENHOR é justo, ele ama a justiça; os retos lhe contemplarão a face” (Sl 11.7).
Se Deus é santo, soberano e justo, podemos confiar plenamente na vitória final da sua justiça. Davi está convencido da legitimidade de sua causa e, por isso, invoca o Deus justo.
Afinal, quem melhor do que Deus para julgar a causa de alguém
A Justiça Humana e a Justiça Divina
A justiça da Terra pode ser corrompida: manobras políticas, subornos, omissões e negligências são realidades. No entanto, a justiça eterna de Deus permanece firme. Ela jamais foi − nem será − extirpada de Seu trono no céu (Sl 11.4).[12]
Pode haver justiça sem santidade, mas não pode haver santidade sem justiça. A justiça humana, por vezes, é apenas ideal − não real − pela impossibilidade de aplicá-la, seja por limitações morais, estruturais ou políticas.
Em Deus, porém, encontramos a perfeita harmonia entre santidade, poder e justiça. Ele é santo e possui todo o poder para agir conforme Sua justiça. Sendo justo, e amando a justiça, Deus é o padrão absoluto de toda justiça e retidão. Ele age sempre com integridade.
Jesus e a santidade do Pai
Na Oração Sacerdotal, Jesus dirige-se a Deus como “Pai justo” (Jo 17.25). Em Sua entrega em favor do povo, Cristo estava imbuído de profunda certeza e confiança na paternidade e na justiça de Deus. Na doação do Filho, além da misericórdia e do amor, temos também a perfeita manifestação da justiça divina.
Diante das provações que enfrentamos, aprendemos que, muitas vezes, o aspecto mais importante do processo não está na concessão ou não daquilo que pedimos em oração, mas no que Deus nos ensina ao longo desse caminho – um desafio à nossa confiança, submissão, paciência e entrega.
Se ando em fidelidade, posso compreender as aflições pelas quais passo como provações vindas de um Deus justo (Sl 11.5). Sabemos que essas provações têm como propósito o nosso aperfeiçoamento. Por vezes, somos refinados por meio delas. Por isso, devemos perseverar firmes, confiantes no amparo e cuidado do Senhor.
Como escreveu Calvino: “Se não podemos encontrar justiça em parte alguma do mundo, o único apoio de nossa paciência se encontra em Deus e em descansar felizes na equidade de seu juízo”.[13]
É justamente por essa razão que devemos nos aquietar com confiança e nos alegrar no conforto de Suas promessas, rendendo-lhe louvor. Afinal, o fundamento do Seu trono permanece inabalável: “Reina o SENHOR. Regozije-se a terra, alegrem-se as muitas ilhas. Nuvens e escuridão o rodeiam, justiça (qd,c) (tsedeq) e juízo são a base do seu trono” (Sl 97.1-2).
1.2.6. Juízo além de nossa compreensão
Davi escreve extasiado diante das manifestações das perfeições divinas: “A tua justiça é como as montanhas de Deus; os teus juízos, como um abismo profundo. Tu, SENHOR, preservas os homens e os animais” (Sl 36.6).
É necessário que não nos precipitemos em nossas conclusões. Os juízos de Deus ultrapassam em muito o nosso discernimento imediato. Ele, porém, como Rei soberano, julga eternamente − com justiça e sabedoria − tendo em vista sua glória e a felicidade de seu povo.
1.2.7. Justo e compassivo
O salmista afirma: “Pois o SENHOR julga (!yDI) (din) (administra[14]) ao seu povo e se compadece (~x;n”) (nacham) (consolar,[15] confortar,[16] ter compaixão[17]) dos seus servos” (Sl 135.14).
E exulta: “O SENHOR é reto. Ele é a minha rocha, e nele não há injustiça” (Sl 92.15).
No reto juízo de Deus, há sempre misericórdia. Deus é justo e misericordioso. Não há conflito entre seus atributos; eles coexistem em perfeita harmonia porque Deus é perfeito. Somente na perfeição transcendente de Deus encontramos verdadeira conciliação entre aquilo que, aos nossos olhos, parece irreconciliável.
Nossos critérios de perfeição são sempre falhos, pois o imperfeito não pode criar nem avaliar o perfeito. E mesmo que o tivesse diante de si, não disporia de parâmetros provenientes de si mesmo para identificá-lo com certeza.
Na justiça de Deus, encontramos o amor provedor do Senhor. Por isso, não devemos tentar ser mais justos do que Deus. Ainda que busquemos “objetividade” em nossos juízos, sabemos que nossa análise é limitada e permeada por paixões. Em síntese: somos pecadores e limitados. Não nos esqueçamos disso.
Estejamos certos, portanto, de que Deus julga com retidão e justiça. Ele não tarda. E isso − ao mesmo tempo − nos consola e nos adverte.
Algumas considerações
Ao contemplarmos a justiça de Deus, somos conduzidos a uma dimensão que transcende os limites da razão humana. Sua justiça não é apenas um atributo entre outros, mas expressão viva de sua santidade, soberania e amor. O trono de Deus, firme e eterno, é sustentado por juízo e justiça − fundamentos que jamais serão abalados.
Diante da instabilidade das leis humanas, da fragilidade dos sistemas terrenos e da corrupção que permeia os juízos da Terra, somos convidados a descansar na certeza de que o Senhor reina. Ele não apenas julga com retidão, mas também se compadece dos seus servos. Sua justiça é inseparável de Sua misericórdia.
Em Cristo, vemos a perfeita encarnação dessa justiça compassiva. Ao chamar Deus de “Pai justo” (Jo 17.25), Jesus nos revela que o juízo divino não é arbitrário, mas redentor. A cruz é o ponto de encontro entre o juízo que condena o pecado e a misericórdia que salva o pecador arrependido.
Por isso, mesmo em meio às provações, podemos confiar. Deus não tarda. Ele age no tempo certo, com sabedoria perfeita, visando à sua glória e ao nosso bem eterno. Como afirmou Calvino, quando não encontramos justiça no mundo, encontramos consolo ao repousar na equidade do juízo divino.
Que essa convicção nos leve à reverência, à confiança e ao louvor. Que nos aquietemos diante do Senhor, certos de que o nosso Pastor-Rei governa com justiça e nos conduz com misericórdia. E que, como os salmistas, possamos contemplar a face do Deus justo e cantar com esperança: “Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do SENHOR para todo o sempre.” (Sl 23.6).
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste (!WK)” (Sl 8.3).
[2]“O SENHOR com sabedoria fundou a terra, com inteligência estabeleceu (!WK) os céus” (Pv 3.19).
[3]“A tua fidelidade estende-se de geração em geração; fundaste (!WK) a terra, e ela permanece” (Sl 119.90).
[4]“Nos céus, estabeleceu (!WK) o SENHOR o seu trono, e o seu reino domina sobre tudo” (Sl 103.19).
[5] “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste (!WK)” (Sl 8.3).
[6]“O SENHOR com sabedoria fundou a terra, com inteligência estabeleceu (!WK) os céus” (Pv 3.19).
[7]“A tua fidelidade estende-se de geração em geração; fundaste (!WK) a terra, e ela permanece” (Sl 119.90).
[8]“Nos céus, estabeleceu (!WK) o SENHOR o seu trono, e o seu reino domina sobre tudo” (Sl 103.19).
[9] Deve-se observar contudo, que há correntes no Brasil que entendem que seja saudável que todas as leis não sejam praticadas, porque seria impossível, considerando inclusive a quantidade de leis existentes e o número estrondoso de decretos, normas, resoluções, portarias que são criados diariamente.
[10] Figura análoga encontrei posteriormente em Piper. Veja-se: John Piper, Na sala do trono: In: Kathleen B. Nielson; D.A. Carson, orgs. Este é o nosso Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 58.
[11]Albert Barnes, Notes on the Old Testament: Explanatory and Practical, 10 ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1973, v. 3, (Sl 103.19), p. 79.
[12]Cf. A.F. Kirkpatrick, The Book of Psalms, Cambridge: University Press, © 1902, 1951, (Sl 11), p. 59.
[13] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 4.1), p. 92.
[14] Sl 9.9.
[15] Sl 23.4; 86.17.
[16] Sl 71.21.
[17] Sl 90.13.