Provas da existência de Deus?
As Escrituras não gastam tempo discutindo sobre as “provas da existência de Deus”, antes, nos apresentam um Deus que fala e age. A Bíblia parte do pressuposto Teórico-prático da existência de Deus. Deus é o Senhor. Ele é um ser necessário e concreto.[1] Ao invés de argumentar a favor da sua existência, as Escrituras iniciam com Ele criando todas as coisas. Querem algo mais prático do que isso.
Muito de o seu agir é agenciado por sua palavra que cria, recria, sustenta e transforma (Gn 1.1/Gn 2.4).[2] Antes de tratar da matéria, as Escrituras iniciam com o Deus que cria e depois, narra o que realizou.
As primeiras palavras das Escrituras fornecem o fundamento de toda a nossa compreensão teológica. No primeiro verso de Gênesis temos uma profunda proposição ontológica e epistemológica.[3] A negação dessa declaração revelacional − “No princípio, Deus” −, acarreta um caos em nossa epistemologia, possibilitando a fabricação de um deus esvaziado de seu poder e glória, produto de nossa imaginação[4] o, que pode pavimentar o caminho para um total ateísmo.
A idolatria é a carência de Deus em rebeldia contra o Deus das Escrituras revelado em Cristo. Um teísmo sem Cristo é uma religião vaga, sem sentido, desprovida de significado e sem salvação. Por sua vez, o caminho natural da idolatria, não é um teísmo, ainda que vago, mas, o deísmo ou ateísmo.
Um dos fundamentos da doutrina cristã é a certeza de que cremos em um Deus soberano,[5] Todo-Poderoso[6] que nos ama e se dá a conhecer pessoalmente a nós.
Sem a revelação de Deus seria impossível crer ou falar de Deus.[7] No entanto, nós podemos conhecê-lo genuína e pessoalmente. Nesse sentido, exulta o salmista: “Conhecido ([d;y”) (yada’)[8] é Deus em Judá; grande (lAdG”) (gadol) (= supremo), o seu nome em Israel” (Sl 76.1).
O Senhor em sua Palavra, além de nos revelar facetas sublimes de sua natureza, nos dá a conhecer aspectos de seu propósito eterno, que envolve o seu amor que antecede à nossa criação, o seu cuidado para conosco nos instruindo como devemos viver, a correção quando nos desviamos, e, a garantia final de nossa salvação futura já assegurada.
Aqui vemos uma diferença bastante significativa entre a narrativa/concepção bíblica e toda filosofia antiga. A diferença ontológica está no fato de que Deus se distingue da matéria criada. Ele, somente Ele, é necessário, essencial, eterno e absoluto; de nada precisa. Toda a criação não é necessária nem se sustenta; é contingente e essencialmente sustentada para que possa existir.
Há também uma diferença epistemológica porque, como vimos, os escritores bíblicos não estão preocupados em explicar, argumentar, provar ou demonstrar a existência de Deus, antes, creem que Ele existe, é autônomo e autopoderoso. Todo o conhecimento possível advém desse mesmo Deus que se revela.
Transcendência e imanência
Dessa forma, afirmamos a transcendência de Deus, negando com isso o panteísmo; e, também afirmamos a imanência de Deus, partindo de um fato real: a Revelação de Deus, negando, portanto, o deísmo. A fé cristã sustenta a criação de todas as coisas pela vontade livre, que nos é inacessível, e soberana de Deus e, ao mesmo tempo, a manutenção dessa realidade por meio desse Deus pessoal e que se revela, se relacionando conosco.
A Bíblia ensina essas duas verdades:
1) O Céu e a Terra não podem conter Deus: 1Rs 8.27; Is 66.1; At 7.48,49.
2) Todavia, Ele sustenta os Céus e a Terra, estando especial e qualitativamente próximo daqueles que sinceramente o buscam: Sl 139.7-10; Is 57.15; Jr 23.23,24; At 17.27,28.
Calvino (1509-1564) exulta: “A glória de nossa fé é que Deus, o Criador do mundo, não descarta nem abandona a ordem que Ele mesmo no princípio estabelecera”.[9]
Apresentando a questão de outro modo, podemos dizer que o nosso Deus é soberano sobre todas as coisas (Transcendente) e onipresente, estando presente em toda criação (Imanente).[10]
Foi com este Deus que nossos primeiros Pais se relacionavam, mas optaram por rejeitarem-no, justamente porque tinham a pretensão de serem iguais a Ele. No pecado transparece um certo ressentimento estimulado por Satanás em Adão e Eva por não terem sido criados iguais a Deus ainda que fossem sua imagem. (Gn 3.5-6). Há presunção e arrogância: querem ser iguais a Deus
Quando contemplamos a cruz de Cristo, deparamo-nos com o Deus encarnado, o Senhor glorioso e o Servo sofredor, onde há plenitude de conhecimento e de sabedoria (Cl 2.3) que ultrapassam totalmente a nossa capacidade de compreensão.
Por maravilhosa graça, podemos então ter um verdadeiro conhecimento de Deus e da realidade. A epistemologia cristã, como qualquer outra, parte do pressuposto de que há um mundo real e, que este mundo é acessível. Não enxergamos simplesmente miragens, antes, temos contato com a realidade que é autoevidente. Por isso, mesmo admitindo que as percepções da realidade variam devido a questões intelectuais, físicas, emocionais e circunstanciais, podemos, assim mesmo conhecer, e chegar a um grau bastante consistente de senso comum.
Isso não significa que possamos esgotar o mundo real ou, que em todos os pontos do conhecimento teremos unanimidade, antes, que é possível submeter o nosso conhecimento ao que é considerado absoluto, podendo, assim, sujeitar as nossas compreensões a um aperfeiçoamento constante. Contudo, conforme escrevemos em outro lugar, uma visão conjunta, considerando as visões diferentes e complementares de pessoas, lugares e épocas diferentes, ainda que não esgotem o fenômeno, podem nos ajudar a obter uma compreensão mais rica e completa. Aliás, há ciência justamente porque pensamos haver essa possibilidade.
A ciência é transitória e, justamente é transitória por ser uma ciência humana, em construção e depuração.[11] No final das contas, ela tem dúvida quanto às suas certezas já que a certeza é uma dúvida que carrega consigo.
Creio que em muitos momentos falte à ciência (cientista) a consciência de sua própria limitação. Ela pouco se conhece. Como escreveu Morin: “A questão ‘o que é a ciência?’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica”.[12]
Adão e Eva rejeitam a Deus em busca de sua autonomia
Retornando às Escrituras, perguntamos: um dos aspectos fundamentais na tentação de Adão e Eva não foi justamente o desejo de conhecer além do que lhes seria, por graça, permitido? Adão e Eva desejaram a autonomia. A partir daqui esse pensamento vigorará em toda raça humana caída: “a sabedoria tem como pressuposto a autonomia”. Mais recentemente: “o naturalismo aliado ao método científico é o caminho da sabedoria”.
Ter um conhecimento independente e independentemente de Deus.[13] Ser iguais a Deus: Autossuficientes.[14] Satanás lhes ofereceu uma cosmovisão concorrente onde o ponto de referência não era mais Deus, mas, a divinização do desejo pessoal deles, distante da proposta santa de Deus.[15]
A distância onipresente ideal do desejado nos fascina. O limite é, com frequência, o atrativo maior do desejado.[16] Mas, ao mesmo tempo, limite é o teste de nossa fidelidade e caminho de crescimento. Satanás, como os falsos mestres, tendem a apresentar um “macete”, “truque” ou, mais eufemisticamente, um “segredinho” para obter um resultado melhor. O seu caminho é a promessa de um “up”; só que para baixo; para o rompimento com Deus.
Fazendo uma pequena digressão, constatamos que no Novo Testamento, Pedro instrui seus leitores quanto a essa tentação, dizendo que tudo o que precisamos para obter um perfeito conhecimento de Deus dentro da esfera do revelado, foi-nos dado por Ele mesmo. Deus nunca nos propõe truques ou atalhos:
2Graça e paz vos sejam multiplicadas, no pleno conhecimento de Deus e de Jesus, nosso Senhor. 3Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude. (2Pe 1.2-3).
Retornando ao Éden, destacamos que aqui, quando unicamente dispuseram de total liberdade como criaturas, num ato pensado que revelou o absurdo de sua racionalidade, resolveram desobedecer a Deus em busca do que consideraram ser um salto para a liberdade plena, uma “queda para cima”. Pura tolice.
A loucura da desobediência é pródiga em promessas que não pode cumprir e nos abandona em frustração e desespero. A liberdade carnal nada mais é do que uma expressão de nossa escravidão espiritual.
O desejo de independência os leva a aceitar qualquer aceno secular em detrimento da fé em Deus. Aqui, a tentativa insana de independência de Deus, ao invés de vida, é morte. “A autonomia humana pecaminosa, longe de ser o caminho para a autorrealização humana, é, em si mesma, uma distorção daquilo que é humano”, comenta Knudsen (1924-2000).[17] Assim, o grito de independência não é de liberdade mas, de morte: independência é morte! Brado de vida é gemido de morte!
O pecado como algo paradoxal
Algo paradoxal aconteceu: O ser que eu mais admiro é justamente o que eu rejeito por meio de minha desobediência a fim de me tornar igual a Ele por via inversa. A lógica seria que eu desejasse me aproximar cada vez mais da sabedoria de Deus por meio da obediência aos seus preceitos. No entanto, mediante a tentação satânica, sou convencido de que o caminho para me tornar tão ou mais sábio do que Deus é o da subversão de sua autoridade, deificando o homem e a sua vontade.[18] Negando a sabedoria de Deus é que conseguirei ser tão sábio quanto Ele. Tem lógica isso? poderia alguém perguntar…
Mas, quem disse que a lógica tem compromisso com a verdade? Ela apenas procura demonstrar friamente a decorrência de suas pressuposições. A sua “lógica” é ser fiel aos seus pressupostos. É uma “relação de decorrência”; um encadeamento de enunciados a partir de determinadas premissas conduzindo gradativamente a um resultado.[19] Portanto, o problema não está na lógica mas nos pressupostos que adotamos. Creio que isso tem lógica.
Retornando: Temos aqui uma suspeita moral sobre a integridade do ser de Deus. Ele – começam a inferir – não é tão santo, justo e bondoso como quer nos fazer crer (Gn 3.1-5). O caminho do crescimento, pensam Adão e Eva, é o da desobediência. Isso consumado, instalou-se o caos na sua vida, em suas relações e na criação. (Gn 3.7-24). A paz da criação estabelecida por Deus foi quebrada ali,[20] ainda que antes, já estivera trincada no coração do homem e da mulher.
As Escrituras nos mostram com insistência, que é Deus mesmo quem nos instrui (Sl 32.8-9).[21] No entanto, curiosamente, nossos primeiros Pais que tinham a presença contínua de Deus com eles, rejeitaram a instrução divina, preferindo a sabedoria que supostamente viria da árvore no Jardim do Éden.
Narra Moisés: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento (שׂכל) (śâkal), tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu” (Gn 3.6). Eles desejavam o sucesso por seus próprios meios, mas, conheceram o fracasso por serem guiados simplesmente por suas sensações em oposição à ordem divina.
O entendimento proposto por Deus nunca pode começar por um ato de falta de entendimento que se concretize em desobediência à sua Palavra. Antes, deve começar pela obediência aos seus preceitos e, ele amadurece no processo de aprendizado da obediência. A obediência à verdade é purificadora (1Pe 1.22). O princípio da vida não é um ato de ousadia irreverente, mas, de temor ao Senhor (Pv 1.7). (Vou tratar desse tema mais à frente).
Em outras palavras, aprendo a obedecer obedecendo. E enquanto obedecemos, vamos nos afeiçoando à instrução de Deus e experimentando os seus frutos em nossa vida.
Obedecer é graça
Assim como a fé é um dom gracioso de Deus, a nossa obediência é o resultado e fruto dessa mesma graça. Obedecer é gratidão proveniente da graça. A recompensa da obediência não é apenas final, mas, se processa no aprendizado da obediência submissa e sincera.[22] Obedecer é graça que se manifesta em gratidão. Fé é obediência oculta. A obediência é a fé manifestada. Obedecer é fé em exercício. Parte do fruto da obediência é obedecer.
A verdadeira fé se evidencia no fato de tomarmos a Bíblia como a nossa norma de vida. Não podemos crer realmente em Deus se desconsideramos a sua Palavra e promessas.
A falta de entendimento
A atitude de Adão e Eva, diferentemente, revelou falta de entendimento que se agravaria na concretização consumada desse comportamento carente de fé em Deus. Esse quadro de desobediência só seria revertido definitivamente por meio da obediência perfeita de Cristo, nosso Senhor (Fp 2.5-8; Hb 5.8-9).[23]
Aqui temos mais uma lição preciosa para nós que muitas vezes tendemos a trocar a instrução de Deus por outra, estranha à sua Palavra. Essa é uma tendência normal do homem pecador. Portanto, todos nós sem exceção estamos, ainda que por vezes de modo sutil, dispostos a substituir o Criador pela criatura (Rm 1.25),[24] criando e cultuando a deuses afeitos aos nossos desejos e circunstâncias.
A partir desse novo ponto umbilical de referência, excluindo Deus ou o deixando em um canto, à margem da história e da sua vida, o homem começa a construir seus ídolos de acordo com a sua nova imagem eticamente caída. Temos aqui o início do humanismo, considerando de forma teórica e prática o homem como centro e medida de toda a realidade.[25] Por isso é que todo humanismo autônomo não passa de um ato idólatra onde Deus é subjetivamente destronado e o homem colocado como centro da realidade, perdendo assim todas as referências metafísicas. Sem fé no transcendente não há possibilidade de sentido. Sem fé em Deus, nada faz sentido.[26]
Há um depoimento que considero muito significativo. Próximo ao fim da vida, Newton (1642-1727), mesmo tendo consciência de suas contribuições, confessa-se extasiado diante da magnitude da criação. Isso o conduzia a localizar o seu trabalhado de forma relacional. Por isso, a clareza quanto à sua pequenez. Disse então:
Não sei o que posso parecer ao mundo; mas para mim eu pareço ter sido apenas como um garoto brincando à beira-mar e me desviando de vez em quando, encontrando uma pedra mais lisa ou uma concha mais bonita do que o normal, enquanto o grande oceano da verdade permanecia misterioso diante de mim.[27]
Vanhoozer, inspirando-se em uma antiga pergunta de Richard Dawkins, velho conhecido de McGrath, propõe que o teólogo tem um papel importante na universidade:
Justamente porque estão atentos contra a criação de ídolos, os teólogos também servem de sentinelas contra o reducionismo científico – a tentação que aflige incessantemente o acadêmico. O reducionismo é a concupiscência dos olhos teóricos, o desejo de ser capaz de explicar todos os fenômenos relevantes por meio de suas próprias ferramentas conceituais – saber como Deus sabe.[28]
O homem, em seu pretenso humanismo autônomo, não consegue encontrar um ponto de integração que confira sentido à realidade. Portanto, o sentimento constante de insatisfação e frustração, como descrito por McGrath:
Deixar de relacionar-se com Deus é deixar de ser completamente humano. Ser realizado é ser plenificado por Deus. Nada transitório pode preencher esta necessidade. Nada que não seja o próprio Deus pode esperar tomar o lugar de Deus. Assim mesmo, por causa da decadência da natureza humana, há hoje a tendência natural de se tentar fazer com que outras coisas preencham essa necessidade. O pecado nos afasta de Deus e nos leva a pôr outras coisas em seu lugar. Essas vêm para substituir Deus. Elas, porém, não satisfazem. E, como a criança que experimenta e expressa insatisfação quando o pino quadrado não se encaixa no orifício redondo, passamos a experimentar um sentimento de insatisfação. De alguma forma, permanece em nós a sensação de necessidade de algo indefinível de que a natureza humana nada sabe, só sabe que não o possui.[29]
As flores do jardim já não são da nossa casa
Retornando ao Jardim, observamos que a estada abençoadora e alegre de Deus no cair da tarde, tornou-se terrificante e assombrosa. Deus continuava a ser o mesmo. O homem, no entanto, não. O pecado nos afasta de Deus, e rejeita a sua presença que, por si só, revela a nossa condição de desobediência, e torna notória a nossa infelicidade conquistada autonomamente: o salário do pecado é a morte (Rm 6.23).
Na insinuação diabólica, há sempre uma tentativa em apontar que o nosso caminho, a nossa opção é a melhor. A sua proposta sempre se configurará como a mais lógica e atraente. De fato, o caminho apresentado é cheio de espelhos.
A desobediência a Deus é, com frequência, o caminho que nos parece mais objetivo e prático, além de encontrarmos uma inclinação natural para ele. No entanto, a vontade de Deus para nós é que resistamos a estas tentações e continuemos crendo em Deus e na sua Palavra, seguindo a rota proposta – o caminho de vida por Ele traçado para nós.
Monod (1910-1976) – ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1965 – retrata de forma sombria a solidão do homem. Na melancólica conclusão de seu livro, disse:
Talvez se trate de uma utopia, mas não de um sonho incoerente. É uma ideia que se impõe pela força única de sua coerência lógica. Tal é a conclusão a que a busca da autenticidade leva necessariamente. Rompeu-se a antiga aliança. Enfim, o homem sabe que está sozinho na imensidão indiferente do universo, de onde emergiu por acaso. Não mais do que seu destino, seu dever não está escrito em lugar algum. Cabe-lhe escolher entre o Reino e as trevas.[30]
O homem que pretendeu divinizar-se – colocar-se no lugar do Criador – desumanizou-se. Agora já não sabe mais o que é. A história tem demonstrado o fracasso dessa tentativa e, que mais cedo do que poderiam imaginar os mais pessimistas, esse humanismo que pretendia restaurar o homem à sua suposta justa dignidade – que, em muitos momentos fora esquecida na Idade Média – é, na realidade, um anti-humanismo. Na tentativa de matar a Deus, o secularismo matou o homem em sua plenitude. Ele passou a ser apenas o resultado de uma evolução casuística, restando apenas um arremedo de nossa real natureza, felizmente ainda preservada em misericórdia pelo Deus vivo, que nos sustenta como sua imagem.
Deus não relegou o homem ao total abandono. Um sinal mais do que evidente é que Ele continua a falar e, também, Ele preservou em nós, no aspecto metafísico, a condição de sua Imagem de Deus; não perdemos a nossa natureza essencial.[31] (Trataremos desse tema mais à frente).
Resumindo
Em síntese, vimos que a existência de Deus não depende de argumentos racionais ou de uma demonstração empírica, mas se revela desde o início nas Escrituras como o Criador e sustentador de toda a realidade. Essa revelação, que não parte de provas externas, mas da própria ação de Deus, fundamenta a fé cristã num relacionamento pessoal e transformador, onde a experiência da presença divina supera qualquer método puramente lógico.
Além disso, a narrativa bíblica evidencia uma profunda distinção entre a verdadeira sabedoria que vem da obediência à vontade de Deus e a ilusão de autonomia humana, ilustrada pela queda de Adão e Eva.
O conhecimento pleno do Deus transcendente e imanente só pode ser alcançado ao reconhecer os limites da razão humana e ao se submeter ao propósito eterno de Deus que ama e sustenta a criação.
Devemos repensar a relação entre fé, razão e experiência, considerando que, para além dos debates filosóficos, a nossa relação com Deus se manifesta na vida real, na transformação interior e na constante revelação do poder e do amor de Deus.
A ciência, ao tentar explicar tudo sem considerar Deus cai num reducionismo e idolatria intelectual. A falsa sensação de autonomia do homem, ao se afastar de Deus, resulta em um vazio existencial e na incapacidade de encontrar um ponto de integração que dê sentido à realidade.
A tentativa de eliminar Deus da vida humana não restaurou sua dignidade, mas o desumanizou ainda mais. No entanto, Deus não abandonou a sua criação e continua a se comunicar, preservando a essência da sua imagem no homem.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Cf. Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 72.
[2]“Esta é a gênese dos céus e da terra quando foram criados, quando o SENHOR Deus os criou” (Gn 2.4).
[3] Veja-se palestra que fiz na 5ª Conferência Teológica do Seminário JMC. Palestra ministrada no dia 28.04.2023:
(Consultado em 24.05.2025)
[4] “Tanto nas épocas antigas como hoje, os ídolos se conformam à imaginação de quem os cria. Os ídolos têm, com o verdadeiro Deus, semelhanças o bastante para serem plausíveis, mas diferem no sentido de que nos deixam confortáveis e com a satisfação de manipular os substitutos que construímos” (Vern S. Poythress, Redimindo a Matemática: uma abordagem teocêntrica, Brasília, DF.: Monergismo, 2020, p. 20-21). Veja-se: R.C. Sproul, A Santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 205.
[5] “33Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! 34 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? 35 Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? 36 Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).
[6] “No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “… O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).
[7]“A revelação cristã não é somente necessária para que se possa crer no Deus da religião cristã, como também não tem sentido imaginar que se possa conhecer a existência desse mesmo Deus de outro modo que não pela fé em sua própria revelação” (Étienne Gilson, O Filósofo e a Teologia, São Paulo; Santo André, SP.: Paulus; Academia Cristã, 2021, p. 88).
[8]([d;y”) (yada’). Este conhecimento envolve a capacidade de discernir (Sl 4.4), experimentar (Sl 9.11; 20.7; 25.4.14; 119.75; 139.1,2,4; 139.14), ver (Sl 16.11); pensar/perceber (Sl 35.8); perfeito conhecimento (Sl 37.18; 44.21; 50.11; 69.5; 94.11; 103.14; 139.23; 142.3); conhecimento íntimo e pessoal (Sl 51.3); intimidade/proximidade (Sl 55.13; 88.18); compreender (Sl 73.16); aprender (Sl 78.3); ensinar (Sl 90.12); fazer notório/manifestar (Sl 98.2; 103.7; 145.12).
[9] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11.4-5), p. 241.
[10] Veja-se: John Frame, Teologia Sistemática, São Paulo: Cultura Cristã, 2019, v. 1, p. 92ss.
[11] Gene Edward Veith, Jr. De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 57. Vejam-se também: K.R. Popper, A Lógica da Investigação Científica, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 44), 1975, § 85. p. 383, 384; Karl R. Popper, O Realismo e o objectivo da ciência, (Pós-Escrito à Lógica da Descoberta Científica, v. 1), Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, * 27, p. 234-235; Jean Piaget, A Epistemologia Genética, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 51), 1975, p. 129-130).
[12]Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 21. À frente: “A questão ‘o que é ciência?’ não tem resposta científica. A última descoberta da epistemologia anglo-saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso quer dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto de ciência, e o cientista, sujeito” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 119). “A ciência não controla sua própria estrutura de pensamento. O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece. Essa ciência que desenvolveu metodologias tão surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela externos, não dispõe de nenhum método para se conhecer e se pensar” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 20). Para uma abordagem mais amplo desse assunto. Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Uma fé que investiga e uma ciência que crê, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2020.
[13] “A serpente estava tentando fazer com que Eva adotasse uma sabedoria autônoma, isto é, sabedoria que já não dependeria de Deus como sua fonte. Em lugar de a admiração por Deus produzir nela uma submissão à sábia vontade dele, a admiração pela sabedoria independente produziu nela rebeldia conta a vontade de Deus” (P. Tripp, Admiração, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 74). “A essência do pecado dos nossos primeiros pais é que eles queiram ter uma existência autônoma e independente, não mais dependendo ‘de toda palavra que procede da boca de Deus’ (Mt 4.4). De fato, essa referência foi tomada da tentação de Jesus pela serpente no deserto, em que ele desfaz a transgressão de Adão respondendo a ela da maneira correta” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 59).
[14] Tillich (1886-1965), assim define este conceito: “Representa a vida humana vivida segundo a lei da razão em todos os aspectos da atividade espiritual (…). Para os indivíduos, autonomia é a coragem de pensar; coragem de se valer dos próprios poderes racionais (Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE, 1986, p. 48).
[15] Veja-se: R.K. Mc Gregor Wright, A Soberania Banida, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 248. Após a queda, “a criação não se tornou má, mas tornou-se o campo de batalha entre o bem e o mal. Ela carrega as cicatrizes do pecado (e o pecado sempre deixa cicatrizes). Na ocasião, a estratégia de Satanás era tornar o mundo de Deus o seu mundo — apossar-se do bom mundo de Deus. Satanás trabalha para transformar o mundo de Deus à sua imagem. Ele trabalha para convencer o homem de que o mundo de Deus é estranho, bizarro, desagradável, desafeiçoado ou entediante. Esse foi justamente o seu apelo para Eva em Gênesis 3: ‘Eva, venha viver no meu mundo. Deus não deseja o melhor para vocês. Deus não os deixou comer esta fruta deliciosa. Em meu mundo, vocês podem comê-la. Deus não quer que vocês saibam tudo o que ele sabe. Em meu mundo, deixarei que vocês saibam todas as coisas. Deus mentiu para vocês. Mas estou lhes dizendo como as coisas realmente são’. Satanás está propondo não apenas que Adão e Eva desobedeçam; não está simplesmente convidando o homem a rebelar-se. Satanás está oferecendo-lhes um mundo completamente diferente. Está oferecendo-lhes uma realidade diferente. Todos sabemos que aquilo que nos cerca tende a tornar-se normal para nós” (P. Andrew Sandlin, Deus decide o que é normal, Brasília, DF.: Monergismo, 2021 (Edição do Kindle), p. 9. Posição 143 de 1880).
[16] “Os homens pecaminosos nunca se dispõem a andar dentro das fronteiras que Deus impõe às suas criaturas. Em sua arrogância, declaram sua suposta liberdade e reivindicam ser senhores de seus próprios destinos” (Allan Harman, Comentário do Antigo Testamento ‒ Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, (Sl 2), p. 79).
[17] Robert D. Knudsen, O Calvinismo como uma força cultural: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e sua influência no mundo ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, [p. 11-31], p. 20.
[18] Devo parcialmente essa observação ao meu grande amigo, Rev. Ricardo Rios que, em correspondência privada (08.06.18), disse: “A minha tese é que o ateísmo é uma resposta aos ditames de Deus. Como eu não posso seguir suas ordenanças, eu nego que elas existam. A autonomia é uma deificação humana”.
[19] Veja-se: Ricardo Santos, Lógica: In: Pedro Galvão, org. Filosofia: uma introdução por disciplinas, Lisboa, Edições 70, 2013, [p. 7-43], p. 7.
[20] Cf. P. Tripp, Admiração, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 22.
[21]“Instruir-te-ei (שׂכל) (śâkal) e te ensinarei o caminho que deves seguir; e, sob as minhas vistas, te darei conselho” (Sl 32.8). A palavra aqui traduzida por “instrução”, é traduzida também por “entendimento” (Gn 3.6; Sl 14.2; 53.2; 2Cr 30.22); “inteligência” (Jr 3.15); “atentar” (Sl 106.7); “prudência” (1Sm 18.5; Sl 2.10; 94.8; 111.10; Is 52.13); “êxito” (1Sm 18.14,15,30; 2Rs 18.7); “discernimento” (Sl 36.3); acudir (Sl 41.1). A palavra se refere “à ação de, com a inteligência, tomar conhecimento das causas. (…) Designa o processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra consequência é a ênfase no ser bem-sucedido” (Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p 1478). Vejam-se: William Gesenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 3. ed. Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1978, 789-790; Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478-1480; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 74, 224-225.
[22]“Existe uma recompensa, não somente após obedecer aos mandamentos de Deus, mas durante a obediência deles” (Matthew Henry, Comentário Bíblico de Matthew Henry, 5. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, (Sl 19), p. 411).
[23]“Ele [Jesus Cristo] tornou-se o Autor de nossa salvação, visto que se fez justo aos olhos de Deus, quando remediou a desobediência de Adão através de um ato contrário de obediência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.9), p. 137-138).
[24]“20Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. 22Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. 24 Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; 25pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!” (Rm 1.20-25).
[25]“A forma extrema da idolatria é o humanismo, que vê o homem como a medida de todas as coisas” (R.C. Sproul, O que é a teologia reformada: seus fundamentos e pontos principais de sua soteriologia, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 33). Veja-se também: R.C. Sproul, A santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 205. Na provável primeira carta que Calvino escreveu depois de ter se fixado em Genebra (1536), alegra-se com o avanço da Reforma e a consequente diminuição da superstição e idolatria. Então diz: “Deus permita que os ídolos sejam erradicados também do coração” (Carta escrita ao seu amigo Francis Daniel no dia 13 de outubro de 1536. In: João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30). Veja-se também: João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 22.
[26]Wittgenstein (1889-1951) escreveu: “Crer em Deus significa entender a questão sobre o significado da vida. Crer em Deus significa ver que os fatos do mundo não são o fim do assunto. Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido.” (L. Witgenstein, Notebooks 1914-1916, New York: Harper & Brothers Publishers, 1961 p. 74c)
[27] Citado em David Brewster, Life of Sir Isaac Newton, Good Press, 2019. (Edição do Kindle), (Posição 3814 de 4520). Antes de Newton, Pascal (1623-1662), seu contemporâneo, havia refletido: “Quando penso na pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade anterior e na eternidade posterior, no pequeno espaço que ocupo, e mesmo que vejo, fundido na imensidade dos espaços que ignoro e que me ignoram, aterro-me e assombro-me de ver-me aqui e não alhures, pois não há razão alguma para que esteja aqui e não alhures, agora e não em outro momento qualquer. Quem me colocou nestas condições? Por ordem e obra de quem me foram designados este lugar e este momento?” (B. Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 16), 1973, III. 205. p. 95).
[28] Kevin J. Vanhoozer, A Trindade, as Escrituras e a função do teólogo: contribuições para uma teologia evangélica, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 99. Lembrei-me da figura empregada por Barth (1886-1968):
“Não se pode despedir-se da vida e da sociedade. Elas nos cercam por todos os lados; elas nos impõem questões; elas nos confrontam com decisões. Nós devemos sustentar nossa base. O fato de que hoje nossos olhos estão mais amplamente abertos às realidades da própria vida se dá porque desejamos algo mais. Nós gostaríamos de estar fora desta sociedade, e em outra. Mas isto é apenas um desejo; nós ainda estamos dolorosamente cônscios de que, a despeito de tudo, as mudanças sociais e as revoluções, tudo é como era antigamente. Se fora desta situação nós perguntamos: ‘Vigia, o que há na noite?’, a única resposta que carrega alguma promessa é, ‘O cristão’.” (Karl Barth, A Palavra de Deus e a Palavra do homem, São Paulo: Novo Século, 2004, p. 207-208)
[29]Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 68.
[30]Jacques Monod, O acaso e a necessidade, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1971, p. 198.
[31]“A essência da natureza humana é seu ser criado à imagem de Deus” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 540).