Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas – 3
I – O Deus dos Salmistas
O Ser de Deus e o existir da Criação
Deus é. Somente em Deus temos uma identidade inseparável e integral entre essência e existência.[1] Em Deus tudo é essência. A sua essência é infinita e inacessível (Sl 145.3/Jó 11.7-9). Ele eternamente é o que é por si mesmo. Portanto, nele nada é acidente. Ele como “causa não causada” (Sl 94.9),[2] nada o antecede ou acrescenta elementos a si mesmo. Ele é o que é. Ou: Será o que será porque é o que será bem como é o que foi (Ex 3.14; Jó 36.22-23; 41.11; Is 40.13-14; Rm 11.33-36; 1Co 2.16).
A eternidade, a história e as circunstâncias nada acrescentam a Deus que, como ser absolutamente simples, é completo[3] e, por isso mesmo, perfeito. A partir da compreensão dessa condição absoluta, necessária e eterna, é que toda a ontologia, epistemologia, teologia e ética tornam-se possíveis.
As pessoas e as coisas existem. Como criação do Deus absoluto, toda a natureza luta contra a sua extinção já que é criatura e organicamente − e no ser humano, também intelectualmente −, não se “conforma” com os limites do aqui e agora. A criação traz em seu ventre o caminho do fim; do não-ser; este é o ciclo de toda criatura; a terrível geografia de todo existir enquanto criado.
Por sua vez, o seu existir, tem em si o senso, ainda que longínquo, do absoluto que permanece. É um senso de autopreservação que lhe é inerente.[4] Somos criaturas. Perecemos, já que não possuímos a imortalidade que é um atributo exclusivamente de Deus (1Tm 6.16). Portanto, o nosso permanecer é-nos comunidade por Aquele que possui a eternidade.
Mas, como indicamos, temos em nós o aspirar pela eternidade que não nos permite satisfazer com o que é terreno e, por isso passageiro (Ec 3.11). O transcender-se marca sempre a arte e a literatura em toda cultura.[5] No tempo, categorizamos o nosso anseio pelo eterno: “Caminhamos por essa terra, fazendo o que podemos para torná-la um lugar melhor e, ao mesmo tempo, sabendo que pertencemos a outro país. Lar é onde o coração está; e nossos corações anseiam por estar com Deus”, comenta McGrath.[6]
O “existir de Deus” é uma categoria divina comunicativa acomodatícia à fragilidade e limitação de compreensão já que pensamos sempre com categorias delimitadas pela transitoriedade do existir. Falar do existir de Deus é por si só uma categorização humana e, por isso mesmo, com a permissão de Deus, acomodatícia e restritiva.[7]
Conhecemos a Deus porque Ele se revela. O nosso conhecimento é limitado, porém, pode ser real e verdadeiro.[8] A criação do nada pressupõe a existência de um Deus soberanamente livre e autopoderoso que se basta eternamente a si mesmo.[9] E mais, Ele não se confunde com a matéria e tem deliberação e poder próprio para trazer a existência o que não existe (Gn 1.1; Rm 4.17).
Deus existe por si mesmo, não depende de nada fora dele (Ex 3.14/Ap 1.4). Ele é a causa eficiente de tudo o que existe (Is 44.24/Jo 1.1-3).[10] Deus antecede à criação. Permanece para sempre e não muda.
Deus revelou-se como “Eu sou o que sou,” destacando sua natureza eterna, não apenas um atributo. Essa expressão indica que Deus possui existência por sua própria natureza, sem origem em outro ser. Filosoficamente, isso se refere à autoexistência de Deus, contrastando com tudo que existe, já que tudo o mais fora dele, deriva sua existência de outro ser. Deus é o próprio Ser, sem necessidade de atualização.
Assim comenta Agostinho (354-430):
Outras substâncias ou essências admitem acidentes, causas de pequenas ou grandes mudanças. Deus, porém, não é susceptível de acidentes, e por isso, nele existe unicamente uma substância ou essência imutável. A Deus somente compete verdadeira e infinitamente o ser em si mesmo, pelo qual designamos o seu esse, isto é, a sua essência. Tudo o que muda não conserva o ser em si mesmo e o que pode mudar, mesmo que não mude, pode ser o que antes não tinha sido. Assim, somente ao que não muda e não pode de forma alguma mudar, pode-se afirmar, sem escrúpulos, que verdadeiramente é o Ser.[11]
Asseidade divina
Partindo da asseidade[12] de Deus – sua independência total e absoluta −, todas as suas demais perfeições, conforme podemos conhecer, se deduzem necessariamente, quer logicamente,[13] quer biblicamente,[14] quer de ambas as formas, visto que a lógica e as Escrituras não estão em contradição e, se completam[15] num processo de comunicar o revelado e suas implicações.
Como sabemos, a verdade é lógica. Porém, não podemos nos esquecer de que como pecadores que somos, podemos usar a lógica equivocadamente, atendendo por vezes os nossos interesses, partindo assim, de pressupostos estranhos às Escrituras.[16]
Deus se revela em doses homeopáticas correspondentes fielmente ao seu ser dentro do propósito que tem em vista. Conhecemos a Deus pela sua Palavra e atos. Os nomes de Deus são formas importantes e pedagógicas usadas para que possamos conhecê-lo, bem como aspectos de sua natureza.
Deus é o Senhor eterno antes e independentemente de sua Criação. “Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”, escreveu Moisés (Sl 90.2).
Moisés, por revelação direta de Deus, registra de forma inspirada (2Pe 1.20-21), narrando os atos criadores de Deus, sem se preocupar em falar com mais detalhes a respeito daquele que, mediante a sua Palavra, faz com que do nada surja a vida. Cria o universo. Estabelece suas leis próprias e as preserva e avalia a sua criação como muito boa. A providência de Deus é o seu governo soberano persistindo na existência do que foi criado (Preservação).[17]
Moisés apresenta o Deus Todo-Poderoso exercitando o seu poder de forma criadora, segundo o seu eterno propósito. Portanto, Deus é. Este é o fato pressuposto em toda a narrativa da Criação. Deus cria segundo a sua Palavra e isto nos enche de admiração e reverente temor: a Palavra de Deus é o verbo criador que manifesta a determinação e o poder de Deus (Gn 1.1,26, 27; Sl 33.6,9; Jo 1.1-3; Hb 11.3),[18] que criou todas as coisas com sabedoria (Pv 3.19).[19]
O Deus que se revela
Embora em si mesmo Deus seja “anônimo, ou seja, sem nome,” entretanto, em sua revelação ele é “poliônimo’, ou seja, possuindo muitos nomes”. – H. Bavinck.[20]
Se Deus não se desse a conhecer também pelo seu nome, ele poderia, quem sabe, der designado de forma apofática como o inominável, conforme foi proposto em diversos momentos da história da Igreja.[21]
No entanto, as Escrituras nunca tratam de Deus de forma impessoal ou abstrata, mas, como o Deus infinito-pessoal que se revela[22] e se relaciona misericordiosamente com os seus. Por exemplo, a revelação do seu nome objetiva estabelecer o canal; o meio gracioso de Deus para que nos relacionemos com Ele.[23]
Ao revelar-se ao homem, Deus utiliza uma linguagem compreensível para os humanos, adaptando-se às limitações de nossa consciência. Esta comunicação divina é essencial para que possamos dirigir-nos a Deus corretamente e reconhecê-lo por meio de suas próprias palavras e revelações. Esta iniciativa divina permite que as criaturas chamem a Deus pelo nome e se relacionem com Ele de maneira genuína e fundamentada em sua revelação.[24]
As Escrituras evidenciam o valor metafísico da realidade, contudo, não se limitam a isso, por mais importante que seja e, de fato é. Elas tratam dessa questão em termos ontológicos, normativos e existenciais. A metafísica está relacionada diretamente com a Lei absoluta de Deus e com os efeitos disso em nossa vida. Isso explica, por exemplo, porque grande parte das Escrituras consiste em narrativa histórica, onde esses aspectos são realçados na vida do povo de Deus, no lócus temporal, em sua obediência ou não, ao Deus soberano.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] “Logo, é impossível que, em Deus, a existência seja diferente da essência. (…) A existência está para a essência, da qual difere, como o ato para a potência. Ora, Deus nada tendo de potencial, como demonstramos, resulta que a sua essência não difere da sua existência e, portanto, são idênticas. (…) Deus é a sua essência. (…) Deus é a sua existência e não somente, a sua essência” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2. ed. Caxias do Sul, RS.; Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Universidade de Caxias do Sul; Livraria Sulina Editora; GRAFOSUL, 1980, v. 1, Primeira Parte, Questão 2, Artigo 4, Solução, p. 26-27).
[2] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 247.
[3] “A essência de Deus é perfeitamente simples e livre de toda e qualquer composição. (…) Toda composição infere em mutação, por meio da qual uma coisa se torna parte de um todo, o que ela não era antes” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 262,263).
[4] Veja-se: Herman, Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 156.
[5] “As artes apontam para o que está além do meramente humano, pois a fonte da beleza, creio, está além de tudo que é meramente humano” (Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 248). Como bem disse o pintor norueguês Munch (1863-1944) no início do século XX, num momento não rotineiro de sobriedade: “A arte é a compulsão do homem para a cristalização. (…) A natureza não é apenas o que o olho pode ver. Ela mostra também as imagens interiores da alma ‒ as imagens que ficam do lado de trás dos olhos” (Edvard Munch, Arte e Natureza: In: H.B. Chipp, Teorias da Arte Moderna, 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999 (2ª tiragem), p. 112).
[6] Alister McGrath, A Fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 23.
[7] Como bem escreve Clark (1902-1985): “É, portanto, relativamente sem importância se uma pessoa crê ou não na existência de Deus. Existência é um pseudoconceito. A questão importante é ‘Quem é Deus?’. A esta pergunta o Cristianismo oferece uma resposta trinitariana” (Gordon H. Clark, Ateísmo: In: Carl Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 63. Do mesmo modo, na mesma obra, ver o verbete escrito pelo autor, “Dios”, p. 164). Veja-se: Carl F.H. Henry, Deus, Revelação e Autoridade v. 2: Deus que fala e age – 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 261-263.
[8] “É claro que todo o nosso conhecimento de Deus é ectípico ou derivado da Escritura. Somente o autoconhecimento de Deus é adequado, não-derivado ou arquetípico. Apesar disso, nosso conhecimento finito, inadequado, ainda é verdadeiro, puro e suficiente” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo, Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97). Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, v. 2, p. 98,99,110; Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156-157; Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 151; John M. Frame, A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 164ss.; Morton H. Smith, Systematic Theology, South Carolina: Greenville Seminary Press, 1994, p. 100-106.
[9] “A substância suprema (…) tudo o que ela é, é por si mesma e de si mesma” (St. Anselmo de Cantuária, Monológio, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 7), 1973, I.6, p. 21).
[10] “Deus é aquele que existe de si mesmo e por meio de si mesmo, o ser perfeito que é absoluto em sabedoria e bondade, justiça e santidade, poder e bem-aventurança” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98).
[11] Stº. Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994 (Patrística, v. 7). Livro 5.2, p. 193.
[12] Quanto ao conceito, veja-se: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 47.
[13] Cf. Gordon H. Clark, Atributos divinos: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, MI.: T.E.L.L. 1985, p. 72-74.
[14]Cf. Herman, Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, 154-156; Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, NJ.: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1974, p. 206-210.
[15] Cf. John M. Frame, A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 453-454, 624 (nota 3).
[16] Toda verdade é lógica, no entanto, por algo nos parecer lógico, não significa que seja verdadeiro. A lógica é fundamental na construção e formalização de um pensamento, contudo, a apreensão do objeto, quer com fundamento ou apenas seguindo o senso comum de forma pré-analítica, é que será o fundamental. A lógica nada prova. Ela apenas desenvolve induções lógicas já contidas em suas premissas. (Veja-se: Veja-se: Thomas Sowell, Conflito de visões: origens ideológicas das lutas políticas, São Paulo, É Realizações, 2012, p. 18-19).
[17] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 603.
[18] “No princípio, criou Deus os céus e a terra. (…) 26 Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. 27 Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” (Gn 1.1,26-27). “6Os céus por sua palavra se fizeram, e, pelo sopro de sua boca, o exército deles. (…) 9 Pois ele falou, e tudo se fez; ele ordenou, e tudo passou a existir” (Sl 36,6,9).
[19] “O Senhor com sabedoria fundou a terra, com inteligência estabeleceu os céus” (Pv 3.19).
[20] H. Bavinck, The Doctrine of God, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, © 1951 (Eerdmans); © (Banner), 1977), Reprinted 2003, p. 88. Ver também: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 140. Dionísio Areopagita no 5º século, em sua teologia apofática, havia dito a respeito de Deus que Ele é a)nw/numoj (anônimo, sem nome, inominável), poluw/numoj (muitos nomes) e u(perw/numoj (Nome superior). (Dionísio Areopagita, Os Nomes de Deus: In: Jacques-Paul Migne, Patrologiae cursus completus. Series Graeca, Paris, 1857, v. 3, col. 593-596).
[21] Veja-se uma amostragem disso nas indicações de Henry (Carl F.H. Henry, Deus, Revelação e Autoridade v. 2: Deus que fala e age – 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 255-257).
[22] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 113.
[23] Veja-se: Carl F.H. Henry, Deus, Revelação e Autoridade v. 2: Deus que fala e age – 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 225, 254.
[24]Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 101,107; H. Bavinck, The Doctrine of God, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, © 1951 (Eerdmans); © (Banner), 1977, Reprinted 2003, p. 95,130-131; Carl F.H. Henry, Deus, Revelação e Autoridade v. 2: Deus que fala e age – 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 260.
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