Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas – 2
O Deus que se dá a conhecer genuinamente
As Escrituras não se perdem em especulações. Isso por dois motivos óbvios: Deus como senhor de todo o conhecimento e verdade, de nada carece saber. Todo o saber lhe pertence; nada lhe é derivado.[1] O segundo motivo é que Ele não deseja que o seu povo se embrenhe em especulações ociosas de assuntos não revelados, que são de sua exclusiva autoridade. Além disso, com certeza, o que temos nas Escrituras, é muito mais do que podemos investigar durante a nossa vida e, também, considerando as limitações de nossa mente.[2]
Nulidade das especulações
Guiar-se por especulações, cedendo à fútil tentação[3] de nos orientar por nossas peregrinações intelectuais (devaneios), significa desejar ir além do que Deus revelou e, ao mesmo tempo, perder-se em hipóteses e teorias frívolas já que pretendem “decifrar” o que Deus sábia e soberanamente não nos quis dar a conhecer.[4] “Nossas especulações não podem servir de medida para nosso Deus”, acentua corretamente Packer (1926-2020).[5]
A imaturidade, por vezes, se manifesta por via inversa, justamente por levantar “grandes” questões que presumem grande inteligência mas, que à luz da Bíblia são irrespondíveis e, certamente irrelevantes em nossa peregrinação. Maturidade cristã se revela em santificação do Espírito e obediência a Deus, conformando-se a Cristo dentro do revelado (1Pe 1.1-2,12-14,22/Rm 8.29/Hb 5.8).
Calvino (1509-1564) é instrutivo aqui:
Chamo serviço não somente o que consiste na obediência à Palavra de Deus, mas também aquele pelo qual o entendimento do homem, despojado dos seus próprios sentimentos, converte-se inteiramente e se sujeita ao Espírito de Deus. Essa transformação, que o apóstolo Paulo chama renovação da mente [Rm 12.2], tem sido ignorada por todos os filósofos, apesar de constituir o primeiro ponto de acesso à vida. Eles ensinam que somente a razão deve reger e dirigir o homem, e pensam que só a ela devemos ouvir e seguir; com isso, atribuem unicamente à razão o governo da vida. Por outro lado, a filosofia cristã pretende que a razão ceda e se afaste, para dar lugar ao Espírito Santo, e que por Ele seja subjugada e conduzida, de modo que já não seja o homem que viva, mas que, tendo sofrido com Cristo, nele Cristo viva e reine.[6]
A praticidade das Escrituras
A Bíblia é um livro descritivo, prescritivo e extremamente prático. Ela não discute, por exemplo, sobre a existência de Deus ou faz abstrações de sua natureza e essência, antes, parte do pressuposto da existência do Deus Todo-Poderoso que se revela, criando com determinação, sabedoria e poder todas as coisas. Portanto, mais do que uma teoria ou imaginação falaciosa, as Escrituras nos põem em contato com o Deus vivo e pessoal, que age e fala.[7] É o Deus que se relaciona e cuida de seu povo.
A história do povo de Israel é de certa forma a narrativa da revelação concreta de Deus na história: no tempo e no espaço, conduzindo o seu povo em graça, bondade, misericórdia e justiça. “A Escritura, em sua totalidade, é o próprio livro da providência de Deus”, resume Bavinck (1854-1921).[8]
O nosso Deus, transcende ao tempo e, ao mesmo tempo, age poderosamente no tempo. O tempo não o exaure nem o exclui.[9] Ele é o Senhor do tempo e do eterno. De fato, o Senhor é o nosso Pastor aqui, agora e para sempre.[10]
A história do Ocidente tem sido regida pela presença cristã, ora em suas acomodações pecaminosas, ora, positivamente em seu testemunho profético contextualizado.[11] A história do mundo é, de certa forma, a história da igreja em seus avanços e retrocessos; em sua voz profética, omissão covarde e secularização. A igreja está no mundo quer de forma transformadora, quer em suas acomodações pecaminosas mas, nunca fora do mundo.
A importância da história no processo revelacional
Schaeffer (1912-1984), argumentando em prol da genuinidade da revelação de Deus em forma de proposição e história, escreve:
Deus inseriu a revelação da Bíblia na História; Ele não a forneceu (como poderia ter feito) em forma de livro-texto teológico. Localizando a revelação na História, que sentido teria para Deus ter-nos fornecido uma revelação cuja história fosse falsa? Também o homem foi inserido neste universo que, como as Escrituras mesmo dizem, fala de Deus. Que sentido, então, teria para Deus ter nos oferecido a sua revelação em um livro cheio de falsidades acerca do universo? A resposta para ambas as questões deve ser “nada disso faria qualquer sentido!”
Está claro, portanto, que, do ponto de vista das Escrituras em si, podemos observar uma unidade por todo o campo do conhecimento. Deus falou, numa forma linguística e proposicional, verdades sobre si mesmo e verdades sobre o homem, a sua história e o universo.[12]
Assim sendo, podemos e devemos confiar inteiramente em sua Palavra. O Deus fiel se revela com verdade e autenticidade. A sua Palavra por ser a verdade (Jo 17.17), corresponde ao que Ele quer que saibamos e obedeçamos. Portanto, tentar ir além do revelado é cair em um labirinto resultante de uma mente especulativa e pecaminosa.
Confiar na Palavra de Deus e na sua revelação histórica nos permite navegar pelos tempos de incerteza e mudança com esperança e certeza. Sabemos que o propósito divino não está limitado aos acontecimentos presentes; ele transcende todas as eras e se cumpre na eternidade.
No reconhecimento da providência divina na história, somos inspirados a viver de maneira que cada ação reflita a glória de Deus e sua vontade para o mundo. A história nos ensina a confiar, a perseverar e a celebrar a fidelidade de Deus em todas as coisas, grandes e pequenas.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] “A verdade das criaturas, por exemplo, seria sem sentido sem a verdade de Deus, mas a verdade de Deus não depende do mundo que ele criou. Ele conhece todas as coisas por si mesmo, conhecendo sua natureza e seu plano eterno, e cria a verdade sobre o mundo real por meio de suas obras de criação e providência. Nosso conhecimento depende do dele (Sl 36.9), mas o dele não depende de nada, a não ser dele mesmo” (John M. Frame, A Doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 455).
[2] “Devemos ficar satisfeitos com este oráculo celestial, sabendo que ele diz muito mais do que nossas mentes podem conceber” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.3), p. 34).
[3] “Sabemos sobejamente bem, pela própria experiência, como nossa natureza nos impele para a curiosidade fútil” (João Calvino, Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.11), p. 96). “O que aprouve a Deus nos revelar nós sabemos; o que sua Palavra revela apenas por meio de indícios, nós somente podemos saber em linhas gerais; e o que é afirmado fora da Palavra é apenas o esforço de uma espírito intruso ou de curiosidade vã” (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 116).
[4] “Se, pois, um dia pretendermos adentrar os eternos conselhos de Deus, pela instrumentalidade de um discurso, que o façamos moderando nossa linguagem e mesmo nossa maneira de pensar, de modo que nossa argumentação seja sóbria e respeite os limites da Palavra de Deus, e cuja conclusão seja repassada e saturada daquela expressão de assombro. Indubitavelmente, não devemos nos sentir constrangidos caso nossa sabedoria não exceda a daquele que uma vez foi arrebatado até ao terceiro céu, donde ouviu e contemplou mistérios que aos homens não lhe fora possível relatar [2Co 12.4]. Todavia, ele não encontrou nenhuma outra saída, aqui, senão humilhar-se como o fez” (João Calvino, Romanos, 2. ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426).
[5]J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20.
[6]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 184 (Veja-se a nota 5 in loco). Hodge (1797-1878) faz eco a essa compreensão: “O cristão cônscio de sua imbecilidade como criatura, e de sua ignorância e cegueira como pecador, coloca-se diante de Deus, na postura de uma criança, e aceita como verdadeiro tudo o que um Deus de infinita inteligência e bondade declara ser digno de confiança. E ao assim submeter-se a ser instruído, ele age com base nos mais elevados princípios da razão” (Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 41).
[7] Veja-se: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 175.
[8]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 607. “Deus nunca está ocioso. Ele nunca está passivamente presente, como mero espectador” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, v. 2, p. 617).“De acordo com a Escritura e a confissão da igreja, a providência é o ato de Deus pelo qual, de momento a momento, ele governa e preserva todas as coisas” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, v. 2, p. 608).
[9] Veja-se uma boa e esclarecedora discussão a respeito da presença de Deus no tempo em: John Frame, Não há outro Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 109-120.
[10] Veja-se uma bom a esclarecedora discussão a respeito da presença de Deus no tempo em: John Frame, Não há outro Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 109-120.
[11]A obra de Stark sem sustentar esta tese, a ilustra: Rodney Stark, A vitória da razão: como o cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre econômico do Ocidente, Lisboa: Tribuna da História, 2007.
[12] Francis A. Schaeffer, O Deus que intervém, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 146.
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