Pregar o catecismo

Por N. H. Gootjes

 

Pregar sobre o Catecismo tem uma longa história.[1] Esse tipo particular de pregação é muito mais antigo do que a Reforma e ele foi muito freqüente nas igrejas da Reforma. Porém num certo momento depois da Reforma, as Igrejas Reformadas escolheram por caminhos diferentes. Nas Igrejas Reformadas continentais, a pregação do Catecismo é uma realidade viva. É prescrito nas suas constituições. Já as igrejas que têm a sua origem na Reforma na Grã-Bretanha não conhecem esse tipo de pregação. Isso faz surgir a pergunta se a pregação sobre o Catecismo pode justificar a sua existência diante da Escritura. Várias objeções contra ela são usadas. Quero tratar sobre três objeções importantes e terminar com uma observação mais geral.

 

É possível pregar sobre um texto humano?

A objeção mais importante tem a ver com o fato de Catecismos serem documentos humanos. Isso não significa que pregar sobre o Catecismo é pregar a partir de um texto humano? Pregar sobre uma seção do Catecismo não é uma contradição? Porque todos nós concordamos que pregar é ministrar a Palavra de Deus.

Dr. Martyn Lloyd-Jones formulou essa objeção de uma maneira sincera e inofensiva:

“A função de um Catecismo, conforme o meu pensamento, basicamente, não é providenciar material para pregar: é salvaguardar o corretismo da pregação, é salvaguardar as interpretações das pessoas ao ler as suas Bíblias. Uma vez que essa é a função principal de Credos e Catecismos, é certamente errado pregar constantemente, ano após ano, sobre o Catecismo em vez de pregar a Palavra diretamente a partir da própria Escritura, com a Escritura sempre aberta e com as mentes das pessoas direcionadas para ela em vez de serem direcionadas para a compreensão humana”.[2]

A crítica é baseada na convicção que pregar é pregar a Palavra de Deus. Essa convicção faz Lloyd-Jones rejeitar a pregação do Catecismo. Esse tipo de pregação seria pregar sobre o que o ser humano compreende daquela Palavra, em vez de pregar sobre um texto daquela Palavra.

É interessante que aqueles que defendem a pregação sobre o Catecismo têm exatamente o mesmo ponto de partida sem concluir que pregar sobre o Catecismo é impossível. Dr. T. Hoekstra, que escreveu uma obra de referência sobre homilética, define pregar como explicar e aplicar a Palavra de Deus revelada na Escritura Santa.[3] Porém, Hoekstra não acha que pregar sobre o Catecismo é impróprio. No seu livro sobre a pregação ele escreve no capítulo dedicado à pregação sobre o Catecismo:

“Na pregação sobre catecismo o Senhor vem para o seu povo e desvenda os mistérios da sua aliança de graça para a sua congregação. Portanto pregar sobre o Catecismo é ministrar a Palavra. Ou seja, não é pregar o Catecismo mas pregar a Palavra”[4].

Aqueles que defendem a pregação sobre o Catecismo mantém a opinião que também nesses sermões a Palavra de Deus é pregada.

Basicamente usando a mesma definição de pregar, esses teólogos chegam a uma conclusão radicalmente diferente concernente à justificação bíblica da pregação sobre o Catecismo. Por isso não podemos facilmente decidir o assunto todo com base numa definição. Devemos cavar mais profundo e perguntar: qual o caráter de um Credo ou Confissão? Qual a sua relação com a Escritura?

 

O caráter de uma confissão

Queremos começar a responder essa questão olhando para um dos Credos: o Credo Apostólico. Esse Credo não foi integralmente tirado da Escritura. Não há nenhum trecho no Antigo Testamento nem no Novo Testamento onde encontramos esse Credo por extenso. Porém, isso não faz que esse Credo seja não-bíblico. O seu conteúdo é tirado da Escritura. Revelações, dadas em diversos lugares da Escritura, são colecionadas e juntadas de uma maneira organizada. A estrutura do Credo Apostólico é trinitária, baseada na Grande Comissão de Mateus 28.19. E o seu conteúdo da revelação de Deus é resumido como o Deus trinitário e a sua obra. O Credo Apostólico representa a doutrina da Escritura, um resumo sistemático da verdade bíblica.

A mesma coisa podemos dizer sobre as Confissões do período da Reforma, que foram feitas mais tarde e que são mais extensas. Também estas dão um resumo do conteúdo bíblico. Um exemplo: na luta do século XVI foi importante definir a base da nossa fé em Deus. Muitas Confissões Reformadas organizaram e resumiram a revelação bíblica sobre a fé. O resumo em si não pode ser encontrado na Escritura, mas estas Confissões traçam linhas da Escritura nas suas formulações e elas provam a sua doutrina com citações bíblicas acrescentadas aos artigos.

A pergunta, que devemos responder com relação à pregação do Catecismo é: qual é o caráter desta doutrina, desse resumo apresentado no Catecismo? Não há dúvida de que a doutrina é formulada por seres humanos. Mas o que dizer sobre a própria doutrina? A doutrina está presente na Escritura ou ela é feita por seres humanos?

Um teólogo reformado como Charles Hodge vê as doutrinas como produtos humanos. A Escritura contém fatos isolados. Aqueles fatos não podem ser juntados a esmo. As relações entre eles estão nos fatos. Nós devemos fazer as conexões. Porém, isto não significa que a doutrina é de valor inferior. De fato, segundo Hodge, a doutrina está num nível mais elevado que a Escritura:

É obtido, então, um tipo de conhecimento muito mais elevado, do que na mera acumulação de fatos isolados. Não podemos saber o que Deus revelou na Sua Palavra, a menos que entendamos, pelo menos até um certo ponto, a relação entre as verdades separadas. A Igreja precisou de séculos de estudo e controvérsia para resolver o problema concernente à Pessoa de Cristo; isto é, para ajustar e harmonizar todos os fatos que a Bíblia ensina a respeito desse assunto.[5]

Uma opinião parecida tem A. Kuyper, ao descrever a teologia como a ciência que tem como objeto da sua pesquisa o conhecimento revelado de Deus, a fim de fazê-lo entendido.[6] Kuyper, que nunca ficou sem palavras, porque se interessava por paralelismos, comparou o conhecimento revelado de Deus com minério, que devia ser derretido para tornar-se ouro brilhante, ou com cereais que devem ser transformados em pão antes de poderem ser comidos.[7]

Os dois, Hodge e Kuyper, falaram sobre teologia ao invés de falarem sobre os Credos. Porém, a visão deles têm implicações para os Credos. Se ela for verdade, o Catecismo, resumindo a doutrina da Escritura, seria um “tipo mais elevado de conhecimento”, mas este conhecimento vai além da revelação na Escritura. Porque a Escritura dá apenas fatos.

É nesse ponto que devemos discordar desses teólogos.[8] A Bíblia não revela apenas fatos. Ela não dá cereais que devem ser transformados em pão, que pode ser comido. A própria Bíblia fornece compreensão no sentido dos fatos. As relações entre as verdades da Escritura são indicadas na mesma Escritura. Usando a expressão de Hodge: o “conhecimento mais elevado” está presente na Palavra de Deus. Ou usando o exemplo de Kuyper: a Palavra de Deus na Escritura é o pão da vida.

Quero dar alguns exemplos em conexão com o Credo Apostólico:

  • Mateus 28.19,20 liga a Trindade com o batismo e com a obrigação para guardar os mandamentos de Cristo.
  • Efésios 1.3-14 fala sobre as muitas maneiras em que a Trindade está envolvida com a nossa salvação.
  • Gênesis 17.1 mostra que a onipotência de Deus não é apenas um fato, mas que é de importância tremenda na vida de Abraão (e de cada crente). Tudo o que Abraão deve fazer é andar na presença de Deus e ser perfeito, porque Deus tem o poder de tomar conta da vida de Abraão.
  • Gênesis 1 fala sobre a obra de criação de Deus, e como Deus determinou o lugar do ser humano na criação (1.26).

Ou dando exemplos concernentes à doutrina da Escritura:

  • 2 Timóteo 3.16 liga a inspiração da Escritura com a importância do Antigo Testamento para ensinar, repreender etc. Também o objetivo é indicado: a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.
  • 2 Pedro 1.20s mostra que a origem divina da Escritura é importante para a interpretação dela.
  • Salmo 19.7 não apenas menciona o fato de a lei do Senhor ser perfeita, mas declara também a razão pela qual a lei foi dada: ela restaura a alma.

Assim podemos continuar, mas agora fica claro que a Escritura não é uma coleção de idéias soltas, que nós ainda devemos juntar. As conexões entre as doutrinas são dadas na Escritura. A igreja fez apenas duas coisas ao fazer os Credos. Primeiro, ela juntou revelações espalhadas pela Escritura. E segundo, muitas vezes ela expressou essas verdades nas suas próprias palavras.

Mas ela não construiu a doutrina. Pelo contrário, ela leu a doutrina como ela está presente na Escritura. Os Credos e as Confissões juntam e formulam as doutrinas, que estão presentes na própria Escritura. A doutrina não é um conhecimento mais elevado da revelação (Hodge) ou o produto final do que é dado na Escritura de uma forma rude (Kuyper), mas ela é a estrutura latente da revelação múltipla de Deus.

Nesse ponto devemos decidir se pregar o Catecismo é possível em princípio. Se um catecismo é um sistema humano de elementos amorfos na Escritura, pregar o Cristianismo não é possível. Porém, o Catecismo formula a doutrina presente na Escritura. Por isso é possível pregar sobre o Catecismo. A redação do Catecismo não é infalível. Mas as verdades expressadas são as verdades da Escritura, não da teologia. Pregar o Catecismo é pregar a Palavra de Deus.

 

A vantagem de pregar o Catecismo

De fato pregar o Catecismo é um método bom para justificar o que o apóstolo Paulo chama: todo o desígnio de Deus. Quando ele se despediu dos presbíteros de Éfeso, ele disse que “jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus”. (Atos 20.27). Esse desígnio ou plano pode ser identificado com o que Paulo chama no mesmo discurso de o evangelho da graça de Deus (v. 24) e a pregação do reino (v. 25). Porque é chamado de “desígnio” ou “plano” fica provado que a obra salvadora de Deus (v. 24) e a pregação do reino (v. 25). Porque é chamado de “desígnio” ou “plano” fica provado que a obra salvadora de Deus não é uma improvisação, mas é de acordo com a sua vontade divina. Paulo enfatiza neste contexto particularmente a palavra “todo”: ele anunciou todo o desígnio de Deus. Ele não negligenciou nenhuma parte da obra salvadora de Deus nas suas pregações. Por isso Paulo não pode ser culpado, quando um ouvinte é condenado e punido por Deus, pois ele não deu uma versão reduzida do evangelho.

Essa expressão de Paulo ao meu ver, é usada corretamente como uma regra para a pregação. Nenhuma parte de todo o plano de Deus para salvar pecadores pode ser negligenciada quando pregamos. Porém, é muito fácil negligenciar alguma parte de todo o plano de Deus. Quando o pastor escolhe textos, pode esquecer facilmente elementos do plano de Deus. Quando ele tem a necessidade da congregação na mente, pode escolher textos com a suposição que a congregação precisa deles e, novamente, esquece uma parte do plano de Deus. O Catecismo, concentrado na estrutura doutrinária da revelação de Deus, contém um levantamento do conteúdo da Escritura. Assim o catecismo ajuda a Igreja a compreender o conteúdo central da revelação de Deus. Assim como a contínua pregação de texto faz com que a pregação do Catecismo continue nova, a contínua pregação do Catecismo beneficia uma pregação completa sobre textos.

 

NOTAS:

[1] Para a história da pregação do Catecismo, vejam o meu artigo in Proceedings of the International Conference of Reformed Churches, September 1-9, 1993, Zwolle, The Netherlands (Netherlands: Iheritance Publications, 1993), 136-152.

[2] Preaching and Preachers, Grand Rapids: Zondervan, 1972, p. 187s.

[3] Gereformeerde Homiletick. Wageningen: Zomer & Keuning, p. 157. Veja também na p. 168: “a administração da Palavra na congregação dos crentes é a explicação e a aplicação da Palavra de Deus”.

[4] Op. cit., p. 157. Veja também C. Trimp, De Preek: Een Praktisch Verhaal Over het Maken en Houden van Preken. Kampen: Van den Berg, 3ª ed., 1986. p. 9.

[5] Systematic Theology. London e Edinburgh. Thomas Nelson and Sons, vol.1, 1883, p. 1-17. Hodge fala aqui sobre a tarefa da teologia (sistemática), mas referindo-se à Cristologia parece que ele vê os Credos no mesmo (alto) nível.

[6] Principles of Sacred Theology. Grand Rapids Baker, 1980, p. 299.

[7] Idem, p. 296, 597. Veja também p. 567 e 570.

[8] Hodge foi criticado em J. M. Frame, The Doctrine of the Knowledge of God (Grand Rapids Baker, 1987, p. 77ss). Eu concordo particularmente com a crítica de Frame, que os fatos na Escritura não são fatos sem interpretação. Pelo contrário, a Bíblia descreve e interpreta os seus próprios fatos. A. Kuyper foi criticado em J. Douma, Orientatie in de Theologie (Barneveld: Vuurbaak, 2ª ed., 1987, p. 19).

 

O autor, Dr. N. H. Gootjes, nasceu na Holanda, em 1948. Recebeu a sua formação teológica na Universidade Teológica das Igrejas Reformadas (libertadas), em Kampen. Em 1976, obteve o mestrado e foi ordenado como pastor da Igreja Reformada. Depois de servir três anos, lecionou no Seminário Teológico Coreano, em Pusan. Doutorou-se em 1985 e foi convidado a ser professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico em Hamilton, Canadá. O artigo, originalmente publicado na Revista Teológica (Campinas: Seminário Presbiteriano do Sul [Ano LVI, N.º 42, Ago. 1995], pp. 77-82), foi traduzido por Theodoro Havinga, pastor holandês, que trabalha desde 1987 na Igreja Reformada em Curitiba.

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