Nomes para a santificação na Escritura Sagrada

Por Ewerton B. Tokashiki

 

NOMES APRESENTADOS DE UMA FORMA NEGATIVA

Despojamento do velho homem (Ef 4:22)

“… no sentido de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano.”

O apóstolo Paulo adverte da instabilidade que viviam os cristãos da igreja de Éfeso. A sua conduta não deveria retroceder ao seu antigo estilo de vida sem Cristo.  A santificação é um processo contínuo e pecados como furto, mentira, o modo torpe de falar e a mágoa, deveriam ser abandonados. É neste sentido que João Calvino adverte que “aquele cuja vida não faz diferença alguma da vida dos incrédulos, na verdade nada aprendeu de Cristo; pois este conhecimento não pode ser dissociado da mortificação da carne”.[1] Eles deveriam rejeitar pensamentos pecaminosos, que obscureciam o entendimento e produziam dureza de coração. George Stoeckhardt explica que

o velho homem, como temos afirmado no comentário de Rm 6:6, é o corrupto e pecaminoso ego, que herdamos de Adão, algo inato, a moral maliciosa do habitus, a disposição e caráter depravado. O velho homem é a totalidade de todas as possíveis imoralidades e vícios humanos, que em sua união e interação constitui uma completa entidade humana, um homem considerado como um responsável ser ético. Este velho homem, este agente ético, é o characteristicum de todo ser humano nascido neste mundo. O homem como ele é no presente constituído pelo nascimento não é somente em parte, ou apenas em um aspecto defeituoso ou pecaminoso, ele é totalmente depravado e corrupto, em todos os seus pensamentos, ambições, anseios, esforços, desejos são contra Deus, direcionados para as vaidades deste mundo.[2]

A nossa antiga disposição pecaminosa, aqui chamada de velho homem, não pode ser fortalecida. Desconsiderar o perigo dos vícios e da sedução do pecado é um erro gravíssimo que trará vergonha e sofrimento.

Eles foram suficientemente ensinados na verdade. A instrução no contexto antecedente era de que os cristãos de Éfeso não deveriam viver de modo inconstante, dominados pela vaidade de seus próprios pensamentos (4:17), obscurecidos de entendimento, alienados da vida de Deus (4:18), insensíveis pelo pecado, ou comprometidos com impurezas sexuais (4:19), porque antes de sua conversão era assim que eles eram (2:1-3). Eberhard Hahn relaciona o assunto afirmando que

em Rm 13.12 Paulo fala de “despir-se das obras das trevas”, que são listadas em Cl 3.8: ira, rancor, maldade, maledicência, palavras obscenas. O afastamento resoluto desse tipo de atitude é possível porque uma transformação fundamental ocorreu antes: “porque vos despistes do velho ser humano com seus feitos” (Cl 3.9).[3]

A inconstância espiritual não deve uma característica dos cristãos. Eles não devem voltar às práticas do período anterior à sua conversão, não concordar com pensamentos ímpios, nem se associarem as abomináveis práticas pagãs dos gentios que viviam dominados pela escravidão do pecado e influência de demônios.

 

Despojamento do corpo da carne (Cl 2:11)

“Nele, também fostes circuncidados, não por intermédio de mãos, mas no despojamento do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo.”

Deus corta as amarras da escravidão do pecado. O termo fostes circuncidados nos noticia o benefício da obra expiatória de Cristo. Eles não eram mais estranhos a aliança, de modo que sabiam do que Paulo falava. Os cristãos de Colossos estavam posicionalmente nele, isto é, em Cristo, porque “estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os vossos delitos” (2:13). O perdão obtido por meio de Cristo lança fora o pecado.

A expressão não por intermédio de mãos revela a unilateralidade da salvação realizada. É Deus quem estabeleceu e realizou a aliança da graça. As normas da aliança não foram legisladas pela parte beneficiária. Não foram eles que buscaram propor uma relação pactual para a comunhão com o santo Deus. Deus na antiga aliança delineou as exigências, promessas, a punição, os beneficiários e etc., assim, a circuncisão como sinal da antiga aliança, que se estende até Cristo, era realizada por mãos humanas e de modo simbólico, mas na nova aliança, em Cristo há a realidade da manifesta graça.

Deus realizou esta aliança em Cristo a nosso favor. F.F. Bruce observa que a expressão no despojamento do corpo da carne refere-se à “morte de Cristo, a expressão é legivelmente inteligível, especialmente à luz da menção anterior ‘do corpo de sua carne’ em conexão com a sua morte em 1:22.” Assim, os benefícios que Cristo obteve para os membros desta aliança foi de “apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis”. A linguagem usada por Paulo aponta para um aspecto de continuidade entre a antiga e nova aliança. Temos somente um Mediador e somos a comunidade da aliança que deve viver a santidade, sem acusações e sem motivo de vergonha.

A circuncisão de Cristo aponta para obra do Redentor a favor de seu povo. Ele nos escolheu, satisfez as exigências da lei, sofreu a nossa condenação, fazendo-se o nosso mediador e redentor. Como beneficiários da aliança, morremos na morte do testador, e com ele ressuscitamos, estamos com ele no céu, e dele recebemos os benefícios de sua intercessão. É por isso que ele pode nos apresentar perfeitos, mesmo enquanto vivemos imperfeitos no presente tempo.

 

Morte da natureza terrena (Cl 3:5)

“Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria.”

O apóstolo ordena que os cristãos de Colossos mortificassem a sua insatisfação quanto ao prazer. Os seus prazeres quando desorientados tornam-se pecaminosos e causam escândalos. O prazer pode induzir ao vício e tornar-se num ídolo. É esta a denúncia que encontramos contra os cristãos colossenses.

Deus em sua bondade nos dá recursos que nos ajudam a obedecê-lo. Ele poderia apenas ordenar, e seria nosso dever cumprir. Mas o Senhor em sua bondade nos concede motivos adicionais além do dever, Ele nos dá o prazer de obedecer. Os dois instrumentos de prazer mencionados por Paulo é o sexo e as riquezas. Entretanto, os pecados citados distorcem estes instrumentos. Tanto o sexo como as riquezas não são maus em si, pelo contrário, Deus os criou para satisfazer as nossas reais necessidades e serem meios de conduzir-nos a glorifica-lo.

Não devemos negar os nossos desejos sexuais legítimos. O sexo não é em si pecaminoso. Ele foi criado por Deus para ser usufruído dentro do casamento e promover a comunhão, a satisfação e prover uma descendência legítima. O problema é o desvio, o uso indevido e fora do casamento, desequilibrado, distorcido e ofensivo destes anseios sexuais. Quando o sexo é uma fonte dominante de prazer pecamos por idolatria porque ele se torna uma fonte imunda de prazer que nos faz desviar do propósito original que Deus estabeleceu para o seu uso.

Devemos mortificar os desejos lascivos para que a satisfação seja saudável. Por amor de Cristo devemos odiar a idolatria do prazer. A mortificação começa pelo discernimento do modo como o pecado está corrompendo o sexo e as riquezas, e deve produzir um desprezo pelas motivações distorcidas, e premeditar e reeducar-nos em nossa obediência ao Senhor Deus.

Deus quer vivamos o prazer com domínio próprio evitando e vencendo as constantes tentações. Devemos reeducar o nosso entendimento do sexo na vida cristã para que haja um correto usufruir desta dádiva de Deus aos casais. Quanto mais satisfeitos no sexo e nas riquezas, no seu santo uso e propósito, de modo que sejamos motivados a obedecer ao Senhor, nisto Deus será mais glorificado!

 

Crucificação da carne (Gl 5:24)

“E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências.”

A primeira declaração de Paulo tem a intenção de provocar a distinção dos verdadeiros e dos falsos cristãos nas igrejas daquela região. Ele diz os que são de Cristo Jesus pressupondo que estes reconhecem o puro evangelho, pelo testemunho do Espírito como filhos e discernindo o poder do evangelho na suficiência de Cristo. Eles discernem a falsa liberdade resultante do legalismo dos judaizantes, que negava a graça de Deus. Os cristãos da Galácia conheceram o amor de Cristo, e entenderam o quão destrutivo e odioso é o pecado. Pela união com Cristo eles romperam com a escravidão do pecado. William Hendriksen conclui que

eles sejam o que de fato são. Que sejam na prática o que são em princípio, uma vez que em princípio já crucificaram sua velha natureza, juntamente com seus anseios pecaminosos, sejam eles considerados de forma mais passiva como paixões (provavelmente os impulsos pecaminosos que agiam em seu subconsciente) ou de forma ativa como desejos (os anseios malignos que eles conscientemente apoiam e animam).[4]

O legalismo não tem eficácia contra os impulsos pecaminosos. Por isso, eles deveriam se identificar com Cristo, e nele crucificados, pois somente a expiação pode cancelar o poder do pecado. Odiar o pecado que os escravizava e que levou à crucificação o Redentor. Por isso, Johannes Wigard comenta que

assim, como aqueles que foram amarrados e pregados, forçados a ficarem dependurados e não terem liberdade de usar seus membros, do mesmo modo a depravação da carne também precisa ser pregada, capturada e forçada, pois essa é a chave para resolver o problema do pecado. Portanto, crucificar a carne significa amarrá-la pelo Espírito Santo, impedindo-a de nos levar a pecados ímpios.[5]

Por este motivo, os cristãos da Galácia deveriam entender que o seu pecado não era normativo e sim acidental. O pecado não era mais uma norma de suas vidas, porque ele foi crucificado, isto é, condenado e expiado em Cristo. Noutro lugar Paulo declara que “porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente, o seremos também na semelhança da sua ressurreição, sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos” (Rm 6:5-6).

 

Abstenção das paixões carnais (1 Pe 2:11)

“Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões carnais, que fazem guerra contra a alma”.

A peregrinação indica que não podemos nos apegar as coisas deste mundo. Os destinatários da epístola eram de fato, peregrinos e forasteiros, mas a instrução de Pedro se refere ao seu caráter espiritual. O apóstolo descreveu estes cristãos estrangeiros como “vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pe 2:9). Os estrangeiros não têm costumes dos nativos. Simon Kistemaker nota que

eles não têm os mesmos privilégios e direitos que os cidadãos do país onde moram (Gn 23:4; Sl 39:12; Hb 11:9, 13; 1 Pe 1:17). São ‘forasteiros’ em um mundo que lhes é estranho; vivem na terra apenas por um breve período; sabem que sua cidadania está no céu (Fp 3:20).[6]

É usando esta metáfora que Pedro recorda que a nossa pátria não é este mundo caído no pecado. Uwe Holmer interpreta que eles deveriam cuidar da “sua própria vida espiritual esteja ordenada, que vocês não sejam governados pelos desejos. Preconceitos tolos ou malévolos do contexto gentílico poderão ser superados da forma mais eficaz por meio de uma boa conduta.”[7] A conduta pecaminosa que modelava a cultura pagã não deveria ser imitada pelos peregrinos cristãos.

A Escritura exorta-nos a abstenção das paixões carnais. O apóstolo não recomenda um isolacionismo cultural, nem separatismo das pessoas. Ao invés disto, ele os instrui que se abstenham dos “desejos pecaminosos” da cultura pagã e de pessoas que vivam desordenadamente. Os cristãos não estavam em guerra com os povos que os recebiam, mas sim, com a sua própria pecaminosidade. O paganismo apenas tornava propício o contexto da tentação.

Há uma inimizade declarada com a nossa alma que deve ser vencida. Eles não são apenas forasteiros, mas soldados em guerra. Pedro revela que as paixões carnais fazem guerra contra a alma. Ele não se refere a um conflitante dualismo do corpo e alma. A expressão paixões da carne significa “os apetites desordenados relacionados com o corpo”.[8] Assim, neste texto as palavras carne e alma podem ser entendidas como representando a velha e a nova disposição do cristão, ou seja, as duas inclinações interiores que lutam por se impor dentro da pessoa. Paulo similarmente declara aos gálatas que “a carne milita contra o espírito” (Gl 5:17). Os cristãos são combatentes que peregrinam enquanto são conduzidos para a sua pátria eterna.

 

NOMES APRESENTADOS DE UMA FORMA POSITIVA

Revestimento do novo homem (Ef 4:24; Cl 3:10)

“… e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade.”

Lemos no início da epístola que os cristãos de Éfeso se tornaram conhecedores do evangelho da salvação e foram selados com o Espírito da promessa (1:13). A oração de Paulo era que eles recebessem a iluminação dos olhos do coração, dilatando a percepção da sua posição em Cristo (1:18-23), e se tornassem sabedores que todas as coisas estão debaixo de seus pés, tendo Cristo enchido tudo e todos (1:20-23). Podemos concordar com Thomas R. Schreiner quando afirma que “o ‘novo homem’ é Cristo (Ef 2:15, cf. Cl 3:11), e tanto gentios como judeus formam um corpo em Cristo. Em Ef 4:24 Paulo convoca aos crentes para que se tornem o que eles são em Cristo, enfatizando a graciosa e redentora obra de Deus.”[9] A instrução de Paulo aos seus leitores não era para que se convertessem, porque elas eram pessoas transformadas pelo evangelho. Ele esperava que estes cristãos continuassem se santificando a partir do revestimento recebido. O apóstolo ordena que eles buscassem uma contínua manutenção da justiça e retidão procedentes da verdade em suas vidas que foi iniciada na conversão.

O revestimento do novo homem não era um evento espiritual a parte da conversão. Nem era o ensino de que deveriam esperar por outra experiência superior e instantânea, que viesse posterior à conversão. Heinrich Bullinger comenta que “aqueles que têm uma vida santa foram renovados pelo Espírito e se revestiram do novo homem, ou Cristo, o Senhor, e restauraram a imagem de Deus ao que era quanto foram criados. Somos recriados em Cristo para que possamos viver diante dele como pessoas santas e justas.”[10] O revestir do novo homem é um processo de restaurar a imagem de Deus. Este revestimento ocorre através da santificação enquanto somos conformados à imagem de Cristo. É por isso que Eberhard Hahn interpreta que

quando recebemos a Cristo pela fé, revestimo-nos do novo ser humano; porque “Cristo foi feito, da parte de Deus, para nós… santificação e redenção” (1Co 1.30). Toda expressão visível dessa santificação, toda boa obra foi preparada previamente para nós por Deus (Ef 2.10). Apesar disso o “novo ser humano” é ao mesmo tempo alguém com características individuais e inconfundíveis, pois cada cristão é convidado pelo mandamento de Deus a obedecer-lhe de forma bem pessoal. […] O “novo ser humano” foi “criado segundo Deus, em verdadeira justiça e retidão”. Cl 3.10 explica: o novo ser humano é renovado “para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou”. A imagem de Deus, porém, é Cristo, que o crente (diferentemente do israelita na velha aliança: Êx 33.20) é capaz de contemplar; mais que isso: em direção da qual ele é até mesmo transformado (2 Co 3.18; Rm 8.29).[11]

Notemos que na expressão “novo homem” há um contraste com a anterior “velho homem”. A ideia não é revestir o novo sobre o velho homem, mas sim de despir do velho, referindo-se ao pecado, para que sejamos cobertos pela santidade de Cristo. Wolfgang Musculus observa que Paulo

compara a aparência externa de nossa vida com uma roupa que, bem ou mal, cobre nosso corpo e na qual vivemos e nos movemos aos olhos das pessoas. […] O cheiro das nossas roupas é bom, mas perto delas há o fedor pútrido da nossa vida, que dificilmente é compatível com nossas alegações de que somos cristãos.[12]

Não se deve preservar a velha veste sob a nova para que não apodreça o novo. Se o novo homem refere-se a imagem de Cristo que está se formando nos salvos, então, manter a velha veste seria o mesmo que continuar com o fedor e a imundícia do pecado tendo sobre si a identidade de cristão. Este novo homem “é o oposto exato do velho homem; de fato, ele é o novo ego moral, o habitus moral nascido na regeneração, a mente em harmonia com a vontade de Deus.”[13]

A imagem de Cristo vem pelo evangelho que é fértil em produzir uma conduta justa. Charles Hodge explica que “verdade é conhecimento espiritual, aquele conhecimento que é a vida eterna, que não somente ilumina o entendimento, mas santifica o coração.”[14] Hodge ainda comenta que

o Evangelho é chamado de palavra da verdade como a objetiva revelação da qual o conhecimento divino que é subjetivamente é o princípio da vida espiritual. Aceitando a palavra neste sentido, a passagem tem estreita coincidência com a passagem paralela de Cl 3:10. Aqui a imagem de Deus é descrita como consistindo na justiça e santidade da verdade; ali a imagem de Deus é descrita consistir em conhecimento. “O novo homem é renovado em conhecimento à sua imagem que o criou.” Estas passagens diferem apenas no fato de ser uma mais concisa do que a outra.[15]

F.F. Bruce afirma que este revestimento do novo homem é “a vida e poder de Cristo em que está constantemente renovado, como o Espírito de Deus reproduz mais e bmais da semelhança de Cristo na vida do crente.”[16]Somos novos homens, mas não completamente novos, pois, embora esta novidade de vida foi inaugurada, ela ainda não está consumada. Simultânea à justificação fomos espiritualmente adotados como filhos de Deus, mas “também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8:23). Assim, neste inaugurado, mas não consumado, continuamos sendo revestidos do novo homem enquanto somos santificados conforme à imagem de Cristo.

 

Renovação da mente (Rm 12:1-2)

“Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.”

O apóstolo inicia esta nova parte de sua epístola com um apelo apostólico. Ele diz “rogo-vos” o que certamente despertaria a atenção para algo de suma importância para os seus leitores. R.C. Sproul observa que “agora que mostrou a seus leitores o verdadeiro evangelho – a justificação, a santificação, as doutrinas da graça na eleição, a perseverança e o doce cuidado da providência de Deus – Paulo quer que seus leitores considerem as implicações e aplicações disso.”[17]Após expor Rm 1-11 tão longa seção de complexas doutrinas ele faz a transição nestes dois primeiros versículos para a aplicação prática na vida cristã. As misericórdias recebidas são o motivo para andarmos em novidade de vida e, são elas instrumentos da alegria da salvação na nossa vida.

A santa mudança ocorre pela misericórdia de Deus. Paulo sabe muito bem que todo querer e fazer começa e se desenvolve pela vontade de Deus.

O nosso comportamento deve ser uma oferta de adoração. A linguagem de sacrifícios, de que ele deveria ser “vivo, santo e agradável”, é uma metáfora do culto da antiga aliança, onde animais e aves eram como oferta de gratidão a Deus. F.J. Leenhardt esclarece que o assunto

trata-se, pois, não da condição, mas dos efeitos do sacrifício. A morte com Cristo abre o acesso a uma vida nova (8:13): o Espírito pervade a oferenda como outrora o fogo a consumia sobre o altar; dá-lhe vida nova e a santifica. Como o cheiro do holocausto é agradável a Deus (Êx 29:18; Lv 1:9, 13, etc.), assim, a oferenda do “corpo” vivificado e santificado pelo Espírito Santo.[18]

O valor que nos torna aceitáveis diante de Deus não é inerentemente nosso. Somente somos recebidos pelos méritos de Cristo e os benefícios aplicados pelo Espírito Santo. Assim, a nossa vida como adoração é oferecida pela intercessão interna do Espírito e pela mediação externa do Redentor que nos torna oferta agradável a Deus.

A santificação abrange toda a personalidade. Ela não é apenas um exercício espiritual. Paulo exorta que os cristãos deveriam “apresenteis o vosso corpo” e não apenas o seu espírito. John Murray observa que

a santificação deve trazer o corpo em seu âmbito. Havia a necessidade dessa forma de exortação, não apenas devido à depreciação do corpo, mas também devido ao fato de que a satisfação do pecado, intimamente associado ao corpo, era tão prevalecente e tendia a ser desprezada na avaliação dos requisitos éticos. É à luz dessa situação prática que a exortação do apóstolo deve ser apreciada. Paulo era realista e tinha consciência de que, se a santificação não envolvesse a parte física de nossa personalidade, seria anulada desde o princípio.[19]

A vida é uma adoração e toda a adoração se estende por toda a vida. A implicação disso é que todos os nossos atos devem ser examinados diante de Deus, porque é Ele quem os avalia como aceitáveis ou ofensivos. A Escritura diz “aborreço, desprezo as vossas ofertas e com as vossas assembleias solenes não tenho nenhum prazer” (Am 5:21). Assim, quando nos reunimos de modo solene para adorá-Lo no Dia do Senhor, se a nossa vida nos demais dias foram incoerentes com a Palavra de Deus, não será o culto solene que tornará aceitável a nossa vida, se o nosso coração não vive diariamente na Sua santa presença.

A vida em todas as esferas deve expressar uma inteligente adoração a Deus. A adoração como o ato mais importante do cumprimento do nosso propósito de “glorificar a Deus e gozá-Lo para sempre” estabelece inteligência em tudo o que fazemos. O pecado não somente nos separa, nos colocando sob a ira de Deus, como também nos afeta tornando-nos irracionais. O pecado é essencialmente sem sentido, nos insensibiliza e torna a nossa vida insensata. Viver a misericórdia é usufruir uma vida cheia de significado e do amor de Deus. O culto racional é uma vida dominada por uma cosmovisão bíblica, que é a mente de Cristo, que forja todas as nossas convicções e modela cada comportamento motivado pela glória de Deus (1 Co 10:31).

O inconformismo cristão rejeita o secularismo. A ideia de com este século refere-se a transitoriedade de uma estrutura pecaminosa. João menciona algo similar ao escrever que “o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente” (1 Jo 2:17). A rejeição do secularismo não é simplesmente uma questão de usos e costumes, isto seria um errôneo reducionismo da vontade de Deus para algo trivial. A ética cristã não pode ser formulada pensando em questões meramente culturais, mas “precisamos ter padrões permanentes, padrões de zelo que estão de acordo com a era vindoura.”[20]

O objetivo da vida cristã consiste numa radical transformação. Não podemos viver conformados e dominados pela ética anticristã, nem viver na mediocridade de um moralismo do senso comum. Não podemos nos contentar em apenas cumprir as leis da sociedade para cumprirmos a ordem e sermos decentes como as pessoas esperam que sejamos. A ideia de transformação é viver numa forma além deste mundo sem Deus. Sproul observa que “ninguém é transformado sem ter o coração mudado. Deus nos criou de tal modo que a via de acesso ao coração é a mente.”[21] A renovação da mente implica assumir uma cosmovisão coerentemente cristã aplicada a todas as esferas da vida e da sociedade. Somos chamados a pensar a partir da Escritura, sob a autoridade de Cristo e para a glória de Deus!

A renovação da mente é um compromisso com a santificação progressiva. Murray esclarece que

a santificação é um processo de transformação revolucionária naquilo que é o âmago de nossa consciência. Isto ressoa uma nota fundamental na ética bíblica – o pensamento de progressão – e combate a estagnação, a complacência e o orgulho de realização, que tão frequentemente caracteriza os cristãos.[22]

A vontade de Deus para a nossa vida seja guiada pela ética revelada (Rm 8:29). Paulo não está se referindo a vontade de decreto, mas sim a de preceito. Devemos modelar a nossa vida e decisões com a Palavra de Deus. Paulo anteriormente afirmou nesta epístola que “a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7:12). A vontade preceptiva revelada na Escritura, como lei e evangelho, nos revela a vontade preceptiva de Deus. John Murray afirma que

a ética se origina da união com Cristo e, por conseguinte, da participação na virtude pertencente a Ele e exercida por Ele, na qualidade de Redentor crucificado, ressurreto e assunto aos céus. A ética que se harmoniza com a sublime chamada de Deus em Cristo por si mesma faz parte da aplicação da redenção; pertence à santificação.[23]

Estamos em Cristo, somos dele, para sermos conforme a sua imagem. Por isso, devemos viver nele, com ele e tendo-o como paradigma. Mas, descobrir a vontade de Deus para situações específicas ainda assim é algo, às vezes, muito difícil. Por isso, carecemos de discernimento, e para isto a nossa mente deve nutrir-se com a preceptiva vontade de Deus, que é a Escritura Sagrada. Sproul comenta que

não importa qual o nosso trabalho ou com quem nos casamos ou em que cidade moramos. Se não estamos crescendo em santificação, buscar a vontade de Deus sobre essas coisas é inútil. A vontade de Deus para cada um de nós é que cresçamos em maturidade espiritual, e que a nossa mente seja transformada. Depois disso, seremos capazes de dizer o que agrada a Deus. Então, seremos capazes de saber o que ele quer que façamos – sua boa, agradável e perfeita vontade.[24]

Assim, ao buscarmos descobrir a vontade de Deus seguindo a ordem correta se cumpre a promessa de Cristo “busquem, pois, em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas lhes serão acrescentadas” (Mt 6:33, NVI).

 

Formação de Cristo em nós (Gl 4:19)

“meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós.”

Paulo usa para si a metáfora de uma mulher em dores de parto. Entretanto, a figura indica uma longa angústia de esforço e persistência. Donald Guthrie nota que nesta declaração “o seu propósito é claramente demonstrar que esta sua preocupação com seus convertidos supera em muito a atitude dos judaizantes.”[25] Aqueles que subiram para as igrejas da Galácia a fim de levar uma doutrina legalista não tinham o amor que o apóstolo possuía por eles. De fato, ele os amava comprometida e intensamente.

O problema dos desvios doutrinários é que eles são uma ilusão. E, era isto que os judaizantes no seu zelo sem entendimento de uma obediência cega da lei estava causando. O desvio doutrinário induziu aqueles crentes a uma falsa liberdade. Acreditar que pela obediência da lei se alcançaria a aceitação de Deus, é subestimar os efeitos do pecado.

O sofrimento experimentado por Paulo se estenderia até a formação da santidade de Cristo neles. William Hendriksen comenta que

o que especialmente causava dor e anseio em Paulo era o fato de que os gálatas pudessem estar abraçando o legalismo, contudo dificilmente estaria ausente de seu pensamento o perigo da libertinagem (imoralidade), uma vez que no capítulo seguinte ele exorta os gálatas seriamente a que não convertam sua liberdade em oportunidade para a carne (5:13, 16-24; cf. 6:7-8). Assim, nessa relação ampla, pensando na situação dos gálatas em sua totalidade, ele afirma: até que Cristo seja formado em vocês, ou seja, até que todo o seu ser interior proclame a pessoa e os caminhos de Cristo, de tal forma que confiem plenamente em seu Salvador, até serem semelhantes a Ele em seus pensamentos, desejos e aspirações, e projetem sua imagem em sua linguagem diária, na vida diária e em suas relações para com os seres queridos; em poucas palavras: em toda a gama de sua existência e atividade entre os homens.[26]

O esforço de Paulo era de conduzi-los a uma santificação aplicada a todas as esferas da vida. Neste sentido ele havia declarado que “logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2:20). Os benefícios da expiação de Cristo produzindo santidade nos pensamentos, desejos e emoções, de modo que, tudo neles se forme e conforme a semelhança de Cristo.

 

Vida no Espírito (Gl 5:25)

“Se vivemos no Espírito, andemos também no Espírito.”

Somos vivificados no Espírito Santo. De modo retórico o apóstolo apela para o “se”, pois, num autoexame, aqueles crentes deveriam saber que ter vida no Espírito implicaria em responsabilidades inevitáveis. Ele é a fonte da motivação para uma conduta santa. William Hendriksen comenta que “se a fonte de nossa vida é o Espírito, ao Espírito também deve-se permitir dirigir nossos passos, de maneira que cresçamos, avançando passo a passo para o alvo de uma plena consagração ao Senhor.”[27]Assim, cultivando o fruto do Espírito, na sua dinâmica dependência, podemos gradativamente derrotar o poder destrutivo do pecado em todas as esferas da vida.

Somos peregrinos numa longa caminhada de santificação. Ninguém que alegue andar com Cristo, poderá caminhar em pecado. William Perkins denuncia que

essa passagem acaba com as desculpas de diversas pessoas dos nossos dias, que professam ser filhos de Deus, mas levam vidas culposas, pois vivem não segundo o Espírito, mas segundo a carne. Essas pessoas, independentemente do que digam, enganam a si mesmas em atos e, na verdade, e não possuem o Espírito de Deus. Isso porque, se vivessem no Espírito, andariam no Espírito.”[28]

A santificação é uma evidência do fruto do Espírito. Os que são de Cristo tem o Espírito que neles produz o seu fruto. Os que são habitados pelo Espírito tem a vida e andam em santidade sendo transformados de dentro para fora.

Paulo pressupõe que há uma relação de dependência entre “viver” e “andar”. James Dunn observa que “o implícito contraste entre as duas partes é evidente que há entre princípio e empenho, ou entre o começo e a continuação”.[29] Mas, também há uma diferença entre as duas ações. Embora a segunda seja resultado da primeira ação, infelizmente é possível não haver coerência prática entre elas. Guthrie nota que

o crente cristão tem um tipo de vida diferente daqueles que estão sob o domínio da carne. Mas a aplicação prática desta nova vida não é automática. Requer perseverança, assim como uma criança está aprendendo a andar precisa de persistência. A metáfora é sugestiva, porque o mesmo Espírito que dá vida dá também forças e orientação no decurso da viagem da vida.[30]

Assim, a implicação deste raciocínio seria que se o Espírito é a fonte de nossa vida, então, que ela seja persistentemente santificada!

 

NOTAS:

[1] João Calvino, Gálatas, Efésios, Filipenses e Colossenses – Série Comentários Bíblicos (São José dos Campos, Editora Fiel, 2010), p. 321.

[2] George Stoeckhardt, Concordia Classic Commentary Series – Ephesians (St. Louis, Publishing House, 1987), p. 215.

[3] Eberhard Hahn, Carta aos Efésios – Comentário Esperança (Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 2006), p. 56.

[4] William Hendriksen, Galátas – Comentário do Novo Testamento (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 1999), p. 326.

[5] Johannes Wigand citado em Timothy F. George, org., Comentário Bíblico da Reforma – Gálatas e Efésios (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2013), p. 234.

[6] Simon Kistemaker, Comentário do Novo Testamento – Epístolas de Pedro e Judas (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2006), p. 131.

[7] Uwe Holmer, Primeira Carta de Pedro – Comentário Esperança (Curitiba, Editora Evangélica Esperança, 2008), p. 35.

[8] J.N.D. Kelly, The Epistles of Peter and of Jude (New York, Harper & Row Publishers, 1969), p. 104.

[9] Thomas R. Schreiner, New Testament Theology – Magnifying God in Christ (Grand Rapids, Baker Academic, 2008), p. 102.

[10] Heinrich Bullinger citado em Timothy F. George, org., Comentário Bíblico da Reforma – Gálatas e Efésios, p. 376.

[11] Eberhard Hahn, Carta aos Efésios – Comentário Esperança, p. 57.

[12] Wolfgang Musculus citado em Timothy F. George, org., Comentário Bíblico da Reforma – Gálatas e Efésios, p. 377.

[13] George Stoeckhardt, Concordia Classic Commentary Series – Ephesians (St. Louis, Publishing House, 1987), p. 218.

[14] Charles Hodge, Commentary on the Epistle to the Ephesians (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1994), p. 266.

[15] Charles Hodge, Commentary on the Epistle to the Ephesians, p. 266.

[16] E.K. Simpson & F.F. Bruce, Commentary on the Epistles to the Ephesians and the Colossians (Grand Rapids, Wm. B. Eerdmans Publishing, 1957), p. 272.

[17] R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos (São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2011), p. 369.

[18] F.J. Leenhardt, Epístola aos Romanos – comentário exegético (São Paulo, ASTE, 1957), p. 309.

[19] John Murray, Comentário Bíblico Fiel – Romanos (São José dos Campos, Editora Fiel, 2003), p. 474.

[20] John Murray, Comentário Bíblico Fiel – Romanos, p. 477.

[21] R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos, p. 374.

[22] John Murray, Comentário Bíblico Fiel – Romanos, p. 477.

[23] John Murray, Comentário Bíblico Fiel – Romanos, p. 473.

[24] R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos, p. 374.

[25] Donald Guthrie,  Gálatas – introdução e comentário (São Paulo, Edições Vida Nova, 1988), p. 155.

[26] William Hendriksen, Galátas – Comentário do Novo Testamento, p. 254.

[27] William Hendriksen, Galátas – Comentário do Novo Testamento, p. 326.

[28] William Perkins citado em Timothy F. George, org., Comentário Bíblico da Reforma – Gálatas e Efésios, p. 234.

[29] James D.G. Dunn, The Epistle to the Galatians (Peabody, Hendriksen Publishers, 1993), p. 317.

[30] Donald Guthrie,  Gálatas – introdução e comentário, p. 182.

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