Filipe Melanchthon sobre o papel da filosofia em seus Loci Communes de 1521: Fautriz de bobagens escolásticas e serva da teologia

 

Por Elvio Nei Figur

 

Resumo:

Os Loci Communes de 1521 marcam uma mudança de direção no pensamento de Filipe Melanchthon. De filósofo humanista, defensor das virtudes e capacidades humanas, ele passa a acentuar a incapacidade absoluta do ser humano caído em chegar a Deus por força própria, aspecto este tomado da antropologia teológica de Lutero. Ao abraçar a Reforma, Melanchthon passa a criticar a filosofia e seus métodos acusando-a de promover bobagens escolásticas que, por sua vez, afastariam o ser humano dos benefícios de Cristo. Ele próprio, entretanto, se utiliza de conceituações filosóficas em sua argumentação reconhecendo, ainda que de forma implícita nessa edição dos Loci, que ela pode ser sim uma serva da teologia.

Palavras-Chave: Escolástica. Filosofia. Melanchthon. Religião. Teologia.

 

“Melanchthon, ao escrever, a respeito da filosofia, que essa bruxa, recendendo à Grécia, não é apta para ser a serva da teologia, deixa transparecer bem claro até que ponto Lutero o influenciara. Mas pouco tempo depois começou a ver a perigosa feiticeira a luz bem diversa. […] A bruxa grega metamorfoseou-se em ancilla theologiae [serva da teologia].” ~ Arnaldo Schuler

 

Introdução

Os Loci Communes1 de 1521 refletem a transição entre o Melanchthon filósofo (humanista) e o Melanchthon teólogo (protestante). Na obra o autor busca organizar uma espécie de síntese da teologia cristã de forma simples e, ao mesmo tempo, sistemática. Abrindo mão das raízes humanistas em que fora instruído e como teólogo estreante apropria-se da confissão de fé de Martinho Lutero como sua. Nos anos anteriores a 1521, Melanchthon havia brilhado como humanista na Alemanha sendo comparado a Erasmo de Roterdã por sua edição crítica do Novo Testamento grego. Na publicação, Melanchthon havia articulado o Evangelho em termos éticos vendo Cristo como exemplo moral perfeito. Os Loci Communes de 1521 marcam, no entanto, certa viragem no pensamento desse reformador. Neles o autor passa a acentuar, a partir de definições teológicas, a incapacidade absoluta do ser humano caído em chegar a Deus por força própria reforçando, assim, a tese luterana de que somente a graça de Deus em Cristo libertaria o pecador dos grilhões da servidão. A aceitação desse aspecto da antropologia teológica de Lutero significou a rejeição da teologia nos moldes humanistas.

Com o propósito de alocar os Loci Communes de 1521 em seu devido contexto o presente artigo faz, inicialmente, uma breve abordagem da vida de Melanchthon até 1521 para, num segundo momento, abordar o trato que ele dá à filosofia e ao método escolástico em seu escrito apontando algumas das contribuições filosóficas2 que acaba inserindo na teologia protestante em sua fase germinal.

 

  1. Filipe Melanchthon, a filosofia e a reforma até 1521

Philipp Schwarzerd nasceu em 16 de fevereiro de 1497, em Bretten, cidade do baixo Palatinado. Foi o primogênito de cinco irmãos. Seus pais foram George Schwarzerd e Barbara Reuter. Barbara era sobrinha de João Reuchlin, segundo alguns, o principal humanista alemão do início do século XVI e maior hebraísta de seu tempo. Com a morte do pai quando tinha apenas 11 anos, sua mãe o enviou para Pforzheim para estudar latim. Lá aproximou-se de Reuchlin que foi quem teria lhe dado, já nessa época, o nome grecizado de Melanchthon, uma tradução de Schwarzerd [terra preta]. Lutero, por vezes, se referiria a seu precioso cooperador Terra Preta com a forma latinizada Nigroterâneo (Schuler, 1997).

Filipe logo se destacou em latim e grego e em pouco tempo estava pronto para os estudos universitários. Em outubro de 1509 ingressou na Universidade de Heidelberg onde obteve, em 1511, o bacharelado em Artes aos 14 anos de idade. No ano seguinte já quis obter o grau de mestre em Artes o que lhe foi negado pela faculdade, apontando sua idade e aparência juvenil como impeditivos. Instigado por seu avô, Melanchthon decidiu procurar a Universidade de Tubinga onde conseguiu o título de mestre em Artes, em 1514. A universidade de Tubinga tinha uma tendência ligeiramente mais humanista e com professores seguindo a via moderna3. Em Tubinga, Melanchthon floresceu. Além de ocupar-se fervorosamente com a astrologia, com a qual continuou a enamorar toda a sua vida, em 1516 fez uma edição do poeta cômico latino Terêncio. Publicou traduções de Plutarco, Pitágoras e Lícidas. Aos 19 anos começou a lecionar história e retórica. Em 1518 publicou uma gramática grega que se tornou bastante popular e, no ano seguinte, um compêndio de retórica (Preus, 2014; Schuler, 1997).

Movido pelas controvérsias da época e como humanista convencido, Melanchthon voltou-se também aos estudos teológicos. A teologia dos humanistas era, em grande parte, uma espécie de ética prática em oposição ao complicado sistema aristotélico dos escolásticos. Melanchthon passou a ser visto pelos teólogos conservadores como um inovador moderno, um professor perigoso e subversivo. Ao mesmo tempo, porém, sua reputação como estudioso entre os humanistas crescia no norte da Europa, inclusive na Inglaterra, onde sua gramática grega fora muito bem recebida. Nessa época, Reuchlin o recomendou para o príncipe eleitor da Saxônia, Frederico o sábio, que, apesar da oposição de Lutero que preferia outro candidato, o escolheu para lecionar grego. Assim, em 29 de agosto de 1518, quatro dias após sua chegada em Wittenberg, Melanchthon proferiu sua aula inaugural na igreja do castelo de Wittenberg. A preleção magistral assombrou o auditório. Lutero e seus colegas perceberam que a aparência jovial de Melanchthon os havia enganado (Preus, 2014). Cerca de dois anos após sua chegada, a população estudantil em Wittenberg triplicou, em grande parte devido à fama do jovem humanista, mas também devido às polêmicas provocadas pela publicação, naquela universidade, das famosas noventa e cinco teses de Lutero, em 1517.

O tema da preleção inaugural de Melanchthon foi De corrigendis adulescentiae studiis [Sobre a reforma acadêmica] e mostra que, naquele momento, suas preocupações ainda eram mais educacionais e éticas4 do que teológicas. Mas os anos seguintes seriam transformadores. Inicialmente, Melanchthon ensinava exclusivamente os clássicos gregos e latinos. Suas obras publicadas em 1518 e nos primeiros meses de 1519 refletem mais o humanismo erasmiano do que a teologia da Reforma. Em razão de seus estudos das escrituras sagradas do cristianismo e seu contato direto com Lutero, começou a adotar a teologia do colega como sua5. O ponto de viragem nesta primeira fase do desenvolvimento teológico de Melanchthon foi sua participação no debate ocorrido em Leipzig entre João Eck, teólogo escolástico da Universidade de Ingolstadt, Martinho Lutero e seu colega Andreas Carlstadt. O debate, que ocorreu em junho e julho de 1519, girou em torno da questão da servidão da vontade, da supremacia papal, do purgatório e das indulgências. Mesmo sendo mero espectador, Melanchthon ficou impressionado, chegando a elogiar Lutero em uma carta a um amigo. Eck, ao ler a carta, respondeu atacando-o duramente. Em uma resposta ao ataque de Eck, Melanchthon argumentou que a Escritura seria a única norma confiável para a doutrina cristã (Pauck, 1969; Schuler, 1997; Stupperich, 1966).

Pouco tempo depois, como requisito para obter o bacharelado em teologia na Universidade de Wittenberg, Melanchthon argumentou, entre outras coisas, que a natureza humana, por si mesma, não pode amar a Deus e que a justiça cristã consiste em Deus graciosamente declarar o ser humano justo6. Em outro escrito argumentou que os pecadores são justificados somente pela fé. Dessa forma Melanchthon antecipou alguns pontos doutrinários centrais dos Loci Communes ainda em 1519.

Ao abraçar os ensinamentos da Reforma, Melanchthon afastava-se em muitos aspectos da argumentação humanista, especialmente do ensinamento de que a justiça do ser humano residiria em suas próprias ações e não na graciosa imputação de Deus. Os humanistas, a princípio alinhados com a Reforma, sentiram-se desconfortáveis com a linguagem áspera de Lutero e com os tumultos provocados por seus escritos. Reuchlin, o tio-avô de Melanchthon, chegou a solicitar que este deixasse Wittenberg e se juntasse à faculdade de Ingolstadt prometendo que João Eck o perdoaria e não guardaria rancor. Melanchthon recusou e Reuchlin nunca mais falou com ele. Melanchthon perdeu a simpatia do tio-avô mas ganhou, em Lutero, um pai (Preus, 2014). Em sua companhia Filipe “passou à fase de teólogo bíblico maturescente, sazonando em ritmo melanchthoniano, isto é, rapidamente, sem ficar, no entanto, na superfície. Acompanhava o mestre [Lutero], que profundava” (Schuler, 1997, p. 11). Melanchthon reconhece no amigo um transiluminado, “um rebelde com uma causa”, a maior de todas, e “matriculou-se na ala dos seguidores do Reformador. Para Lutero, o novo auxiliar se tornara, nesse entrementes, o mais-que-tudo. Era o status causae” (Schuler, 1997, p. 12)7.

Lutero e Melanchthon “receberam-se teologicamente em 1521, quando surgiu a primeira edição dos Loci de Melanchthon” (Schuler, 1997, p. 12). Os Loci foram o resultado de uma trajetória iniciada por volta de 1519 quando Melanchthon passou a lecionar teologia na Universidade de Wittenberg. O intenso estudo das epístolas de Paulo – em especial a carta aos Romanos – e as palestras proferidas na universidade foram fundamentais para o surgimento da obra e para o amadurecimento da teologia de Melanchthon. Em um discurso sobre Paulo e os escolásticos proferido em janeiro de 1520, por exemplo, Melanchthon ainda misturava a retórica de Erasmo com o tema da Lei e Evangelho de Lutero. No mesmo discurso o preletor argumenta que Paulo teria expressado o Evangelho com maior clareza do que os escolásticos. Argumenta ainda que o ser humano seria incapaz de mudar, pelas suas ações, sua natureza, mas a graça de Deus era a única capaz de dar o perdão. Apesar dessa ênfase, em 1520 Melanchthon ainda se concentrava nos resultados éticos proporcionados pela graça que teria meramente a função de transformar o cristão para que se deleitasse em obedecer à Lei (Preus, 2014).

O fragmento a seguir, retirado do discurso São Paulo e os Escolásticos, demonstra como o objetivo de Melanchthon nesse primeiro momento (1519-20) ainda era o de ligar a teologia à busca de uma virtude moral (humanismo). Fazendo uma estranha mistura entre Paulo e Platão, o Espírito aparece como a nova força motriz por trás da busca pela virtude, e Cristo, o doador:

E nisto Paulo é ainda mais apto para moldar o caráter porque não só prescreve leis para viver, mas também revela a Cristo, de quem você pode obter, de cujas feridas você pode beber, o espírito de virtude. (Melanchthon apud Reed, 1971, p. 2)

Quando ameaçado de excomunhão pela bula papal Exsurge Domine em junho de 1520, tendo muitos de seus ensinamentos condenados como heresias, Lutero, com Melanchthon ao seu lado, queimou a bula publicamente em 10 de dezembro daquele ano. O Papa, entretanto, reagiu com outra bula, a Decet Romanum Pontificem, que o excomungou formalmente da Igreja Romana em 03 de janeiro de 1521. Cinco meses depois, na Dieta de Worms, Lutero foi declarado herege e um fora da lei, mas este já estava escondido em Wartburg e Melanchthon ficara sozinho em Wittenberg, sem seu Elias8. Foi nesse período conturbado que a primeira edição dos Loci Communes foi publicada. O tom polêmico da obra é, portanto, compreensível, assim como a total devoção de Melanchthon a Lutero e à causa luterana. Lutero já teria deixado claro a Melanchthon que ele poderia morrer sabendo que este articularia o Evangelho melhor do que ele, que Eliseu tinha ultrapassado Elias (Preus, 2014). Os Loci, se não o comprovam, ao menos reforçam o apreço que o reformador de Wittenberg nutria pelo reformador de Bretten, notadamente de sua capacidade intelectual e facilidade de expressão (Pauck, 1969).

O maior elogio que Lutero dirigiu ao amigo refere-se justamente aos Loci Communes. Ele o descreveu como o melhor livro já escrito desde as Escrituras Sagradas e pediu que estas fossem interpretadas de acordo com os Loci9 (Pelikan, 1963, p. 25). Em um momento, talvez de extravagância, em De Servo Arbítrio (1525)10, Lutero sugeriu que os Loci eram dignos de serem admitidos no cânone; liber invictus, non solum immortalitate, sed et canone eclesiastico dignus [livro invicto, não só digno de imortalidade, mas ainda do cânon eclesiástico].11

O elogio de Lutero, por si mesmo, já bastaria para o reconhecimento da importância da obra. Entretanto, nosso foco aqui é investigar, nos Loci Communes de 1521, em que consiste sua crítica à filosofia, particularmente a praticada pelos escolásticos, e como, apesar das críticas, Melanchthon a usa como serva da teologia já nessa obra germinal da teologia protestante12.

 

  1. Filipe Melanchthon, a filosofia e a Reforma segundo os Loci Communes de 1521

Após receber o título de bacharel em Teologia em 1519, Melanchthon passou a lecionar sobre Bíblia. Suas anotações sobre a carta de Paulo aos Romanos acabaram caindo nas mãos de alunos que, em 1520, providenciaram sua publicação sob o título Lucubratiuncula [trabalho noturno]. Melanchthon não conseguiu suprimir a publicação e viu-se forçado a revisá-la e publicá-la em 1521 sob o título Loci communes rerum theologicarum seu hypotyposes theologicae (Breen, 1947), ou simplesmente Loci Communes.

A expressão Loci Communes é uma tradução do topoi koinoi grego de origem aristotélica. A concepção grega de topoi koinoi, entretanto, está um tanto distante daquela que Melanchthon tem em mente. Enquanto Aristóteles pensou em loci como proposições comuns à investigação dialética ou afirmações prováveis com as quais se tenta tornar a dialética mais responsável à verdade13, Melanchthon, refletindo aspectos das tradições pré-aristotélica, aristotélica além das de Cícero e Boécio14, pensa em loci como guias, índices ou pontos de partida a partir dos quais os argumentos se desenvolverão. Em outras palavras, locus é, para Melanchthon, um título ou cabeçalho que contém os principais pontos de um ensino (Breen, 1947; Peterson, 2012). É nesse sentido que Melanchthon esclarece os objetivos de sua obra: “fazemos somente referência aos tópicos aos quais deve ser redirecionado quem se perde pelos livros divinos, assim chamamos a atenção somente para as poucas palavras das quais dependa a síntese da doutrina cristã” (Melanchthon, 1521, pto. 5). Assim, para o reformador de Bretten, o tema da teologia já está presente na Escritura e o trabalho do teólogo seria apenas o de aprender seus tópicos comuns ou esboços para que possa ser conduzido pela própria Escritura.

Apesar de ter buscado combater a filosofia escolástica nessa primeira edição dos Loci, resquícios da filosofia platônica e aristotélica estão por toda a parte nesta e nas edições posteriores dos Loci. Limitamo-nos, nesta abordagem, a expor alguns aspectos dessa questão a partir da edição de 1521, momento em que Melanchthon ainda se enamora da teologia de Lutero. Na edição, após breve apresentação, o autor indica claramente que não tem a intenção de desenvolver acuradas discussões a respeito de cada questão. Seu propósito é simplesmente indicar

os tópicos principais da doutrina cristã, para que a juventude compreenda tanto que coisas devam ser buscadas principalmente nas Escrituras, quanto quão horrivelmente alucinados em toda parte estejam na questão teológica os que nos ofereceram argúcias aristotélicas em lugar de doutrina cristã. (Melanchthon, 1521, Introd., pto. 4)

O autor deixa claro seu desprezo pelas argúcias aristotélicas promovidas pelo uso da filosofia nas discussões de temas teológicos. Segundo ele, um resgate das escrituras sagradas cristãs deveria acontecer, pois é ela que deve governar a teologia:

Não faço isso a fim de afastar os estudantes das Escrituras para alguns debates obscuros e intrincados, mas a fim de convidá-los para as Escrituras, se me for possível. […] não há nada que eu tenha querido […] além de que todos os cristãos se ocupem o mais livremente somente das divinas letras e se transformarem completamente de acordo com a sua índole. Pois como a divindade nelas expressou a mais absoluta imagem de si mesma, ela não pode ser conhecida em outro lugar nem com mais certeza e nem com mais proximidade. Engana-se quem quer que busque a forma do cristianismo a partir de outro lugar do que da Escritura canônica. (Melanchthon, 1521, Intr. pto. 6-8)

Porque em pureza a doutrina do Espírito não pode ser haurida a não ser a partir das Escrituras. Pois quem terá expressado o Espírito de Deus mais propriamente do que Ele próprio? (Melanchthon, 1521, A respeito do escândalo, pto. 17)

Um dos argumentos centrais de Lutero e da Reforma, o Sola Scriptura, transparece no primeiro fragmento. A ideia de que a forma do cristianismo deve ser encontrada unicamente na Escritura é ponto fundamental; “Nós com certeza não fazemos outra coisa do que que ajudamos de algum modo os estudos daqueles que querem se voltar às Escrituras” (Melanchthon, 1521, Intr. pto. 12). A ideia de forma é originária do platonismo15 e, portanto, já revela o profundo atravessamento da investigação melanchthoniana pela filosofia e a conaturalidade ou a inevitável convivência entre ambas nos debates acerca da divindade. A sistematização de doutrinas é, afinal, uma tentativa ou uma busca pela forma ou essência daquilo que se observa na vivência da religião ou na religiosidade existencial16.

Retomando a questão da centralidade da Escritura, Melanchthon pergunta pelo “quanto os comentários carecem da sua pureza?” (Melanchthon, 1521, Intr. pto. 8). A pureza originária dos escritos canônicos é aqui invocada reforçando a noção amplamente defendida por Lutero de que as Escrituras bastariam por si mesmas contra todas as doutrinas dos concílios e toda a argumentação escolástica:

Nesta [Escritura] não encontrarás nada que não seja venerável, naqueles, quantas coisas que dependem da filosofia, da avaliação da razão humana, que combatem frontalmente o juízo do Espírito. […] Se tiras de Orígenes as alegorias estranhas e a selva de sentenças filosóficas, quanto terá restado? E, no entanto, os gregos seguem este autor com grande consenso; também [o fazem], dentre os latinos, os que são considerados como sendo os pilares, Ambrósio e Jerônimo. Depois destes, geralmente quando alguém é mais recente, lhe é menos fiel, e por fim a disciplina cristã degenerou em bobagens escolásticas, das quais duvidas que haja mais ímpias ou estultas. (Melanchthon, 1521, Intr. pto. 8b, 9b, 10)

Ao apropriar-se das premissas de que a Escritura Sagrada carregaria a pureza originária da religião cristã (Sola Scriptura) e de que o ser humano caído é justificado pela graça divina mediante a fé (Sola Gratia e Sola Fide), a crítica de Melanchthon recai, primeiro sobre Orígenes (185-251 d.C.). Este teólogo e filosofo utilizara-se do método alegórico17 de Filo de Alexandria (25 a.C. – 50 d.C.) o qual interpretava o A.T. de acordo com a filosofia platônica18. Para Filo, o sentido literal das Escrituras Sagradas é apenas o que a sombra é com relação ao corpo, ou seja, a autêntica mensagem estaria no sentido alegórico mais profundo do texto. Essa forma de interpretação permitia, inclusive, a aceitação da cosmovisão que se desenvolvera na escola filosófica de Alexandria segundo a qual a salvação do ser humano caído se daria por um desenvolvimento moral, até chegar à perfeição (Melanchthon, 1983; Hägglund, 1999; Dreher, 2013). No fundo é principalmente a esses aspectos que Melanchthon se opõe com relação a Orígenes e seus seguidores, e o faz amparando-se nas doutrinas adotadas de Lutero.

Ambrósio e Jerônimo também são citados por Melanchthon como pilares utilizados pela Igreja da época em detrimento da Escritura. Melanchthon lamenta: “Depois destes [Ambrósio e Jerônimo], geralmente quando alguém é mais recente, lhe [Escritura] é menos fiel” (Melanchthon, 1521, Intr. pto. 10). Basta lembrar que Ambrósio foi quem dispôs a Agostinho de Hipona muitos dos termos que este usaria em suas abordagens filosóficas e teológicas. O mesmo Ambrósio foi quem usou pela primeira vez os termos que explicariam a natureza humana e divina do Cristo (Spinelli, 2002). Já Jerônimo é conhecido por sua tradução da Bíblia para o latim (Vulgata) (Kelly, 1975). A crítica de Melanchthon, no entanto, parece se referir mais diretamente à formulação de sentenças filosófico/teológicas oriundas ou promovidas pelas especulações filosóficas formuladas a partir das sentenças desses doutores da Igreja.

Os mais recentes que, segundo Melanchthon, degeneram a disciplina cristã são os escolásticos que, a partir de meados do século XI, empregaram cada vez mais o método filosófico para tratar de temas religiosos. Em seu exame crítico e organização das declarações dos pais eclesiásticos, os escolásticos aplicavam a lógica aristotélica e as categorias platônicas para desenvolver sistemas logicamente defensáveis de teologia cristã. Assim, o método dialético conduziu, gradativamente, à divisão infinita das discussões teológicas e a especulação foi sempre levada adiante até às minúcias periféricas (Hägglund, 1999). Para o jovem Melanchthon, nos Loci de 1521, tudo isso não passava de bobagens escolásticas das quais ele mesmo duvidava haver mais ímpias ou estultas19. A crítica de Melanchthon inclui, assim, uma condenação ao método escolástico em geral, mas especialmente uma crítica ao uso de sentenças filosóficas quando a Escritura, notadamente as cartas paulinas, melhor expressariam a essência da fé cristão.20

No fragmento a seguir vemos como Melanchthon, apesar de condenar o método escolástico, de certa forma, apropria-se dele ao formular seus tópicos:

Costumam ser requeridos nas disciplinas particulares alguns tópicos, em que se abarca uma síntese dessa disciplina. Estes são tidos por alvos aos quais dirigimos todos os estudos. O que vemos na teologia seguirem também os antigos, de fato com parcimônia e sobriedade. Porém, entre os mais recentes, [João] Damasceno e [Pedro] Lombardo, ambos de modo inepto. Pois Damasceno filosofa demais, Lombardo prefere recolher opiniões de pessoas em lugar de proferir uma sentença da Escritura. E embora eu não queira que os estudantes se detenham nesse gênero, em sínteses […] considero entretanto quase necessário indicar ao menos de que tópicos dependa a síntese das questões, a fim de que se compreenda para onde devem ser dirigidos os estudos. (Melanchthon, 1521, Tópicos comuns em questões teológicas ou esboços teológicos, pto. 1-3)

Aqui parece evidenciar-se que, apesar de criticar diretamente a escolástica e seu uso da lógica filosófica em suas argumentações, Melanchthon está mais preocupado é com os exageros, no caso de Damasceno e da imposição de escritos humanos em lugar da Escritura para tratar de temas religiosos. Esse seria o caso também de Pedro Lombardo cujos livros de sentenças foram usados por séculos nas universidades para ensinar o método escolástico e a doutrina cristã. Melanchthon pretende formular seus esboços ou tópicos evitando ao máximo colocações humanas como pilares. Ele chega, inclusive, a sugerir que o conhecimento das coisas sagradas seja abraçado como um tipo de gênero literário:

Porque se o conhecimento das coisas sagradas é completamente uma profecia e uma certa inspiração, porque não abraçamos esse gênero literário por meio do qual desce o Espírito? Ou acaso não realiza Deus todas as obras da sua palavra? Pois o Espírito, ou, como diz João, a unção, ensinará muitas coisas com o uso das Escrituras que, qualquer que seja o empenho da genialidade humana, esta não pode alcançar. (Melanchthon, 1521, Intr., pto. 11)

No fragmento é perceptível o contraste entre letra e espírito próprio de Filo de Alexandria e Orígenes entre outros. Melanchthon, de certa forma, mantém essa ideia (Cf. Melanchthon, 1521, A respeito do pecado mortal e do quotidiano, pto. 101), mas aqui o faz a partir do evangelho de João. Ele está convicto de que o Espírito, com o uso da Escritura divinamente inspirada, ensinará o que de fato interessa ao ser humano. Por isso, após listar os tópicos que serão abordados, diz ser mais correto “que tenhamos adorado os mistérios da divindade, do que os tenhamos investigado” (Melanchthon, 1521, Tópicos comuns em questões teológicas ou esboços teológicos, pto. 6). Citando Paulo aos Coríntios e aos Romanos, argumenta que temas como de Deus, da unidade, da trindade, do mistério da criação e do modo da encarnação amplamente discutidos pelos escolásticos se tornaram vãos em suas disputas. O motivo é que tais temas obscurecem o Evangelho e os benefícios de Cristo:

Porém, não vejo como chamar de cristão quem tenha ignorado os demais tópicos – o poder do pecado, a lei, a graça. Pois a partir destes é que propriamente Cristo é conhecido, uma vez que isto é conhecer a Cristo: conhecer os seus benefícios, não o que aqueles ensinam – examinar suas naturezas e modos de encarnação. Se não souberes em proveito de quê Cristo tenha assumido a carne e tenha sido crucificado, a que leva que tenhas conhecido sua história? (Melanchthon, 1521, Tópicos comuns em questões teológicas ou esboços teológicos, pto. 12 – 14)

Aqui se revela um ponto fundamental para a compreensão da perspectiva a partir da qual Melanchthon tece sua argumentação nos Loci Communes de 1521: trata-se, afinal, de conhecer, prioritariamente, os benefícios pessoais ou vivenciais e não simplesmente a teoria ou a história. O termo benefício é influência de Erasmo que também tinha utilizado o termo em referência à obra do Cristo em seus estudos da carta aos Romanos. Mas certamente o exemplo do reformador de Wittenberg era, para Melanchthon, ainda mais inspirador. Anos mais tarde ele diria que Lutero, apesar de elucidar os “labirintos fraseológicos que eram inextrincáveis para outros […] não procurava a glória do intelecto, mas o nutrimento da sua religiosidade” (Melanchthon, 1983, p. 19). O próprio Lutero, ao defender uma teologia existencial, também se utilizou do termo benefício ao enfatizar a apropriação individual da mensagem cristã em detrimento ao mero conhecimento teorético.

Outra questão que, de certa forma, subjaz toda a argumentação de Melanchthon é a ideia de que a razão humana é limitada para a compreensão objetiva daquilo que é, essencialmente, irracional ou subjetivo. Melanchthon tenta expor tal impossibilidade ao sugerir, por exemplo, que o conhecimento cristão se limita a “saber o que a lei exige, de onde venha a capacidade de cumprir a lei, de onde solicites a graça pelo pecado […]” (Melanchthon, 1521, Tópicos comuns em questões teológicas ou esboços teológicos, pto. 16). Em outras palavras, para Melanchthon, conhecer a Cristo demanda uma outra lógica que seja capaz de fortalecer a consciência e encorajar o ânimo. Se, como queriam os escolásticos, o conhecimento de Cristo fosse selecionar os tópicos das virtudes e dos vícios como num manual de comportamento, para Melanchthon, essa perspectiva é mais filosófica do que cristã. É essa visão que ele pretende combater para fazer transparecer um outro tipo de conhecimento que, na realidade, está voltado à fé, à vida do ser humano enquanto existente e, portanto, distante de meras conceituações abstratas. Essa forma de pensar, Melanchthon deve ao Humanismo.

Nessa busca, e talvez justamente pela impossibilidade de tratar desses temas de outra forma que não objetivamente, como um sistemático nato, Melanchthon recorre a conceitos filosóficos minimamente capazes de refletir questões religiosas, por vezes, mais subjetivas do que racionais. Ao tratar do livre-arbítrio, por exemplo, um conceito que é base para sua argumentação é a questão dos afetos. Melanchthon divide o ser humano em duas partes; a capacidade de conhecer e a capacidade pela qual busca ou evita o que conheceu. A primeira é aquela pela qual o ser humano percebe, compreende, raciocina e faz deduções. A outra é a capacidade a partir da qual se originam os afetos também chamados de vontade ou apetite. Melanchthon, entretanto, esclarece que essa sua apropriação da ideia de afetos é diferenciada daquela comumente utilizada pela filosofia da época21. Se a filosofia separava entre apetite das percepções (fome, sede) e apetite superior (amor, ódio, esperança, medo, tristeza, etc.), Melanchthon trata apenas do apetite superior. A esse apetite superior os filósofos também chamam vontade que, conjugada com o conhecimento/ intelecto resultaria em livre-arbítrio (segundo teólogos antigos) ou razão (para os neoplatônicos). Melanchthon rejeita essas ideias preferindo chamar as partes do ser humano simplesmente de capacidade de conhecer (faculdade da cognição) e capacidade sujeita aos afetos – amor, ódio, esperança, medo, etc. (faculdade da vontade). Ao tratar do livre-arbítrio, por exemplo, ele afirma:

Reconheço haver uma certa liberdade no exterior das coisas a serem escolhidas, mas nego frontalmente estarem os afetos internos em nosso poder. Nem permito haver uma vontade que possa se contrapor seriamente aos afetos, e afirmo essas coisas de fato a respeito da natureza do ser humano. Pois quanto aos que são justificados pelo espírito, neles os bons afetos lutam com os maus […]. (Melanchthon, 1521, Das capacidades do ser humano, ou seja, do livre-arbítrio).

Para Melanchthon, nessa edição dos Loci, todas as coisas acontecem por determinação da vontade de Deus22. Esse é um pressuposto teológico que perpassa essa obra – essa é também a razão porque o tema é tratado já no início. Em resumo, para Melanchthon o ser humano não possui livre-arbítrio por estar sujeito ao pecado. Ao mesmo tempo, entretanto, o ser humano justificado pelo espírito, é santo/justo. Aqui a ideia luterana sobre o ser humano ser, ao mesmo tempo, justo e pecador também está presente. A luta dos bons afetos contra os maus reflete essa noção a respeito da vida cristã contrariando, assim, frontalmente a ideia escolástica segundo a qual a salvação do ser humano caído se daria por um desenvolvimento ético e moral que o levaria à perfeição; que haveria, por isso, livre-arbítrio; que haveria, ainda, um tipo de preparação para a graça ou méritos de conveniência (Cf. p. ex. Tomás de Aquino). Para Melanchthon o intelecto humano compreende apenas as coisas carnais sendo totalmente ignorante de Deus. Por isso, ainda que lhe seja ensinado, não crê por sua própria luz e, portanto, não pode temer nem amar a Deus por sua própria vontade. Nas palavras de Filipe: “Nem a fé, nem o temor de Deus julgo poder ser ensinado, a não ser que se tenha convencido de que Deus efetua tudo em todos” (Melanchthon, 1521, Das capacidades do ser humano, ou seja, do livre-arbítrio).

Conceitos filosóficos relacionados aos afetos também são utilizados por Melanchthon para tratar de temas como o pecado, a velha e a nova natureza. Ao tratar do pecado, por exemplo, ele afirma que este é “o afeto falho, e o impulso falho do coração” (Melanchthon, 1521, Do pecado, pto. 6) contrário à lei de Deus. Citando passagens bíblicas, Melanchthon diferencia carne e espírito. Assim, segundo ele,

no capítulo oitavo, depois que tinha debatido que a lei não pode ser cumprida em nós, [Paulo] contrapõe carne e espírito. Ensina que a carne é totalmente submissa ao pecado, mas que o espírito, por sua vez, é vida e paz. Aqui os sofistas chamam a carne de ‘apetite sensitivo’, esquecidos das fraseologias e dos tropos da Escritura. Pois com o termo ‘carne’ a Escritura se refere não ao corpo, a uma parte do ser humano, mas ao ser humano inteiro, tanto à alma quanto ao corpo; e todas as vezes que contrapõe a ‘espírito’, [este termo ‘carne’] significa as melhores e mais excelsas capacidades da natureza humana sem o Espírito Santo. Por outro lado, o espírito significa o próprio Espírito Santo, tanto os seus movimentos quanto as suas obras em nós. (Melanchthon, 1521, Do pecado, pto. 57-58)

Para Melanchthon essa é a razão porque Paulo argumenta que a carne não pode cumprir a lei, mas que quem realiza a obra é o Espírito. A vontade nova, ou o novo homem surge dessa ação do Espírito que inflama o ser humano a amar a Deus e sua vontade; “E assim não amas de fato nunca, pois quaisquer confortos a partir de Deus não são sentidos a não ser que o coração já tenha sido purificado pelo Espírito Santo” (Melanchthon, 1521, Do pecado, pto. 85). Sem o espírito, portanto, o ser humano é apenas carne, segundo Melanchthon, e está longe de Deus pois “o afeto da carne é inimizade contra Deus” (Rm 8.7). Observa-se, assim, o quanto o reformador de Bretten reforça a tese luterana a respeito da incapacidade humana para a salvação própria sem o espírito de Deus já neste que é tido como o primeiro livro de teologia protestante, os Loci Communes de 1521 (Breen, 1947).

Desse breve apanhado já é possível observar as profundas tendências humanistas e pressupostos filosóficos presentes no pensamento melanchthoniano e que influenciaram na formulação de sua teologia. Seu método, inegavelmente, foi influenciado pela filosofia apesar de ele combatê-la fortemente. Aqui, entretanto, o combate parece justificar-se mais em virtude de uma nova compreensão do autor com relação ao texto bíblico e a própria noção luterana da justificação por graça e fé do que por uma oposição ao método filosófico. Por outro lado, quando Melanchthon ainda se enamora da teologia de Lutero com certo encantamento, suas palavras duras dirigidas especialmente aos escolásticos revelam o espírito combativo próprio dos movimentos de renovação religiosa em busca da pretensa pureza originária. Também é perceptível sua releitura dos escritos religiosos em uma perspectiva mais existencial. Isso pode ser observado nos fragmentos a seguir onde ele faz um tipo de distinção entre a filosofia e as letras sagradas:

Vês, porém, com que diferença julgam a respeito do ser humano a filosofia – ou a razão humana – e as letras sagradas. A filosofia não vê nada além das máscaras exteriores do ser humano. As letras sagradas observam os afetos mais interiores e os incompreensíveis. (Melanchthon, 1521, Do pecado, pto. 45)23

Eles chamam os afetos de fraquezas, mas de um tipo que possa ser vencida com as capacidades humanas. A Escritura, pelo contrário, nega que, a não ser pelo Espírito de Deus, os afetos da carne possam ser vencidos. […] Deus julga a respeito do coração, não a respeito da obra exterior. […] E justamente a partir daqui será lícito estimar quanto a filosofia terá causado de dano aos temas cristãos, quando nossos teologistas, tendo seguido a filosofia, elaboraram boas obras, aquela máscara de obras externas? (Melanchthon, 1521, Do pecado, pto. 112)

Melanchthon está tão convicto de suas colocações que chega a afirmar que todas as compreensões da razão humana são trevas/sombras e que a luz é o Espírito de Cristo (Melanchthon, 1521, Do pecado, pto. 116);

Aqueles que dependem não do Espírito, mas do juízo e da avaliação das pessoas humanas, não discernem as próprias coisas, mas com dificuldade algumas sombras das coisas, de forma não diferente também daqueles na caverna platônica. (Melanchthon, 1521, Do pecado, pto. 110)

A referência à caverna platônica aqui se limita à analogia das sombras: se para os platônicos e tantos outros a razão humana é aquilo por meio do qual o ser humano encontra o conhecimento da verdade (luz), para Melanchthon a razão continua vendo apenas sombras. Em outras palavras, a filosofia, com suas indagações e afirmações, aqui é ancilla theologiae [serva da teologia] enquanto concorda com aquilo que Deus teria revelado. Do contrário, suas proposições não passam de bobagem, pois só o Espírito de Cristo é quem revelaria a verdadeira luz.

 

Considerações finais

Para Melanchthon, nos Loci Communes de 1521, a filosofia quando tomada tal como ela é e da maneira como foi utilizada pelos escolásticos, é fautriz de bobagens, ou seja, de interpretações que, no fundo, afastam o ser humano dos benefícios de Cristo. De igual forma, são bobagens porque, no fundo, são frutos da carne e não do espírito. Quando, porém, a filosofia é utilizada na reflexão a partir da revelação da Escritura, demonstra-se como uma serva bastante útil. Assim, o quanto a formação filosófica influenciou Melanchthon já nessa edição dos Loci evidencia-se indiretamente pelo uso que ele faz dos conceitos e da própria metodologia da qual se utiliza. Para Melanchthon, entretanto, já está muito claro que a doutrina protestante da salvação, fundada na fé e na revelação, não pertence ao domínio da razão ou da filosofia. Esta passou de protagonista a auxiliar no esclarecimento de conceitos ou na produção de comentários eruditos a respeito de coisas que lhe são externas.

Quanto ao método utilizado, em edições posteriores dos Loci, Melanchthon sustentaria abertamente que o teólogo, como o cientista, deveria empregar o método esforçando-se por uma disposição clara do material com que trabalha. Assim, se no germinar da Reforma a primeira dogmática protestante foi pensada por seu autor mais como tópicos comuns ou esboços para que a pessoa possa ser conduzida pela própria Escritura, gradativamente estes deram forma a um novo sistema teológico que se valeria, em grau cada vez mais intenso, de metodologia filosófica. Se, nessa sistematização posterior, o juízo e a avaliação das pessoas humanas favoreceu o discernimento das próprias coisas e não apenas de sombras delas, é a pergunta que fica.

 

Notas:

1 O título original da edição de 1521 é: Loci communes rerum theologicarum seu hipotyposes theologicae (Breen, 1947).

2 Como apontou Gross (2017), a obra de Melanchthon é a de um erudito multifacetado e sua reflexão filosófica deve ser vista como uma filosofia teológica (Gross, 2017).

3 A via moderna ou via nova é assim chamada para distinguir-se da via antiga representada pela escolástica aristotélica. A via nova contrapõe-se à visão de uma razão concebida de maneira abstrata. Para seus defensores, diferente do que pensavam os adeptos da via antiga, a razão nunca está completamente livre dos afetos humanos e o ser humano não tem conhecimento de Deus pela razão.

4 Uma das sentenças proferidas foi: “Nos últimos 800 anos a Alemanha esteve mais preparada em matéria de armas do que na ciência” (apud Schuler, 1997, p. 11).

5 Para Reed (1971), na doutrina da justificação somente pela fé Melanchthon teria encontrado resposta aos seus próprios anseios. A conversão de Melanchton teria sido supostamente psicológica. A nova doutrina teria dado para Melanchthon uma certeza, pois na opinião de Reed, para alguém treinado para aceitar ideias clássicas e convicto da necessidade de uma visão uniforme do conhecimento, a certeza seria uma necessidade. A dúvida era o pecado fundamental; a partir dela nada poderia ser alcançado. Assim, a nova teologia teria lhe oferecido o contraponto à dúvida que o escolasticismo promovia.

6 Em suas teses apresentadas em 9 de setembro de 1519 já aparecem algumas das proposições reformatórias clássicas: a incapacidade do ser humano de cumprir a lei e amar a Deus por si mesmo (teses 1-7); a graça de Cristo como justiça imputada (teses 9 e 10); a Escritura como norma e fonte de doutrina acima dos concílios (teses 16-17); a rejeição da transubstanciação na doutrina da ceia (tese 18) (Albrecht, 2013).

7 Para Johannes Haussleiter (1851-1928) “a ligação ‘Lutero e Melanchthon’ significou, enquanto Lutero estava vivo, uma cooperação na qual Lutero era e permaneceu o líder que mandava, Melanchthon era o intérprete que polia as ideias de Lutero, que manifestava os estímulos recebidos de Lutero autonomamente em outras áreas do saber, mas que na teologia, em caso de opiniões divergentes, era mantido dentro dos limites pelos testemunhos doutrinários superiores de Lutero” (apud Junghans, 2001). Nesse fragmento, Haussleiter concebe um Melanchthon seguidor subordinado. Entretanto, Melanchthon tornou-se mais que isso, ele foi um parceiro de diálogo, um colega e amigo. Ambos consideravam um ao outro como ‘instrumento de Deus’ (Junghans, 2001, p. 163).

8 Em 1518, num primeiro encontro entre eles, Melanchthon teria dado a Lutero o cognome de Novo Elias.

9 Lutero chega a dar uma clara prescrição sobre como alguém poderia se tornar um teólogo. Ele recomenda primeiramente a leitura da Bíblia de depois os Loci Communes de Filipe. Para Lutero, se alguém tomasse esses dois passos, nada poderia impedi-lo de ser um teólogo, e nem mesmo o diabo ou algum herege poderia sacudi-lo (LW 54, pp. 439-40). 10 No referido texto, o reformador de Wittenberg ataca o maior humanista alemão da época, Erasmo de Roterdã e sua Diatribe, afirmando que o tema do livre-arbítrio já havia sido esmagado pelo invencível livro de Filipe Melanchthon (Lutero, 1993, p. 17).

11 Citada em latim por Schuler (1997, p. 17). 12 Segundo Reed (1971), um dos fatores porque essa edição dos Loci é importante é, não porque ela seja considerada superior à teologia posterior de Melanchthon, mas porque ela aparece no clímax deste período inicial de tentativa e erro. Assim, a edição de 1521 aponta tanto para o desenvolvimento teológico e filosófico anterior de Melanchthon quanto na direção que se tomaria a partir deles.

13 Outra maneira, mais desejável e confiável, de acessar o conhecimento, segundo Aristóteles, seria através da lógica.

14 Uma explanação mais apurada dessas tradições e como elas se refletem na concepção melanchthoniana de loci pode ser encontrada no artigo de Quirinus Breen (1947) e na tese de Charles William Peterson (2012).

15 Para Platão existem dois tipos de seres, essências espirituais (como as almas) e seres materiais. Cada ser tem seu próprio mundo – o mundo da verdadeira realidade e o mundo das aparências. A verdadeira realidade é, para Platão, o mundo das almas ou o Mundo das Formas; as essências das coisas que vemos ao nosso redor, no mundo das aparências. Assim, se algo acontece neste mundo, deverá ser mais bem verdadeiro no Mundo das Formas.

16 Platão restringe o termo conhecimento ao conhecimento das formas. Para ele, conhecer é conhecer as formas, a verdadeira realidade por detrás do mundo das aparências.

17 O método era utilizado por filósofos gregos na interpretação dos mitos e fábulas de Homero e Hesíodo. Eles buscavam significados sutis escondidos por detrás dos sentidos grosseiros e absurdos acreditando que seus autores pretendiam ensinar alguma verdade mais profunda ou edificante.

18 O método contrasta letra e espírito da mesma maneira como o platonismo em geral contrasta substância e ideia (Lutero e Melanchthon, em princípio, não se opõem a esse contraste). Para Orígenes, o texto bíblico teria quatro níveis de sentidos: o sentido literal, o sentido anagógico, o sentido escatológico e o sentido moral. Esses quatro níveis eram resumidos em uma tricotomia: (a) o corpo do texto – sentido literal; (b) a alma do texto – sentido espiritual; e (c) o espírito do texto – sentido alegórico e cristológico. A forma como é lida a Escritura, para Orígenes e seus adeptos, indicaria o estágio de amadurecimento espiritual e a capacidade intelectual do leitor sendo o sentido literal o menos importante. Dessa forma o alegorizador abandona a interpretação literal sempre que esta parece pouco razoável e concebe os escritos sagrados como fenômenos puramente espirituais ou idealistas (Hägglund, 1999).

19 Em um texto intitulado Lutero visto por um amigo datado de 1546 (poucos meses após a morte de Lutero), Melanchthon cita os dominicanos e franciscanos além de Alberto e os acusa de “dar à doutrina da igreja um cunho filosófico” e de deitar “impurezas nas fontes evangélicas” além de “opiniões que aprovavam idolatria genuína e manifesta” (1983, p. 41). No mesmo texto afirma que Tomás de Aquino, Scotus e outros mestres, na mesma linha, acrescentaram “opiniões errôneas, de modo que teólogos mais sensatos sempre desejaram uma outra forma de doutrina, que fosse mais simples e mais pura” (1983, p. 41).

20 Os tópicos dos Loci refletiam a própria estrutura da carta aos romanos: pecado e lei (Rm 1-3), evangelho, graça, fé e justificação (Rm 2-5, 7-11), os sinais [sacramentos] (Rm 6), amor (Rm 12), magistrados (Rm 13) e escândalo (Rm 14-15) (Albrecht, 2013).

21 Sobre a apropriação teológica do conceito filosófico de afetos, Gross (2017) afirma que essa apropriação acaba por mostrar os limites da filosofia no que diz respeito à compreensão da religião. Para ele, “a filosofia pode chegar até o ponto de se manifestar como uma admoestação à vida ética e aberta à transcendência, como uma rememoração de um estado ideal que não é a realidade existencial de fato […]. Mas ela não tem para Melanchthon a capacidade de produzir a transformação existencial que a fé significa” (Gross, 2017, p. 496).

22 Algumas noções sobre livre-arbítrio mudariam em edições posteriores.

23 Melanchthon se refere à filosofia tradicional de sua época. A filosofia existencial, mais tarde, passaria se ocupar mais e mais da subjetividade ou, na linguagem melanchthoniana, de afetos mais interiores do indivíduo.

 

 

Referências bibliográficas

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Artigo extraído de Revista de Estudos de Religião, ISSN 2179-0019, vol. 8, nº 2, 2017, p. 54-72.

Revisado por Ewerton B. Tokashiki

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