O caráter pastoral dos Cânons de Dordt
Por Rev. Ronald Hanko[1]
Os credos não são populares no mundo da igreja de hoje. Muitas igrejas não os têm e não os terão, e isso reflete a atitude da maioria dos membros da igreja. Se os crentes não se opõem completamente aos credos, então eles estão profundamente desconfiados deles, colocando a culpa de muitos dos males das igrejas nos credos. Mesmo a maioria dessas igrejas que têm uma base formal de credos negligenciaram e deixaram de lado os seus próprios credos, de modo que eles são dificilmente conhecidos e raramente mencionados.
Um argumento comum contra os credos é que os que temos não são úteis. Eles foram escritos, assim é dito, numa época em que a discussão fria e abstrata de pontos doutrinários obscuros era a ordem do dia, mas agora a Igreja progrediu de tal argumentação dogmática para uma atividade real e significativa. Os credos, sugere-se, são cheios de escolasticismo e estão muito distantes do ensino simples e prático das Escrituras e, portanto, são todos inúteis na Igreja de Jesus Cristo.
O estranho é que essa atitude é frequentemente fomentada por aqueles que não querem nada com o ensino prático das Escrituras e dos credos sobre assuntos como mulheres no ofício da igreja, homossexualidade, a guarda do Dia do Senhor, disciplina da igreja e muitos outros assuntos. No entanto, esta atitude encontra solo fértil na ignorância dos credos que é tão difundida, mesmo entre aqueles de origem reformada ou presbiteriana.
Entre muitos grupos dos que subscrevem as “Três Formas de Unidade”, o Catecismo de Heidelberg, a Confissão Belga e os Cânones de Dordt,[2] esta atitude é encontrada especialmente em relação aos Cânones.[3] Eles são, geralmente, considerados “desatualizados”, e que existem poucas pessoas que sabem alguma coisa sobre eles.
Há poucos que sabem que os Cânones de Dordt, em cinco capítulos ou “cabeçários”, defendem e provam a partir da Escritura, os chamados “Cinco Pontos do Calvinismo”.[4] Eles não sabem, portanto, que, em vez de falar de erros que desapareceram da igreja há centenas de anos, os Cânones tratam de maneira séria e bíblica com os mesmos erros que estão perturbando hoje a igreja. Mas talvez a coisa mais surpreendente de todas para aqueles que, em maior ou menor grau, são ignorantes deles, é o fato de que os Cânones, talvez mais do que qualquer outro credo, são deliberados profunda e calorosamente pastorais em sua apresentação dessas grandes verdades da fé cristã.[5]
Quando falamos do caráter pastoral dos Cânones, queremos dizer que eles não apenas estabelecem a sã doutrina, mas que neles essas doutrinas (incluindo as doutrinas de eleição e reprovação) são aplicadas de uma maneira muito prática e pessoal às dificuldades e problemas da vida cristã. Isto é, afinal de contas, o que é o trabalho pastoral – a aplicação particular e pessoal da Palavra de Deus às necessidades do povo de Deus. Os Cânones são realmente um “Manual do Pastor”, e podem ser usados com muito proveito pelos líderes e membros da igreja para lidar com assuntos pastorais.
Uma questão pastoral abordada nos Cânones é a falta de certeza da salvação, muito preocupante para aqueles que buscam tal segurança, e um problema que os ministros do evangelho e dos presbíteros frequentemente enfrentam no aconselhamento pastoral. Os Cânones têm muito a dizer sobre esse assunto, todos de grande ajuda e conforto para os crentes que têm dificuldades com esse assunto. As doutrinas da graça em si são de grande conforto para os crentes em suas lutas, mas os Cânones abordam a questão da segurança de um modo muito mais pessoal e prático, e não somente estabelecendo a verdade de que a salvação é somente da graça.
Eles nos dizem, com base na admoestação de Cristo em Lc 10.20, que o povo de Deus não apenas pode obter a certeza da eleição, perdão e vida eterna (I, 12; V, 9), como rejeita o erro daqueles que ensinam “que nesta vida não há fruto nem consciência da eterna eleição para a glória, nem qualquer certeza” (I, B, 7). Isto é importante como um contraponto ao desencorajador ensino de Roma e de alguns outros protestantes que alegam que uma garantia real de salvação é, ordinariamente, impossível para os crentes. É de fato um consolo àqueles que são atormentados por dúvidas saberem que a segurança não é apenas possível, mas que é um dos dons da graça adquiridos por Cristo ao seu povo.
Os Cânones não esquecem, contudo, que a garantia não é dada a todos na mesma medida (I, 12) e que há sempre alguns “que ainda não experimentaram uma fé viva em Cristo, uma confiança assegurada na alma, e a paz de consciência”, “que ainda não pode alcançar a medida de santidade e fé a que aspiram” (I, 16), e que lutam com várias dúvidas carnais (V, 11). Em tais casos os Cânones falam com conforto. Essas pessoas não devem ficar alarmadas com a menção de reprovação, nem se colocar entre os réprobos, mas devem perseverar no uso dos meios da graça e esperar humildemente por um período de graça mais rica. Eles são lembrados da promessa de um “Deus misericordioso” de que Ele não extinguirá o linho fumegante, nem quebrará a cana ferido (I, 16).
Do mesmo modo, os Cânones nos lembram que esta garantia de salvação não vem numa via de algum tipo de “revelação” extrabíblica, subjetiva, mas sempre através da Palavra de Deus e da obra do Espírito, quando Ele aplica essa Palavra em nós (V, 10, 14). Ao mesmo tempo, os Cânones não nos deixam esquecer que essa segurança está intimamente ligada a uma caminhada santificada, e advertem contra toda a segurança carnal, licenciosidade, presunção precipitada, lascívia irresponsável atribuída à graça da eleição, bem como a recusa teimosa de andar na maneira dos eleitos, como coisas que inevitavelmente danificarão e destruirão a nossa segurança.
Na tentação, dizem os Cânones, nem sempre somos sensíveis à plena certeza da fé, mas não devemos esquecer que Deus, que é o Pai de toda consolação, não nos permite ser tentados além das nossas forças, mas sempre faz um caminho para escapar dela, de modo que somos capazes de suportar. A esta promessa da Escritura, os Cânones acrescentam a lembrança de que, pelo seu Espírito Santo, Deus sempre renova essa “segurança confortável” (V, 11) em seu povo.
No que diz respeito à tentação e ao pecado, os Cânones falam poderosamente à nossa própria experiência. Não somente é possível que o povo de Deus peque e o façam diariamente (V, 2), como também é possível que os crentes quando vigiam e oram sejam negligentes, “sendo atraídos para grandes e abomináveis pecados”. (V, 4). No entanto, estamos certos de que Deus preserva o seu povo para que ele persevere até o fim e não perca a sua salvação. Estamos até mesmo certos de que é impossível para o povo de Deus cometa o “pecado para a morte” (V, 6).
Ao estabelecer essa doutrina da perseverança, os Cânones falam muito calorosa e pastoralmente do fato de que nossos pecados e a possibilidade de cair em pecados graves nos fornecem “um assunto constante para a humilhação diante de Deus e para o refúgio no Cristo crucificado; para a contínua mortificação da carne pelo espírito de oração e pelo santo exercício da piedade” (V, 2). Que Deus preserva e renova o seu povo nas suas “lamentáveis quedas” (V, 4), dizem os Cânones, não produz negligência e orgulho, mas “torna-os muito maior cuidado e diligência para continuar nos caminhos do Senhor … o Deus reconciliado não retira de novo sua face por causa do abuso da sua bondade paternal, pois a reconciliação dela é para os piedosos mais desejável que a vida, e sua retirada mais amarga que a morte, e eles não cairão nos tormentos mais graves da consciência” (V, 13).
Os Cânones, em conexão com a doutrina da eleição, se dirigem a outra questão angustiante, a da salvação dos filhos dos crentes que morrem na infância. Também aqui os Cânones trazem rico conforto, citando 1Co 7.14 e assegurando-nos com base do pacto da graça de Deus, sua aliança familiar, que “os pais piedosos não têm razão para duvidar da eleição e salvação” de tais crianças (I, 17). O que poderia ser mais confortante do que isso à pais piedosos que levam um infante para a sepultura, e o que é mais pastoral da parte do ministro ou presbíteros do que trazer-lhes essa confissão da igreja?
Outro assunto “pastoral” abordado nos cânones é a nossa atitude em relação aos outros, tanto aqueles que fazem uma profissão de fé e vivem “vidas regulares”, como também àqueles que ainda não foram chamados. Eles advertem contra os pecados do orgulho e julgamento (III e IV, 15). Tudo isso está fundamentado na verdade de que “Deus não tem obrigação de conferir graça a ninguém”. “Como pode Ele”, os Cânones perguntam, “estar em dívida com o homem, que não tinha dons prévios para conceder, como fundamento para tal recompensa? Não, quem não tem de si mesmo, nada a não ser pecado e falsidade?” Nós nunca poderemos nos conduzir, portanto, “como se tivéssemos nos diferentes”.
Estes são apenas alguns exemplos. Há outros similares. Os Cânones têm muito a dizer sobre a importância de pregar e ouvir o evangelho como o meio designado por Deus de graça e salvação, cuja negligência é sempre e novamente uma questão de preocupação “pastoral” (I, 3; III e IV, 6 e V, 14), e eles advertem que é “tentar à Deus” separar sua graça dos meios que Ele em sua sabedoria escolheu usar para trazer essa graça ao seu povo.
Assim também, os Cânones advertem aqueles que acreditam nas doutrinas da graça para “regular, pela Escritura … não apenas os seus sentimentos, mas também a sua linguagem, e abster-se de todas aquelas frases que excedam os limites necessários a serem observados conforme determina o senso genuíno das Sagradas Escrituras, e fornece sofistas insolentes com um pretexto justo para atacar violentamente, ou até difamar, a doutrina das igrejas reformadas “(Conclusão). Quão importante, como também pastoral!
Outros exemplos do caráter pastoral dos Cânones podem ser facilmente encontrados, mas o ponto é que eles não são uma declaração fria e escolástica, caracterizada por distinções e abstrações, mas uma exposição muito pessoal e calorosa de algumas das verdades fundamentais da fé cristã, e de grande utilidade na aplicação dessas verdades aos crentes. Eles não estão desatualizados, mas são relevantes para os problemas e provações que enfrentamos todos os dias enquanto lutamos para viver uma vida cristã fiel e piedosa neste mundo.
Há conforto mesmo em saber que é a mesma verdade, exposta e apresentada nas confissões, que edificam hoje a Igreja de Jesus Cristo, bem como há 400 anos atrás. Também há tranquilidade para aqueles que trazem essa Palavra. Eles não estão enfrentando novos problemas, mas problemas que sempre foram encontrados na Igreja, a solução que a Igreja sempre encontrou na santa Palavra de Deus. Sem nossos credos, ou na ignorância deles, temos todos os motivos, quando enfrentamos esses problemas, para sentir que estamos sozinhos e, portanto, também para ter medo. Mas através do conhecimento sólido deles e do seu uso, incluindo os Cânones, estamos em viva conexão com a Igreja de todas as eras, “sendo mais do que vencedores por meio daquele que nos amou” (Rm 8.37).
NOTAS:
[1] Rev. R. Hanko é ministro da Covenant PRC Ballymena, N. Irlanda. Baseado num artigo originalmente publicado na revista The Standard Bearer, vol. LVIII, No. 1, de 1 de Outubro de 1981.
[2] Esses credos pertencem, em geral, àquelas igrejas que se identificam sob o nome de “reformadas”. Eles são os credos adotados pela Covenant Protestant Reformed Church da Irlanda do Norte, e uma cópia gratuita deles pode ser obtida desta congregação (7 Lislunnan Road, Kells, Ballymena, Co. Antrim, Northern Ireland, BT42 3NR; Telefone: 01266-891851; E-mail: 71674.3261 @compuserve.com).
[3] “Cânon” significa “uma declaração oficial” ou “regra” da igreja.
[4] Nas referências aos cânones, “B” refere-se à segunda parte de cada capítulo ou “Princípio de Doutrina”. Esta segunda parte de cada capítulo é uma “Rejeição de Erros”, na qual várias negações dos Cinco Pontos do Calvinismo são apontadas e refutadas da Escritura.
[5] É triste que os Cânones sejam tão pouco conhecidos e apreciados, porque dentre todos os credos da Reforma eles se aproximam mais de ser um credo que pertence a todas as igrejas Reformadas e Presbiterianas. Embora seja um credo oficial das Igrejas Reformadas Holandesas, eles foram escritos e subscritos num Sínodo (realizado na cidade de Dordt) com a participação de delegados da Holanda, Grã-Bretanha, França, Suíça e Alemanha.
Acessado de https://spindleworks.com/library/brj/brj_nov_99_pastor.htm
Traduzido por Ewerton B. Tokashiki
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