Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 11

B. A Criação do Homem foi conforme o Sábio Conselho da Trindade

A questão: quem é homem?, contém um mistério que não pode ser explicado pelo próprio homem. –  Herman Dooyeweerd (1894-1977).[1]

O Salmo 8 exalta a majestade do nome de Deus manifesta na Criação. Aliás, a majestade de Deus e o seu nome, são aqui, poeticamente sinônimos[2] (Sl 8.1). É um hino que de forma analítica, por meio da Criação e do homem em especial, dignifica a majestade de Deus. Este salmo em sua brevidade e simplicidade lírica,[3] “é um hino à glória de Deus criador”.[4]

É possível que Davi tenha composto este Salmo na juventude, quando era apenas um pastor de ovelhas, quando as suas lutas eram bastante complexas na simplicidade de sua vida.[5] Nesta fase, ele, certamente passava muitas noites dormindo ao relento, contemplando as estrelas no firmamento e refletindo sobre o poder de Deus. Esta mesma fé amadurecida pelas experiências com o Senhor o acompanhará.

Outra ocasião provável é quando, um pouco mais maduro e já ungido rei,[6] é foragido de Saul que queria matá-lo. Neste período teve oportunidade, ainda que com o coração angustiado, de experimentar a mesma sensação de ver e refletir sobre a imensidão do céu diante dos seus olhos: “Ó Senhor, Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois expuseste nos céus a tua majestade. (…) 3Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste” (Sl 8.1,3).

O salmista, à noite, tendo o céu estrelado diante de si, contempla parte da criação e exulta demonstrando que em toda a terra o nome de Deus é exaltado. Ele ultrapassa a visão apenas local de Israel, para reconhecer que o testemunho de Deus na Criação se estende a toda a terra (Sl 8.1). “O mundo foi originalmente criado para este propósito, que todas as partes dele se destinem à felicidade do homem como seu grande objeto”, interpreta Calvino.[7]

O salmista percebe que este reconhecimento da majestade de Deus só se tornou possível pela revelação de Deus na Criação: “Pois expuseste nos céus a tua majestade” (Sl 8.1). É Deus mesmo quem sempre inicia o processo e os meios de comunicação entre Ele e nós. A sua comunicação é sempre um ato de graça. Após a Queda, envolve também a sua misericórdia uma vez que ela é uma manifestação da bondade de Deus para com aqueles que estão em miséria.[8]

Davi ciente de que a Criação não é uma mera extensão da essência de Deus,[9] não se detém na Criação, antes, vai além, reconhecendo a glória de Deus nela.[10]

Argumentando de forma espacialmente dedutiva,[11] faz uma pergunta retórica: “Que é o homem, que dele te lembres? E o filho do homem, que o visites?” (Sl 8.4).

Davi parte de um princípio óbvio para nós cristãos: Deus é o Criador do universo e também do homem. Esta dimensão jamais alcançada pela filosofia grega nos oferece uma cosmovisão diferente: o homem criado por Deus não é um mero detalhe fruto de um processo cósmico-evolutivo, antes é uma criação especial de Deus.[12]

Assim mesmo, a sensação é de pequenez diante do vasto universo onde posso contemplar, ainda hoje, uma minúscula parte. O sistema solar é apenas um pequeno ponto no universo que apenas conhecemos limitadamente. E, mesmo assim, a Terra, o minúsculo planeta onde vivemos, é o centro significativo do universo, como acentua Bavinck (1854-1921):

A Escritura nos fala pouco sobre a criação dos céus e dos anjos, limitando-se primariamente à Terra. Em um sentido astronômico a Terra pode ser pequena e insignificante. Em matéria de massa e peso ela pode ser excedida por centenas de planetas, sóis e estrelas. Mas em um sentido religioso e moral ela é o centro do universo. A Terra e somente a Terra foi escolhida para ser a morada do homem. Ela foi escolhida para ser a arena na qual a grande batalha será travada contra as forças do mal. Ela foi escolhida para ser o lugar do estabelecimento do reino dos céus.[13]

No entanto, até onde a ciência pode ir não há nada mais complexo do que o cérebro humano[14] ainda que ele não seja o aspecto mais amplo e completo do ser humano criado à imagem de Deus.[15]

Barth (1886-1968), com propriedade, escreveu a respeito do homem, dizendo que “ele não seria homem se não fosse a imagem de Deus. Ele é a imagem de Deus pelo fato de que ele é homem”.[16] O homem revela mais sobre Deus do que toda a criação.

Bavinck (1854-1921), expressa esse conceito de forma quase poética, porém, amplamente bíblica:

A essência da natureza humana é seu ser [criado] à imagem de Deus. Todo o mundo é uma revelação de Deus, um espelho de seus atributos e perfeições. Toda criatura, ao seu próprio modo e grau, é a incorporação de um pensamento divino. Mas, entre as criaturas, apenas o ser humano é a imagem de Deus, a mais exaltada e mais rica autorrevelação de Deus e, consequentemente, a cabeça e a coroa de toda a criação, a imago Dei e o epítome da natureza.[17]

Embora todas as criaturas exibam vestígios de Deus, somente o ser humano é a imagem de Deus. Ele inteiro é essa imagem, alma e corpo, em suas faculdades e capacidades, em todas as condições e relações. O ser humano é a imagem de Deus porque, e na medida em que, é verdadeiramente humano; e é verdadeiro e essencialmente humano porque, e na medida em que, é a imagem de Deus.[18]

          Aqui, vemos de forma refletida o paradoxo da existência humana: grandeza e limitação; finitude e transcendência; prodigialidade e animalidade. A ciência esbarra sempre na questão enfatizada por Blaise Pascal,[19] detectada por Bavinck: “A ciência não pode explicar essa contradição no homem. Ela reconhece apenas sua grandeza e não sua miséria, ou apenas sua miséria, e não sua grandeza”.[20]

Sem a Palavra de Deus nenhuma ciência ou mesmo a arte, nem mesmo a junção de todas as ciências e o idealismo da arte conseguem apresentar um quadro completo do significado do homem e da vida.

Somente por meio da revelação de Deus, o nosso Criador, podemos ter uma visão clara e abrangente do significado da vida, do homem, do tempo e da eternidade. Somente a cosmovisão cristã tem algo a dizer de forma compreensiva e significativa a respeito da totalidade da vida.[21] É por isso que somente a partir de uma visão real do Deus das Escrituras que nos leve a honrá-lo, poderemos ter um enfoque correto da realidade.[22]

Séculos depois de Davi, encontramos admiração semelhante entre os gregos. Todavia, a admiração dos gregos, ao contemplar o universo, os conduziu em outra direção. Na realidade, eles suprimiram a revelação. Por isso, em suas reflexões surgem as explicações a respeito da origem da vida. Eles diziam que a admiração conduz o homem à filosofia.

Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) estão acordes neste ponto. Platão escreveu: “A admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia”.[23]

Aristóteles, na mesma linha:

Foi, com efeito, pela admiração que os homens, assim hoje como no começo, foram levados a filosofar, sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias, e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores: por exemplo, as mudanças da Lua, as do Sol e dos astros e a gênese do universo.[24]

Nestas reflexões surgem as explicações a respeito da origem da vida. É o que veremos no próximo post.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] Herman Dooyeweerd, No Crepúsculo do Pensamento, São Paulo: Hagnos, 2010, p. 248.

[2] Cf. Peter C. Craigie, Psalms 1-50, 2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v. 19), 2004, (Sl 8), p. 107.

[3] Veja-se: C.S. Lewis, Reflections on the Psalms, San Diego: Harvest Book Harcourt, 1986, p. 132.

[4]Artur Weiser, Os Salmos, São Paulo: Paulus, 1994, p. 98. Veja-se também: James M. Boice, Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 8), p. 67; Anthony Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 30-32. Para uma visão panorâmica das interpretações deste Salmo ao longo da história, veja-se: Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erica Moore, The Psalms as Christian Worship: A Historical Commentary: A Historical Commentary, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 2010, p. 234-254.

[5]32 Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá e pelejará contra o filisteu. 33 Porém Saul disse a Davi: Contra o filisteu não poderás ir para pelejar com ele; pois tu és ainda moço, e ele, guerreiro desde a sua mocidade. 34 Respondeu Davi a Saul: Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai; quando veio um leão ou um urso e tomou um cordeiro do rebanho, 35 eu saí após ele, e o feri, e livrei o cordeiro da sua boca; levantando-se ele contra mim, agarrei-o pela barba, e o feri, e o matei. 36 O teu servo matou tanto o leão como o urso; este incircunciso filisteu será como um deles, porquanto afrontou os exércitos do Deus vivo. 37 Disse mais Davi: O Senhor me livrou das garras do leão e das do urso; ele me livrará das mãos deste filisteu. Então, disse Saul a Davi: Vai-te, e o Senhor seja contigo” (1Sm 16.32-37).

[6]Veja a argumentação de Keil e Delitzsch em favor da redação do Salmo após a unção de Davi (C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, MI: Eerdmans, (1871), v. 5, (I/III), (Sl 8), p. 148).

[7]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.6), p. 172.

[8]Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 219. “Misericórdia é o princípio eterno da natureza de Deus que o leva a buscar o bem temporal e a salvação eterna dos que se opuseram à vontade dele, mesmo a custo do sacrifício próprio” (Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 1, p. 431).

[9] Veja-se: Francis A. Schaeffer, Poluição e Morte do Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 35.

[10] Ver também: Artur Weiser, Os Salmos, São Paulo: Paulus, 1994, p. 98.

[11] “Nem mesmo o mundo todo pode ter o mesmo valor de um homem” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, p. 19).

[12][12] Veja-se: Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos homens e do mundo, Brasília, DF.: Monergismo, 2013, p. 90.

[13] Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP, 2001, p. 187.

[14] “Não há outra estrela ou planeta no universo cuja importância para Deus se compare à da Terra. O próprio homem, no sentido biológico, é infinitamente mais complexo do que as estrelas. É absurdo apequenar o homem só por causa de seu tamanho. Embora grande, uma estrela é muito simples, composta em sua maior parte de hidrogênio e hélio. A medida do significado no universo não é o tamanho, mas a ordem e a complexidade, e o cérebro humano, até onde a ciência pode determinar, é, de longe, o mais complexo agregado de matéria do universo. Em sentido estritamente físico, a Terra é o mais complexo agregado de matéria inanimada que conhecemos no universo, e se destina exclusivamente a servir de lar para o homem” (Henry M. Morris, Amostra de Salmos, Miami: Editora Vida, 1986, p. 21-22). “Os seres humanos são infinitamente mais complexos do que processos físicos, químicos e biológicos. A partir de uma perspectiva teísta cristã, pode-se afirmar também essa complexidade em virtude do fato de que as pessoas são criadas à própria imagem de Deus. Cada pessoa é única, e as exceções podem ser citadas para qualquer paradigma ou modelo” (Robert W. Pazmiño, Temas Fundamentais da Educação Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 13).

[15] “O homem que por meio de sua mente pode pensar o universo, descobrir suas leis, e estimar sua extensão, é maior do que o universo. (…) A verdadeira grandeza do homem não é sua razão, pela qual aprende a conhecer, mas consiste no fato de que foi feito para a comunhão com Deus e com os demais indivíduos” (Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, v. 2, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 100).

[16] Karl Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, III/1, p. 184. Igualmente, Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 628.

[17]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 540.

[18]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 564. De semelhante modo, escreveu Grudem: “É provável que fiquemos surpresos ao descobrir que quando o Criador do universo quis fazer algo ‘à sua imagem’, algo mais semelhante a si do que todo o resto da criação, Ele nos criou. Essa descoberta nos dá um profundo senso de dignidade e importância, pois passamos a refletir sobre a excelência de todo o restante da criação divina: o universo estrelado, a terra abundante, o mundo das plantas e dos animais e os reinos dos anjos são admiráveis, magníficos mesmo. Mas nós somos mais semelhantes ao nosso Criador do que qualquer dessas coisas. Somos a culminância da obra criadora infinitamente sábia e hábil de Deus” (Wayne Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 370).

[19] “É perigoso fazer ver demais ao homem quanto ele é igual aos animais, sem lhe mostrar a sua grandeza. É ainda perigoso fazer-lhe ver demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É ainda mais perigoso deixá-lo ignorar uma e outra. Mas é muito vantajoso representar-lhe ambas” (Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores, v. 16), VI.418. p. 139).

[20]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 24.

[21] Vejam-se: Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 19; Cornelius Van Til, Apologética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 21.

[22] “Se nos recusarmos a honrar a Deus como Deus, toda nossa visão sobre a vida e o mundo torna-se distorcida” (R.C. Sproul, A Santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 206).

[23]Apud Platão, Teeteto, 155d: In: Teeteto-Crátilo, 2. ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, p. 20.

[24] Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.2. p. 214.

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