Tentando pensar e viver como um Reformado: Reflexões de um estrangeiro residente – Parte 24
F. A Origem, Autoridade e Suficiência das Escrituras (Continuação)
1) A Autoridade das Escrituras
Inspiração é o nome da operação totalmente completa do Espírito Santo mediante a qual Ele concedeu à Igreja uma Escritura completa e infalível; − A. Kuyper.[1]
A fé cambaleará se a autoridade das Escrituras vacilar. – Agostinho.[2]
Inspiração e inerrância bíblica[3] são verdades fundamentais da fé cristã, das quais depende toda a nossa formulação teológica. Essas verdades permeiam toda a História da Igreja. É pura ingenuidade supor que o ensino destas doutrinas seja algo novo, posterior à Reforma, resultante da Ortodoxia do século XVII[4] ou fruto do “fundamentalismo” do século XX. [5] Na realidade, Jesus Cristo e os apóstolos[6] em nenhum momento sugeriram qualquer “engano”, “equívoco” ou “contradição” nas páginas do Antigo Testamento.
Os Pais da Igreja, os reformadores e os cristãos em geral – inclusive os Católicos[7] até o Vaticano II (1962-1965)[8] – jamais atribuíram à Bíblia qualquer tipo de erro. A Inspiração e a Inerrância das Escrituras são verdades que fazem parte do “Antigo evangelho” proclamado por Jesus Cristo, os apóstolos,[9] os reformadores, François Turretini (1623-1687), Archibald Alexander (1772-1851), Charles Hodge (1797-1878), Archibald A. Hodge (1823-1886), A. Kuyper (1837-1920), B.B. Warfield (1851-1921), H. Bavinck (1854-1921), Louis Berkhof (1873-1957), J.G. Machen (1881-1937), David M. Lloyd-Jones (1899-1981), Boanerges Ribeiro (1919-2003), J.I. Packer (1926-2020), James M. Boice (1938-2000), John MacArthur, e tantos outros.[10]
Um só Autor
Nas Escrituras os profetas e os apóstolos falaram a Palavra de Deus dirigidos pelo Espírito Santo. Por isso, podemos afirmar de antemão, que a Escritura tem apenas um único Autor primário: O Espírito. É isto que queremos dizer quando declaramos, fazendo eco à afirmação de Paulo, de que a Escritura é “inspirada” por Deus.
No Novo Testamento, a palavra é decorrente de uma tradução interpretativa do texto de 2Tm 3.16, que diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus…”. A expressão “inspirada por Deus” provém de um único termo grego, Qeo/pneustoj, que só ocorre aqui. (Não aparece na LXX). Todavia, a tradução que temos (Almeida, Revista e Atualizada), segue aqui a Vulgata, que traduz, “divinitus inspirata”.[11]
A palavra “inspiração” não ocorre no Novo Testamento. Ela só aparece uma única vez no Antigo Testamento: “Mas ninguém diz: Onde está Deus que me fez, que inspira (Hb. }atfn (Nãthan) = “dar”, “conceder”) canções de louvor durante a noite” (Jó 35.10) (ARA).[12]
A palavra Qeo/pneustoj não significa “ins-pirado” mas, sim “ex-pirado”; ou seja, ao invés de soprado para dentro, soprado para fora.
Este adjetivo, comenta Brown (1932-2019),
Não significa qualquer modo específico de inspiração, tal qual alguma forma de ditado divino. Nem sequer dá a entender a suspensão das faculdades cognitivas normais dos autores humanos. Do outro lado, realmente quer dizer algo bem diferente da inspiração poética. É um erro omitir o elemento divino no termo, transmitido por theo (The New English Bible faz assim, ao traduzir a frase; “toda escritura inspirada”).[13] É claro que a expressão não dá a entender que algumas escrituras são inspiradas, enquanto outras não são. Todas as Sagradas Escrituras expressam a mente de Deus; fazem assim, no entanto, com o alvo da sua operação prática na vida.[14]
O que Paulo nos diz é que toda e cada parte da Escritura Sagrada é soprada, exalada por Deus. A ênfase está na procedência divina. Em toda a redação da Escritura Deus esteve “expirando” os autores secundários. Ou, se tomarmos a palavra apenas no sentido passivo, diremos que “Deus em sua revelação é soprado pelas páginas das Escrituras”. Deste modo, podemos dizer que Deus é o Autor e o Conteúdo das Escrituras.
Warfield (1851-1921), em estudo germinal, comentando o texto de 2Tm 3.16, diz:
Numa palavra, o que se declara nesta passagem fundamental é, simplesmente, que as Escrituras são um produto divino, sem qualquer indicação da maneira como Deus operou para as produzir. Não se poderia escolher nenhuma outra expressão que afirmasse, com maior saliência, a produção divina das Escrituras, como esta o faz. (…) Paulo (…) afirma com toda a energia possível, que as Escrituras são o produto de uma operação especificamente divina.[15]
Definição de inspiração
Podemos definir a Inspiração como sendo a influência sobrenatural do Espírito de Deus sobre os homens separados por Ele mesmo, a fim de registrarem de forma inerrante e suficiente toda a vontade de Deus, constituindo este registro na única fonte e norma de todo o conhecimento cristão.[16]
Com isto, estamos dizendo que o Deus que se revelou, esteve “expirando” os homens que Ele mesmo separou para registrarem esta revelação.
A inspiração bíblica garante que seja registrado de forma veraz aquilo que a inspiração profética fazia com respeito à palavra do profeta, para que ela correspondesse literalmente à mente de Deus. Em outras palavras: a Palavra escrita é tão fidedigna quanto a Palavra falada pelos profetas; ambas foram inspiradas por Deus.
Van Groningen (1921-2014), coloca a questão nesses termos:
O Espírito Santo habitou em certos homens, inspirou-os, e assim dirigiu-os que eles, em plena consciência, expressaram-se na sua singular maneira pessoal. O Espírito capacitou homens a conhecer e expressar a verdade de Deus. Ele impediu-os de incluir qualquer coisa que fosse contrária a essa verdade de Deus. Ele também impediu-os de escrever coisas que não eram necessárias. Assim, homens escreveram como homens, mas, ao mesmo tempo, comunicaram a mensagem de Deus, não a do homem.[17]
A Bíblia é o registro infalível da Palavra de Deus. Deus fez com que os seus servos registrassem a sua vontade mediante a Revelação, Inspiração e Iluminação do Espírito; desta forma, o Deus Triúno é o Autor das Escrituras, sendo a Inspiração mais propriamente atribuída ao Espírito. (Cf. 2Sm 23.2; Mt 22.43; At 1.16; 4.24-26; 28.25; Hb 3.7-11; 9.6-8; 10.15-17; 1Pe 1.10-12[18]/2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21).
Nas Escrituras temos todos os livros que Deus providencialmente quis que fossem escritos e preservados[19] para a nossa edificação.
Nas palavras de Calvino:
Aquelas [epístolas] que o Senhor quis que fossem indispensáveis à sua Igreja, Ele as consagrou por sua providência para que fossem perenemente lembradas. Saibamos, pois, que o que foi deixado nos é suficiente, e que sua insignificância não é acidental; senão que o cânon da Escritura, o qual se encontra em nosso poder, foi mantido sob controle através do grandioso conselho de Deus.[20]
Uma visão relapsa desse ponto[21] determina o fracasso teológico e espiritual da Igreja. “Uma compreensão certa da inspiração e da revelação é essencial para se distinguir entre a voz de Deus e a voz do homem”, observa corretamente MacArthur.[22]
É justamente devido ao fato de muitos cristãos terem negado de modo confessional e/ou vivencial a inspiração e inerrância das Escrituras, que tem havido tantas heresias em toda a história do Cristianismo. Esse desvio teológico, acerca destas doutrinas, tem contribuído de forma acentuada, para que os homens não mais discirnam a Palavra de Deus e, por isso, não possam gozar da sua operação eficaz levada a efeito pelo Espírito (Cf. 1Ts 2.13/Jo 17.17), caindo assim, na “rampa escorregadia”[23] da negação de outras doutrinas.
Entendo, ainda, que qualquer diálogo teológico produtivo deve começar tendo a inerrância bíblica como um pressuposto essencial. Fora disso, sinceramente, não creio que possa haver um colóquio satisfatório, edificante e esclarecedor. Comecemos pois, pela Inspiração e Inerrância das Escrituras, entendendo que a Inerrância e a Infalibilidade da Bíblia são decorrentes da sua Inspiração.
2) A Origem Divina e Humana das Escrituras
Por mais bela que seja a Bíblia considerada literariamente,[24] sendo o livro de maior influência na formação na mentalidade ocidental, a sua origem está em Deus que falou por intermédio de homens que Ele mesmo separou para registrar a sua Palavra.
Sabemos que a questão do caráter humano das Escrituras não é algo acidental ou periférico: os homens escolhidos por Deus para registrarem as Escrituras eram pessoas de carne e osso como nós, com personalidades diferentes, que viveram em determinado período histórico, enfrentando problemas específicos, dispondo de determinados conhecimentos, etc.[25] Aqui, sabe-se que não há lugar para nenhum docetismo:[26] Os autores secundários (humanos) tiveram um papel passivo e um papel ativo no registro da Escritura.[27] Vejamos isso.
Papel Passivo
Eles foram inteiramente passivos no sentido de que não interferiram na ação de Deus em se revelar e, também, no fato de que não expressaram a sua natureza pecaminosa. Os escritores foram apenas instrumentos humanos por meio dos quais Deus decretou registrar a sua mensagem (2Pe 1.21; 2Tm 3.16). Eles falaram, todavia, somente à medida em que foram conduzidos pelo Espírito Santo. A Escritura não é maniqueísta: tendo de um lado a Palavra de Deus e, de outro, a palavra dos homens; “exalada por Deus” em toda a sua extensão.[28]
Papel Ativo
Conforme já afirmamos, Deus não anulou a personalidade dos escritores; caso contrário, na Bíblia haveria apenas um único e inconfundível estilo, o estilo do Espírito Santo.
No entanto, quer por meio dos originais, quer por intermédio das traduções, é facilmente percebida a diferença entre os escritos de Moisés, Isaías, Amós, etc. Da mesma forma, são perceptíveis de modo claro as características próprias dos escritos de Paulo e de João, bem como as de Mateus, Marcos e Lucas. Portanto, podemos afirmar que, de certa forma, cada livro da Bíblia é fruto do estilo literário do seu autor humano (autor secundário).
Por isso dentro da inspiração há lugar para assuntos pessoais, como, por exemplo, a Epístola de Paulo a Filemom, e também há espaço para recomendações e preocupações específicas (cf. 1Tm 5.23; 2Tm 4.13).
Palmer (1922-1980), comentando esse assunto, escreve:
Deus permitiu que o amor de Davi pela natureza brilhasse em seus Salmos, que o conhecimento que Paulo tinha da literatura pagã se manifestasse em suas cartas, que os conhecimentos médicos de Lucas caracterizassem seus escritos, que a brusquidão de Marcos aparecesse em seu livro. Tanto é que Paulo escreveu em uma forma lógica, João o fez numa forma mais mística.[29]
Essa compreensão harmoniza-se perfeitamente com a soberania de Deus. Deus decretou e controlou os eventos, proporcionando as condições para que os seus servos se tornassem “naturalmente” aptos para a tarefa que ele mesmo lhes confiaria.[30] Na doutrina da inspiração vemos de forma nítida a providência de Deus, que revela o seu governo sobre todas as coisas.
Os escritores sagrados não foram obrigados a escrever algo que fosse contrário à sua vontade; nem Deus fez com que quem só soubesse o hebraico tivesse de escrever em grego. Deus usou as suas aptidões “naturais” de forma misteriosa, de tal modo que o produto final fosse o registro inerrante da Palavra de Deus e, ao mesmo tempo, houvesse a expressão da individualidade de cada escritor.[31]
Calvino estava convicto de que os profetas não falaram aleatoriamente o que pensavam, antes, “testificaram a verdade de que era a boca do Senhor que falava através deles”.[32]
Ainda que não tenha detalhado esse assunto no que se refere ao processo de inspiração, um conceito fica claro em seus escritos: os autores secundários das Escrituras não foram simplesmente autômatos. Deus se valeu livre e soberanamente de seus conhecimentos e personalidade. Contudo, tudo que foi escrito o foi conforme a vontade de Deus.
Os profetas e apóstolos tiveram em seus corações “gravada a firme certeza da doutrina, de sorte que fossem persuadidos e compreendessem que procedera de Deus o que haviam aprendido”.[33]
Em outro lugar:
Eis aqui o princípio que distingue nossa religião de todas as demais, ou seja: sabemos que Deus nos falou e estamos plenamente convencidos de que os profetas não falaram de si próprios, mas que, como órgãos do Espírito Santo, pronunciaram somente aquilo para o qual foram do céu comissionados a declarar. Todos quantos desejam beneficiar-se das Escrituras devem antes aceitar isto como um princípio estabelecido, a saber: que a lei e os profetas não são ensinos passados adiante ao bel-prazer dos homens ou produzidos pelas mentes humanas como uma fonte, senão que foram ditados pelo Espírito Santo.[34]
Em outro momento, comentando 1Pe 1.11:
Em primeiro lugar, “que estava neles”; e, em segundo lugar, “testificando”; isto é, dando testemunho, expressão que ele usa para notificar que os profetas eram revestidos com o Espírito de conhecimento, e realmente de maneira incomum, como aqueles que foram nossos mestres e testemunhas, e contudo não foram participantes daquela luz que nos é exibida. Ao mesmo tempo, um alto louvor é atribuído a sua doutrina, pois este era o testemunho do Espírito Santo; os pregadores e ministros eram homens, ele, porém, era o mestre. Tampouco declara sem razão que o Espírito de Cristo então governava; e faz do Espírito, enviado do céu, aquele que preside sobre os mestres do evangelho, porquanto mostra que o evangelho vem de Deus, e que as profecias antigas eram ditadas por Cristo.[35]
Puckett argumenta em prol do conceito de Calvino concernente à participação humana no registro das Escrituras:
Os comentários de Calvino, sobre o estilo literário do texto bíblico, refletem sua crença que a mente dos autores humanos permaneciam ativas na produção da escritura. Ele atribui variações de estilos pelo fato de que vários escritores são responsáveis por diferentes porções da Bíblia. Ele rejeita a autoria Paulina da epístola de Hebreus[36] porque ele encontra estilos diferentes entre esta e as epístolas que ele crê serem genuinamente Paulinas.[37]
Numa linha semelhante, resume Crampton:
A visão que Calvino mantinha sobre os autores da Escritura é que o Espírito Santo agiu neles em um caminho orgânico, em acordo com suas próprias personalidades, caráter, temperamentos, dons e talentos. Cada autor escreveu em seu próprio estilo, e todos eles foram movidos pelo Espírito Santo para escreverem a verdade infalível. Realmente cada estilo de autor foi nele mesmo produzido pela providência de Deus.[38]
3) A “insuficiência” das Escrituras?
Durante toda a história da humanidade pós-queda,[39] a Palavra de Deus foi alvo dos mais diversos ataques: entre eles, o mais comum é a suposição de sua falibilidade. No entanto, um ataque mais sutil que também permeou boa parte da História da Igreja, é a concepção ainda que muitas vezes velada, de que as Escrituras não são suficientes para nos dirigir e orientar.
Melanchthon (1497-1560) e Lutero (1483-1546) depararam-se explicitamente com esse problema bem no início da Reforma Protestante. Por volta de 1520, na pequena, porém, próspera e culta cidade alemã de Zwickau – conhecida como a “pérola da Saxônia”[40] –, surgiu um grupo de homens “iluminados”, “movimento fanático”[41] – chamados por Lutero de “profetas de Zwickau”[42] –, que alegava ter revelações especiais vindas diretamente de Deus, entendendo ter sido chamado por Deus para “completar a Reforma”.
A sua religião partia sempre de uma suposta revelação interior do Espírito. Acreditavam que o fim dos tempos estava próximo – os ímpios seriam exterminados –, e que por isso, não era necessário estudar teologia visto que o Espírito estaria inspirando os pobres e ignorantes.
Assim pensando, esses homens diziam:
De que vale aderir assim tão estritamente à Bíblia? A Bíblia! Sempre a Bíblia! Poderá a Bíblia nos fazer sermão? Será suficiente para a nossa instrução? Se Deus tivesse tencionado ensinar-nos, por meio de um livro, não nos teria mandado do céu, uma Bíblia? Somente pelo Espírito é que poderemos ser iluminados. O próprio Deus fala dentro de nós. Deus em pessoa nos revela aquilo que devemos fazer e aquilo que devemos pregar.[43]
Um certo alfaiate, Nícolas Storck, escolheu doze apóstolos e setenta e dois discípulos, declarando que finalmente tinham sido devolvidos à Igreja os profetas e apóstolos.[44] Ele, acompanhado de Marcos Stübner e Marcos Tomás foi a Wittenberg (27/12/1521) – que já enfrentava tumultos liderados por Andreas B. von Carlstadt (c. 1477-1541) e Gabriel Zwilling (c. 1487-1558) –, pregar o que considerava ser a verdadeira religião cristã, contribuindo grandemente para a agitação daquela cidade. Stübner, antigo aluno de Wittenberg, justamente por ter melhor preparo, foi comissionado a representá-los.
Melanchthon que conversou com Stübner, interveio na questão, ainda que timidamente. Storck ( 1525),[45] mais inquieto, logo partiu de Wittenberg. Stübner, ex- aluno de Wittenberg, no entanto, permaneceu, realizando ali um intenso e eficaz trabalho proselitista; “era um momento crítico na história do cristianismo”, sumaria Atkinson (1914-2011).[46] De fato, todas as vezes que o Espírito for separado da Palavra, as esquisitices espirituais se manifestam em proporções inimagináveis e com invencionices infindáveis.[47]
Comentando os problemas suscitados pelos “espiritualistas”, o historiador D’aubigné (1794-1872) conclui: “A Reforma tinha visto surgir do seu próprio seio um inimigo mais tremendo do que papas e imperadores. Ela estava à beira do abismo”.[48]
Isso torna completamente justificável o clamor ouvido em Wittenberg pelo auxílio de Lutero. E Lutero, consciente da necessidade de sua volta, abandonou a segurança de Warteburgo retornando à Wittenberg[49] a fim de colocar a cidade em ordem (1522), o que fez, com firmeza e espírito pastoral.[50] Mais tarde, Lutero escreveria: “Onde, porém, não se anuncia a Palavra, ali a espiritualidade será deteriorada”.[51]
Não nos iludamos, essa forma de misticismo ainda está presente na Igreja e, tem sido extremamente perniciosa para o povo de Deus, acarretando um desvio espiritual e teológico, deslocando o “eixo hermenêutico” da Palavra para a experiência mística, nos afastando assim, da Palavra e, consequentemente, do Deus da Palavra, contribuindo para desviar a igreja de sua unidade na verdade, atributo essencial da igreja.[52] Não podemos abandonar a autoridade da Palavra de Deus para a autoridade de nossa experiência ou, de quem quer que seja, adotando-a como fundamento da teologia e, consequentemente de nossa vida.
O trágico é que justamente aqueles que supõem desfrutarem de maior “intimidade” com Deus, são os que patrocinam o distanciamento da Palavra revelada de Deus. Davi enfatiza: “A intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele dará a conhecer a sua aliança” (Sl 25.14).[53]
Portanto, a nossa intimidade com Deus revela-se em nosso apego à sua Palavra, à sua aliança. Nesse texto, Calvino faz uma aplicação bastante contextualizada:
É uma ímpia e danosa invenção tentar privar o povo comum das Santas Escrituras, sob o pretexto de serem elas um mistério oculto, como se todos os que o temem de coração, seja qual for seu estado e condição em outros aspectos, não fossem expressamente chamados ao conhecimento da aliança de Deus.[54]
Nós somos herdeiros dos princípios bíblicos da Reforma; para nós, como para os Reformadores, a Palavra de Deus é a fonte autoritativa de Deus para o nosso pensar, crer, sentir e agir: A Palavra de Deus nos é suficiente. Sob esta ótica, considerando o Espírito como Autor das Escrituras, estudemos o assunto.
Mais tarde, o teólogo Turretini (1623-1687), combatendo os fanáticos de seu tempo, falando da vocação de modo geral, enfatizou:
Ora, ainda que não duvidemos de que o sopro interno do Espírito concorra nesta vocação, isso não é suficiente, a menos que haja uma manifestação e confirmação externas, seja por uma manifestação de Deus, pessoalmente, ou por uma declaração da vontade divina, anexa a uma concordância da doutrina proposta com a doutrina revelada por Deus em Sua Palavra, para que não seja confundida com as imposturas dos fanáticos que se vangloriam do sopro e revelações divinos.[55]
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010. p. 111.
[2]Sto. Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulus, 2002, (Patrística; 17), I.37, 41b, p. 79.
[3]Sobre este ponto, ver: Hermisten M.P. Costa, Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1998.
[4] Conforme entendia, por exemplo, Karl Barth (1886-1968). (K. Barth, Church Dogmatics, Edinburgh: T. & T. Clark, 1960, I/1, p. 126-128). Também sustentam este ponto Rogers e McKim (Vejam-se: Jack Rogers, Inerrancy: In: Donald W. Musser; Joseph L. Price, eds. A New Handbook of Christian Theology, Nashville: Abingdon Press, 1992, p. 255; Jack Rogers; Donald McKim, Authority of the Bible: An Historical Approach, New York: Harper & Row, 1979, p. 176ss., 273).
[5] Conforme sugere Karen Armstrong (Ver: Karen Armstrong, Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 199).
[6] Veja-se: Edwin A. Blum, The Apostle’s of Scripture: In: Norman L. Geisler, ed. Inerrancy, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1980, p. 39-53.
[7]Mais uma vez encontramos uma descrição objetiva da questão, em George: “No século XVI, a inspiração e a autoridade das Escrituras Sagradas não era um ponto de debate entre católicos e protestantes. Todos os reformadores, até mesmo os radicais, aceitavam a origem divina e o caráter infalível da Bíblia. A questão que surgiu na Reforma foi sobre o modo como a autoridade divinamente comprovada das Escrituras Sagradas estava relacionada à autoridade da igreja e da tradição eclesiástica (católicos romanos), por um lado, e ao poder da experiência pessoal (espiritualistas), pelo outro” (Timothy George, Teologia dos Reformadores, p. 312). (Do mesmo modo, Gleason L. Archer, Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas, São Paulo: Vida, 1997, p. 19).
[8] O Concílio Vaticano II declarou o seguinte: “Deve-se professar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista da nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (Compêndio do Vaticano II, 5. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, (1971), II.3.11. § 179, p. 129). Todavia, Packer observa com acuidade, que essa assertiva “foi redigida com o propósito de funcionar como buraco no dique da inerrância bíblica, e é certamente assim que os teólogos católicos romanos a partir do Vaticano II têm feito uso desta afirmação” (J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 83. Veja-se, por exemplo, De Fraine, Inspiração: In: A. Van Den Born, redator. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1977, seção 4, p. 734.
[9]Richardson (1905-1975), mesmo não compartilhando do conceito de “inerrância”, teve de admitir que “A crença na inspiração total das Escrituras, bem como as próprias Escrituras, herdara-a a Igreja Apostólica do Judaísmo. Nos tempos do Novo Testamento, tanto os judeus da Palestina como em geral os da diáspora achavam que os Profetas e as Escrituras tinham aquela mesma autoridade incondicional que em tempos anteriores somente se dava à Lei (…). Os escritores do Novo Testamento pensavam, como os judeus em geral, nesse assunto da autoridade das Escrituras. Citavam a Bíblia grega, ou Septuaginta, como escritura inspirada: Deus falara pelos seus profetas nas Santas Escrituras, e estas são citadas como sendo a expressão direta do próprio Deus” (Alan Richardson, Apologética Cristã, 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1978. p. 163-164).
[10]Vejam-se: R. Laird Harris, Inspiration and Canonicity of the Scriptures, Greenville: SC. A. Press, 1995, p. 55-64; John H. Gerstner, A Doutrina da Igreja Sobre a Inspiração Bíblica: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 25ss. Para uma visão panorâmica da discussão contemporânea a respeito da autoridade da Bíblia, veja-se: Harvie M. Conn, A Historical Prologue: Inerrancy, Hermeneutic and Westminster: In: Harvie M. Conn, Inerrancy and Hermeneutic, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1990, p. 15-34.
[11] A expressão completa é: “Omnis scriptura divinitus inspirata”.
[12] O verbo é traduzido da mesma forma em BJ. ARC e ACR traduzem mais literalmente, por “dá”
[13] De fato, assim lemos na The New English Bible: New Testament, Great Britain: Oxford University Press, 1961: “Every inspired scripture”. Mesmo equívoco comete ARC. Veja-se: uma boa discussão sobre este ponto In: Edwin A. Blum, The Apostles’ of Scripture: In: Norman L. Geisler, ed. Inerrancy, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1980, p. 45ss.
[14] C. Brown, Escritura: In: O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 103-104. Veja-se a análise da questão In: Homer C. Hoeksema, The Doctrine of Scripture, Grand Rapids, Michigan: Reformed Free Publishing Association, 1990, p. 40ss.
[15] B.B. Warfield, The Inspiration of the Bible: In: The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981, v. 1, p. 79. “Paulo não está apresentando uma nova teoria sobre a inspiração; ele está pronunciando o ponto de vista de Jesus a respeito da Bíblia” (J. Ligon Duncan III, A natureza, os benefícios e os efeitos da Escritura: In: John MacArthur, org., A Palavra inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 93-102], p. 98).
[16] “A inspiração é (…) definida como uma influência sobrenatural exercida sobre os escritores sagrados pelo Espírito de Deus, em virtude do qual a confiabilidade divina é dada aos seus escritos” (B.B. Warfield, A Inspiração e autoridade da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 106).
[17] Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1995, p. 64-65. Veja-se também: J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 78-79.
[18]É muito esclarecedora a interpretação dessa passagem (1Pe 1.10-12) apresentada por Ferguson. Veja-se: Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo e as Sagradas Escrituras: Inerrância e Pneumatologia: In: John F. MacArthur, org., A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 263-281], p. 267-268.
[19] Ver João Calvino, As Institutas, I.8.10-12.
[20]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 3.3), p. 86.
[21] Uma das formas sutis de desviar a nossa atenção deste ponto, é dizer-nos que este assunto não é algo realmente sério. (Veja-se: Gleason L. Archer, Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas, São Paulo: Vida, 1997, p. 30).
[22] John F. MacArthur, Os Carismáticos, São Paulo: Fiel, 1981, p. 19. Veja-se também, J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 76-77.
[23]Vejam-se: J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 76,77,88,89; P.D. Feinberg, Bíblia, Inerrância e infalibilidade da: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1990, v. 1, p. 182-183. Agostinho (354-430), que na questão do Cânon nem sempre foi dos mais lúcidos, raciocina de forma lógica e objetiva na questão da inerrância, dizendo: “Numa autoridade tão alta (i.é, a Escritura), a admitir uma só mentira oficiosa não deixará sobrar uma só passagem daquelas que parecem difíceis para praticar ou crer, que, segundo a mesma regra altamente perniciosa, não possa ser explicada como mentira feita pelo autor deliberadamente para servir a algum propósito…” (Apud J.I. Packer, Confrontando os Conceitos dos Nossos Dias Acerca da Escritura: In: James M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, p. 88). Para Agostinho, ser “canônico”, significa ser verdadeiro. (Santo Agostinho, A Cidade de Deus Contra os Pagãos, 2. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1990, v. 2, XVIII.38. p. 355).
[24]“O Cristianismo é a religião mais literária do mundo. Isso não deveria nos surpreender, visto que o livro sagrado do Cristianismo é uma obra inteiramente literária” (Leland Ryken, A Bíblia como literatura: In: Philip W. Comfort, ed. A Origem da Bíblia, Rio de Janeiro: CPAD, 1998, p. 157). Criswell (1909-2002) escreve: “No Livro Sagrado encontramos romance, como na história de Sara, de Rebeca, de Raquel e de Rute. Encontramos legislação, como nos incomparáveis preceitos de Moisés. Na história dos reis de Israel e de Judá e dos reinos do mundo, encontramos verdadeira história. E nela temos poesia real, como essa contida no lindo Salmo 23; e ainda encontramos provérbios e profecia. Um terço da Bíblia é profecia” (W.A. Criswell, A Bíblia para o Mundo de Hoje, Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1968, p. 32). Quanto à forma sistemática e contínua de Criswell expor as Escrituras e os efeitos colaterais em sua comunidade no Texas, veja-se: Timothy George, Lendo as Escrituras com os reformadores: como a Bíblia assumiu o papel central na Reforma religiosa do século XVI, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 192.
[25]Encontramos uma abordagem útil e esclarecedora deste ponto em: Augustus Nicodemus Lopes, A Bíblia e Seus Intérpretes, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 23-29.
[26]Ver: Robert Laird Harris, Inspiração e Canonicidade da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 96.
[27]Vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 93ss.; Gordon R. Lewis, A Autoria Humana da Escritura Inspirada: In: Norman Geisler, org. A Inerrância Bíblica, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 268-312. (Especialmente, p. 287-312); J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 75-83.
[28] Vejam-se: B.B. Warfield, The Inspiration of the Bible: In: The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981, v. 1, p. 101; Edwin H. Palmer, El Espiritu Santo, Gran Bretaña: El Estandarte de la Verdad, [s.d.], p. 58.
[29] E. Palmer, El Espiritu Santo, p. 59-50.
[30] Ver: Homer C. Hoeksema, The Doctrine of Scripture, p. 80ss.
[31] Ver: B.B. Warfield, The Inspiration of the Bible: In: The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981, v. 1, p. 101.
[32] João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 3.16), p. 262.
[33] João Calvino, As Institutas, I.6.2.
[34] João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 262. Do mesmo modo: João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 29; John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 2 (Preface), p. 14; (Ex 3.1), p. 59; v. 17 (Jo) (Argument), p. 22; João Calvino, As Institutas, III.2.39; IV.8.6). Em outro lugar Calvino diz que os Apóstolos foram “certos e autênticos amanuenses do Espírito Santo” (As Institutas, IV.8.9). No entanto, devemos entender, que Calvino usa esta expressão não para sustentar o “ditado” divino, mas sim, para demonstrar que os Apóstolos não criaram de sua própria imaginação a sua mensagem, antes, a receberam diretamente do Espírito. Ou seja, ele se refere ao resultado do registro, não ao processo em si. Entendia que Moisés escreveu os cinco livros da Lei “não somente sob a orientação do Espírito do Deus, mas porque Deus mesmo os tinha sugerido, falando-lhe com palavras de sua própria boca” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 3, (Ex 31.18), p. 328. A Palavra procede dos “lábios de Deus” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, v. 1/1, (Gn 17.4), p. 446) Vejam-se também: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 10 (Jr 36.28), p. 352; v. 22 (2Pe 1.21), p. 391). Vejam-se uma boa exposição sobre este ponto em: B.B. Warfield, Calvin and Calvinism, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (The Work’s of Benjamin B. Warfield), 2000 (Reprinted), v. 5, p. 63ss.; Edward J. Young, Thy Word Is Truth, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1957, p. 66-67; Wilson Castro Ferreira, Calvino: Vida, Influência e Teologia, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 356-257; David L. Puckett, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press (Columbia series Reformed Theological), 1995, p. 25ss.; Derek Thomas, A Pregação Expositiva: Mantendo os olhos no texto: In: R. Albert Mohler, Jr., Apascenta o meu rebanho: um apaixonado apelo em favor da pregação, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 51. Curiosamente, o Concílio de Trento, na sua quarta sessão (08/04/1546), usa esta expressão para as Escrituras: “Spiritu Sancto dictante” (“Foram ditadas verbalmente por Jesus Cristo ou pelo Espírito Santo”) (http://agnusdei.50webs.com/trento7.htm).(Ver: P. Schaff, The Creeds of Christendom, 6. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Revised and Enlarged), (1931), v. 2, p. 80; Robert Laird Harris, Inspiração e Canonicidade da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 18 e 306; Carl R. Trueman, O Poder da Palavra no presente: A inerrância e a Reforma: In: John F. MacArthur, org., A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 137-148], p. 143; Kenneth S. Kantzer, Calvin and the Holy Scriptures: In: John W. Walvoord, ed. Inspiration and Interpretation, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1957, [p. 115-155], p. 137ss.).
[35]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker, 1996 (Reprinted), v. 22, (1Pe 1.11), p. 39-40.
[36] Já nos Pais da Igreja encontramos uma variedade de opiniões concernentes à sua autoria. Alguns, conforme informa Orígenes – citado por Eusébio –, pensavam que teria sido escrito por Paulo (Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A., (Biblioteca de Autores Cristianos), 1973, VI.25.13. (Ver: III.3.5; III.38.1ss; VI.20.3), Clemente de Roma ou Lucas. (Cf. Eusébio, Eusebio de Cesarea, VI.25.14. (Ver III.38.1ss.).
Erasmo de Roterdã (1466-1536) reviveu, no século XVI, a hipótese de Clemente ter sido o autor de Hebreus. (Cf. Donald Guthrie, New Testament Introduction, 3. ed. (Rev.), Downers Grove, Illinois: Inter-Varsity Press, in one volume, 1970, p. 694). Posição (Clemente ou Lucas) que Calvino (1509-1564) parecia estar disposto a aceitar (Exposição de Hebreos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 13.23), p. 402). Certo era que ele não cria na autoria paulina. (Ibidem, (Introdução), p. 22; Hb 2.3, p. 54, 55; (Hb 11.3), p. 300).
Lutero acreditava que poderia ter sido escrita tardiamente por algum discípulo dos apóstolos. Porém, considera a questão da autoria irrelevante (Martinho Lutero, Prefácio à Epístola aos Hebreus: In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo; Porto Alegre, RS.: Comissão Interluterana de Literatura; Sinodal; Concórdia, 2003, v. 8, p. 152-153).
Clemente de Alexandria (c. 150- c.215) supunha ter sido escrita por Paulo em Hebraico e Lucas a teria traduzido. (Eusébio, Historia Eclesiástica, VI.14.2/III.38.2). S. Tomás de Aquino (1225-1274) também partilhou desta concepção (Cf. F.F. Bruce, La Epistola a Los Hebreos, Michigan: Nueva Creacion, 1987, p. xxxix). Aquino, numa série de sermões pregados sobre o “Credo Apostólico”, em Nápoles (1273), cita Hebreus como sendo de Paulo. (Ver: S. Tomás de Aquino, Exposição Sobre o Credo, São Paulo: Loyola, 1994, p. 17.25). O próprio Orígenes considerava que o estilo da epístola assemelha-se ao de Paulo e a composição parecia de alguém que evocava os seus ensinamentos, como um aluno que anota os escritos de seu mestre (Eusebio, HE, VI.25.13), contudo, sobre quem escreveu a carta, conclui ele, somente Deus sabe a verdade (Eusebio, Eusebio de Cesarea, VI.25.14). (Para uma discussão mais completa desse assunto, veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e Inerrância das Escrituras: Uma Perspectiva Reformada, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2008).
[37]David L. Puckett, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press (Columbia series Reformed Theological), 1995, p. 27.
[38]W. Gary Crampton, What Calvin Says, Maryland: The Trinity Foundation, 1992, p. 23.
[39] “Os ataques contra a Palavra de Deus são tão antigos como a história do homem decaído” (Iain Murray, Como a Escócia perdeu sua firmeza na Palavra: In: John F. MacArthur, org., A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, [p. 149-171], p. 149).
[40]Eric W. Gritsch, Thomas Müntzer: A Tragedy of Errors, Minneapolis: Augsburg Fortress, 1989, p. 19.
[41] Cf. Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Editora Hagnos, 2001, p. 61.
[42] Os principais líderes eram: Nícolas Storck, Marcos Tomás e Marcos Stübner. Tomás Münzer (c. 1490-1525), tornar-se-ia o mais famoso dos que foram influenciados por esse círculo, tendo mais tarde as suas ideias próprias, ainda que fiel aos mesmos princípios. (Veja-se: George H. Williams, La Reforma Radical, México: Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 66ss; Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101). Delumeau (1923-2020) diz que tal grupo considerava a teologia de Lutero do Cristo “doce como mel”, um tanto “efeminada”, contrastando com isso a rudeza da cruz (Jean Delumeau, O Nascimento e Afirmação da Reforma, São Paulo: Pioneira, 1989, p. 101).
[43]Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], v. 3, p. 64. Müntzer (c. 1490-1525) sustentava que os pastores só tinham a letra. Criticou severamente aqueles que não admitiam a revelação contínua. “Esses pastores vilões e traiçoeiros não são úteis para a igreja, mesmo na menor questão. Pois, eles negam a voz do noivo, o que é um sinal verdadeiramente certo de que são um bando de demônios. Como poderiam então ser servos de Deus, portadores de sua palavra, que negam descaradamente com a ousadia de sua prostituta? Pois todos os verdadeiros pastores devem ter revelações, para que tenham certeza de sua causa” (Thomas Müntzer, The Prague Protest: In: Michael G. Baylor, ed. Revelation and Revolution: Basic Writings of Thomas Muntzer, Bethlehem, Pa .: Lehigh University Press, 1993, p. 54-55).
Mais tarde, Calvino escreveria, possivelmente referindo-se aos “libertinos”, também conhecidos como “espirituais”: “Ora, surgiram, em tempos recentes, certos desvairados que, arrogando-se, com extremada presunção, o magistério do Espírito, fazem pouco caso de toda leitura da Bíblia e se riem da simplicidade daqueles que ainda seguem, como eles próprios a chamam, a letra morta e que mata.
“Eu, porém, gostaria de saber deles que tal é esse Espírito de cuja inspiração se transportam a alturas tão sublimadas que ousem desprezar como pueril e rasteiro o ensino das Escrituras? Ora, se respondem que é o Espírito de Cristo, certeza dessa espécie é absurdamente ridícula, se, na realidade, concedem, segundo penso, que os Apóstolos de Cristo e os demais fiéis na Igreja Primitiva não de outro Espírito hão sido iluminados. O fato é que nenhum deles daí aprendeu o menoscabo da Palavra de Deus; ao contrário, cada um foi antes imbuído de maior reverência, como seus escritos o atestam mui luminosamente…..
“… Não é função do Espírito Que nos foi prometido configurar novas e inauditas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante quê sejamos distraídos do ensino do Evangelho já recebido; ao contrário, Sua função é selar-nos na mente aquela própria doutrina que é recomendada através do Evangelho” (J. Calvino, As Institutas, I.9.1). Veja-se também: As Institutas, I.9.2-3.
McNeill (1885-1975) explica que o termo “libertino” foi usado por Calvino para “designar uma seita religiosa que se espalhou na França e na Península Dinamarquesa, a qual, dando ênfase ao Espírito, rejeitava a Lei. Posteriormente, o termo veio a ser aplicado em Genebra, àqueles que se opunham à disciplina, os quais incluíam pessoas que desconsideravam a lei moral e outros, mais motivados politicamente em resistir a Calvino” (John T. McNeill, The History and Character of Calvinism, New York: Oxford University Press, 1954, p. 169).
[44] Cf. J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], v. 3, p. 64-65; Heinrich W. Erbkam, Münzer: In: Philip Schaff, ed. Religious Encyclopaedia: or Dictionary of Biblical, Historical, Doctrinal, and Practical Theology, 3. ed. rev. amp. New York: Funk & Wagnalls Company, 1891, v. 2, p. 1596a).
[45]Como resultado das supostas revelações diretas de Deus, Storck e seus companheiros sustentavam que “dentro de cinco a sete anos os turcos invadiriam a Alemanha e destruiriam os sacerdotes e todos os ímpios. Storck via-se como cabeça de uma nova igreja, designada por Deus para completar a Reforma que Martinho Lutero deixara inacabada” (J.D. Weaver, Profetas de Zwickau: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 3, p. 657). Strock sustentava que o saber e a aprendizagem obstruíam a inspiração divina. Seus seguidores, denominados de Abecedaristas “levaram esta teoria até o ponto de declarar que era preferível nem mesmo ter aprendido o A B C, já que todo o aprendizado humano está baseado no alfabeto, e o conhecimento disso abre as portas para aquilo que é um obstáculo à iluminação”. Esse princípio posteriormente defendido por Carlstadt, que, tendo sido aliado de Lutero, cedeu às invectivas de Storck contra o aprendizado, fechou os seus livros, renunciou ao seu título de Doutor em Teologia, abandonou os estudos das Sagradas Escrituras e buscou pela verdade divina nas bocas daqueles que, sendo homens comuns, eram considerados os mais ignorantes em toda a humanidade” (John H. Blund, ed. Dictionary of Sects, Heresies, Ecclesiastical Parties and Schools of Religious Thought, London: (s. editora), 1874, p. 1). É digno de nota que Carlstadt era um erudito versado em hebraico, grego e latim, com formação tomista, obtendo três doutorados. Foi ele quem presidiu a cerimônia de doutorado em Teologia de Lutero (1512). Quanto ao abandono de seus títulos, devemos lembrar que posteriormente, a fim de ganhar a vida, passou seus últimos anos lecionando hebraico e Antigo Testamento na Universidade de Basileia (Cf. Timothy George, Lendo as Escrituras com os reformadores: como a Bíblia assumiu o papel central na Reforma religiosa do século XVI, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 90-91).
[46]James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p. 254.
[47]Cf. D. Martyn Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 68-69.
[48]J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 71.
[49]Justificando-se com o príncipe o motivo da sua volta, escreveu-lhe no dia de sua chegada a Wittenberg, 7 de março de 1522: “Não são acaso os Wittemberguenses as minhas ovelhas? Não mas teria confiado Deus? E não deveria eu, se necessário, expor-me à morte por causa delas?” (Apud J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 83).
[50]Lutero, iniciando no dia 09/3/1522, pregou oito dias consecutivos em Wittenberg. Veja-se o seu primeiro sermão In: Martinho Lutero, Pelo evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma, Porto Alegre; São Leopoldo, RS.: Concórdia Editora; Editora Sinodal, 1984, p. 153-161. Quanto aos detalhes da sua volta, Vejam-se: J.H. Merle D’aubigné, História da Reforma do Décimo-Sexto Século, v. 3, p. 72ss.; James Atkinson, Lutero e o Nacimiento del Protestantismo, p. 254ss.
[51] Martinho Lutero, Uma Prédica Para que se Mandem os Filhos à Escola (1530): In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1995, v. 5, p. 334.
[52] Veja-se uma abordagem bastante esclarecedora sobre o misticismo, considerando inclusive, o seu aspecto relevante, em: Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 46-77.
[53] MacArthur, em seu longo e abençoado ministério pastoral, dá um testemunho eloquente e terrivelmente assustador: “Quando comecei no ministério, cerca de meio séculos atrás, eu esperava com certeza ter de lidar com investidas contra a Escritura por parte dos descrentes e mundanos. Eu estava preparado para isso. Os descrentes, por definição, rejeitam a verdade da Escritura e resistem à sua autoridade. (…) Mas desde o início do meu ministério até agora tenho testemunhado – e tive de lidar com – onda após onda de ataques contra a Palavra de Deus vindos, na maioria das vezes, de dentro da comunidade evangélica. No decorrer do meu ministério, quase todos os mais perigosos assaltos conta a Escritura que tenho visto têm vindo da parte de professores de seminário, pastores de megaigrejas, charlatães carismáticos da televisão, autores evangélicos populares, “psicólogos cristãos” e bloggers evangélicos extremistas. (…) A Bíblia é tratada como massinha de moldar, espremida e reformada para adaptar-se aos inconstantes interesses da cultura popular” (John MacArthur, A suficiência da Escritura: Salmo 19. In: John F. MacArthur, org. A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 26).
[54] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 25.14), p. 558.
[55] François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 268.
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