O Seminário e a formação de Pastores – Parte 15

Relevante encontro do qual não pôde participar

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556) escreveu a Calvino – bem como a Melanchthon (1497-1560) e a Bullinger (1504-1575) – convidando-o para uma reunião no Palácio de Lambeth[1] com o objetivo de preparar um credo que fosse consensual para as Igrejas Reformadas.[2] Cranmer tinha em vista também, a realização do Concílio de Trento[3] que estava em andamento, estando preocupado de modo especial com a questão da Ceia do Senhor.

Em 1552, Calvino escreve ao Arcebispo de Canterbury (Cantuária), Thomas Cranmer (1489-1556), que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração cristã: “Estando os membros da Igreja divididos, o corpo sangra. Isso me preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa”.[4]

 

Consciência da dificuldade em edificar o povo de Deus

Calvino, por experiência própria, sabia o quão difícil é doutrinar uma igreja e, quantos anos são necessários para fazer este serviço ainda que de modo imperfeito:

A edificação de uma igreja não é uma tarefa tão fácil que se torne possível fazer com que tudo seja imediata e perfeitamente completado. (…) Hoje sabemos pela própria experiência que o que se requer não é o labor de um ou dois anos para levantar as igrejas caídas a uma condição mais ou menos funcional. Aqueles que têm alcançado diligente progresso por muitos anos devem ainda preocupar-se em corrigir muitas coisas.[5]

 

Doenças, conforto e preparo para a eternidade

Em 5 de agosto de 1563, Calvino escreve uma carta à Madame de Coligny (Charlotte de Laval) (1530-1568), esposa do Almirante Coligny (1519-1572), mulher de temperamento forte e bastante comprometida com a sua fé.[6]

Em meio a palavras de conforto e estímulo, se reporta às suas próprias enfermidades e aflições, dizendo que elas além de nos humilhar e evidenciar a nossa fraqueza, podem também servir para nos conduzir a colocar nossos olhos na misericórdia de Deus.

As aflições também “servem para nós como remédios para nos purificar das infecções mundanas e remover o que é supérfluo em nós, e, como são mensageiras da morte, devemos aprender a ter um pé levantado para partir quando aprouver a Deus”.[7]

 

Severidade do Ministério

Tinha profunda consciência da responsabilidade do ministério pastoral e da necessidade de ter um coração totalmente devotado a Cristo.

Devemos estar sujeitos unicamente a Cristo. Ele deve ser nossa única Cabeça. Não devemos desviar-nos sequer um fio de cabelo da doutrina simples do evangelho; tão somente ele deve possuir a mais elevada glória, para que retenha o direito e a autoridade de ser nosso Noivo.[8]

Os que arrastam a Igreja após si, e não a Cristo, se fazem culpados de vilmente violar o matrimônio que deveriam ter honrado. E, quanto maior é honra que Cristo nos confere, fazendo-nos guardiãs de sua esposa, tão mais hedionda será nossa falta de fidelidade, se não nos esforçarmos em manter e defender seu direito.[9]

Cristo não chama seus ministros para o ofício docente a fim de que, conquistando a Igreja, reivindiquem domínio sobre ela, mas para que ele faça uso de seus labores fiéis associando-os consigo. A designação de homens sobre a Igreja é uma distinção grande e sublime, para que representem a pessoa do Filho de Deus. Portanto, assemelham-se aos amigos a quem o noivo conduz a seu lado, para que o acompanhem na celebração das bodas. Mas devemos atentar bem para esta distinção, a saber: que os ministros, sendo cônscios de  sua posição, não se apropriem do que pertence exclusivamente ao noivo.[10]

A despeito desses fatores, a estrutura do pensamento de Calvino tornou-se uma força motriz poderosa para o trabalho missionário.[11]

 

Sigilo quase absoluto

O envio de missionários para outras cidades e países era uma questão delicada para a qual a Companhia de Pastores manteve, enquanto pôde, sigilo absoluto até mesmo do Conselho Municipal.

Os nomes dos missionários eram em geral mantidos em sigilo. A primeira vez[12] que tais nomes são mencionados na Companhia de Pastores de Genebra foi em 22 de abril de 1555. Jehan Vernoul e Jehan Lauvergeat, designados para as igrejas dos vales de Piemonte, atendendo a solicitação de três irmãos que a Companhia enviara, solicitando o auxílio de mais missionários, considerando que a obra do Senhor estava avançando naquela região.[13] Este período é descrito como a “época da semeadura”.[14]             Na ocasião (22.04.1555), há o registro do envio de Jacques Langlois  Tours, para Lausanne e Lyon, onde seria martirizado em 1572.[15]

Outro exemplo: o envio de dois ministros para a missão no Brasil, em resposta ao apelo de Villegagnon,[16] é descrita de forma sumaríssima: O registro simplesmente menciona (25/08/1556) que Pierre Richier († 1580)[17] e M.  Guillaume Charretier (Chartier)[18] foram enviados.[19] A própria correspondência que vinha dos franceses no Brasil para Calvino, recorria a algum de seus pseudônimos.[20]

A partir daí, o registro do trabalho de recrutamento e treinamento de missionários para a França, Itália e toda a Europa, envolvendo o Brasil na América do Sul, se intensificará gradativamente.

Não me comprometa

Mais tarde, em 1557, consciente de que esse trabalho “secreto” não poderia ser mantido indefinidamente, Calvino compareceu pessoalmente ao Conselho municipal e contou sobre o envio de missionários. Não houve maiores problemas mas, o Conselho municipal de forma sagaz, acordou com Calvino fazer vista grossa. Uma espécie de: “não sabemos de nada”. Assim a Companhia pôde continuar o seu trabalho de preparo e envio de missionários, sem que Genebra oficialmente participasse disso, evitando possíveis conflitos diplomáticos.[21] Contudo, a partir de 1562, com o início das guerras religiosas na França, tornou-se necessário omitir novamente os nomes dos missionários.

Em 01 de outubro de 1560, Calvino escreve uma extensa carta ao seu amigo Bullinger (1504-1575).[22] A certa altura diz: Enquanto isso, a verdade do evangelho está avançando. Na Normandia nossos irmãos estão pregando em público, porque nenhuma casa particular é capaz de conter um público de três ou quatro mil pessoas. Há maior liberdade em Poitou, Saintonge, e em toda a Gasconha. Languedoque, Provença e Delfinado há muitos discípulos intrépidos de Cristo.[23]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]Residência oficial em Londres do Arcebispo da Cantuária.

[2]  Cranmer, na carta a Calvino diz: “Como nada mais tende a separar as Igrejas de Deus que as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazmente os une, e fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evangelho, e união em opiniões reconhecidas. Eu tenho frequentemente desejado, e agora desejo que esses homens instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgamento, constituíssem uma assembleia em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando as suas opiniões, eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja…. Nossos adversários estão agora organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devemos nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles, e purificar e propagar a verdadeira doutrina?” (Thomas Cranmer to Calvin, “Letter,” John Calvin Collection, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), 16).

[3]Cranmer era teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já demonstrou amplamente esse fato.

[4] Letters of John Calvin, Selected from the Bonnet Edition, Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1980, p. 132-133.

[5]João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.5), p. 306.

[6]Veja-se: Daniel-Rops, Igreja da Renascença e da Reforma – V. 2,  São Paulo: Quadrante, 1999, p. 175.

[7]John Calvin, To Madame de Coligny, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 655.

[8]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 144.

[9]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 144.

[10] João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 3. 29), p. 143. Veja-se também: João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998 (1Tm 4.16), p. 125.

[11] S.L. Morris, The relation of Calvin and Calvinism to Missions: In: R.E. Magill, ed., Calvin Memorial Addresses, Richimond VA.: Presbyterian Committee of Publication, 1909, p. 133.

[12] Cf. Alister E. McGrath,  A Vida de João Calvino, p. 211.

[13]Acredito que antes disso outros missionários foram enviados sem que seus nomes aparecessem nos Registros. Os próprios três irmãos que pediram ajuda, caso tenham sido enviados pela Companhia,  como suponho que sim, não têm o seu envio registrado. Se eu estiver certo, esse fato contribui em grande parte para que as estatísticas do envio de missionários sejam bastante flexíveis e discrepantes.

[14] Pierre Courthial, A Idade de Ouro do Calvinismo na França: (1533-1633): In: W.S. Reid, ed. Calvino e Sua Influência no Mundo Ocidental, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, [p. 87-109],  p. 89.

[15] Robert-M. Kingdon; J.F. Bergier,  Registres de La Compagnie des Pasteurs de Genève au Temps de Calvin, Tome II, 1553-1564, Genève: Librairie E. Droz, 1962, p. 62-63.  Veja-se : W. de Greef,  The Writings of John Calvin: An Introductory Guide,  Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 73ss.

[16]Cf. Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil,  3. ed. São Paulo: Martins Fontes, (1960), p. 51-52. Léry narra que “Ao receber as suas cartas e ouvir as notícias trazidas, a igreja de Genebra rendeu antes de mais nada graças ao Eterno pela dilatação do reino de Jesus Cristo em país tão longínquo, em terra estranha e entre um povo que ignorava inteiramente o verdadeiro Deus” (p. 51).

[17] Antes de aderir ao protestantismo era monge carmelita e doutor em teologia. Calvino achava que ele tinha algum problema no cérebro (Carta a Farel de 14/02/1558). Carta 2814. In: Herman J. Selderhuis, ed.,  Calvini Opera Database 1.0,  Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 17).

[18] Posteriormente Calvino demonstrou ter dúvida quanto à integridade de Chartier (Carta a Macarius de 15/03/1558). Carta 2833. In: Herman J. Selderhuis, ed.,  Calvini Opera Database 1.0,  Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 17). Macarius (pastor Jean Macard), no entanto, depois de investigar, atesta a fidelidade de Chartier (Cartas de Macarius a Calvino de 21/03/1558 e 27/03/1558). Cartas 2838 e 2841. In: Herman J. Selderhuis, ed.,  Calvini Opera Database 1.0,  Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 17).

[19] Robert-M. Kingdon; J.F. Bergier,  Registres de La Compagnie des Pasteurs de Genève au Temps de Calvin, Tome II, 1553-1564, Genève: Librairie E. Droz, 1962, p. 68.

[20] Vejam-se  Frans L. Schalkwijk, O Brasil na Correspondência de Calvino. In: Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, IX/1 (2004) 101-128. Vejam-se também as explicações a respeito dos pseudônimos e fac-símiles das respectivas assinaturas in: Emile Doumergue, Jean Calvin: Les hommes et les choses de son temps, Lausanne: Georges Bridel & Cie Editerurs, 1899, v. 1,  p. 558-573 (Apêndice nº VIII).

[21] Vejam-se detalhes em Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 211-213.

[22]Bullinger foi amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cerca de 150 obras, entre elas, A Segunda Confissão Helvética (1562-1566).

[23] In: Rudolf Schwarz, ed., Johannes Calvins Lebenswerk in seinen Briefen, Germany: Neukirchener Verlag: 1962, v. 3, p. 1083.

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