O Seminário e a formação de Pastores – Parte 17

Avivamento teológico e missional

Temos aqui um avivamento teológico e missional. Vemos em poucos anos a concretização de um grande projeto desenvolvido entre tantos percalços e desafios. Sem dúvida, muitas vidas foram ceifadas. Mas, o sangue derramado desses mártires de alguma forma passava a correr nas veias de outros e outros irmãos. Afinal, escreve Calvino: “aqueles que desejam evitar perseguições devem renunciar a Cristo”.[1]

Parece-me que, o fervor de uma mente e coração dominados pela Palavra superam em muito as carências e, são mais eficazes do que planejamentos simplesmente cartoriais. No entanto, um planejamento com o mesmo espírito de doação, é maravilhoso. Deus usa os seus servos e prover-lhes os recursos. A direção do Espírito, sem dúvida, é o fundamental!

Considerando a ação de Satanás em exterminar a doutrina da salvação e o nome de Cristo, escreve Calvino a um cristão da  ilha Jersey (c. 1553), localizada no Canal da Mancha, entre a Inglaterra e a França:

Louvamos a Deus por ter inclinado seu coração a tentar, se for possível erigir, por seus próprios meios, uma pequena igreja no lugar onde você reside. E, na verdade, na medida em que os agentes do Diabo lutam com todo tipo de violência para abolir a verdadeira religião, extinguir a doutrina da salvação e apagar o nome de Jesus Cristo, é justíssimo que labutemos de nosso lado para promover o progresso do Evangelho, para que, desta maneira, Deus possa ser servido em pureza, e que as pobres ovelhas que vagueiam possam ser colocadas debaixo da proteção de nosso soberano Pastor a quem todos deveriam se sujeitar. E você sabe que é um sacrifício agradável a Deus favorecer a propagação do Evangelho pelo qual somos iluminados no caminho da salvação, e dedicar nossa vida para honrar aquele que nos resgatou a um preço tão alto a fim de governar em nosso meio.[2]

Calvino acredita fortemente que o método de Deus conduzir seu povo, alcançado pelo poder do Evangelho, é fazer sentir arder em seu coração o desejo de levar esta mensagem de salvação a outros:

Isto nos indica também o método ordinário de congregar uma igreja, isto é, pela voz externa dos homens; pois ainda que Deus conduza a si cada pessoa por uma influência secreta, contudo Ele emprega a agência dos homens a fim de despertar neles uma ansiedade pela salvação dos demais. Por este método, Ele fortalece também sua mútua adesão, e põe em prova sua diligência em receber instrução, quando cada um permite ser ensinado por outros.[3]

A proclamação do Evangelho objetiva glorificar a Deus. Explica Calvino: “O nome de Deus nunca é melhor celebrado do que quando a verdadeira religião é extensamente propagada e quando a Igreja cresce, a qual por essa conta é chamada ‘plantações do Senhor, para que Ele seja glorificado’ [Is 61.3]”.[4]

Por isso,

É nosso dever proclamar a bondade de Deus a cada nação. Enquanto exortamos e encorajamos outros, ao mesmo tempo não devemos ficar sentados no ócio, mas é próprio que sejamos exemplos diante de outros; pois nada pode ser mais absurdo do que ver homens preguiçosos e ociosos, os quais deveriam estar incitando outros homens ao louvor de Deus.[5]

A convicção de Calvino transpira na Academia em seu vigor missionário. Considerando que o reino de Deus envolve todos os povos – Jesus Cristo não foi enviado apenas aos judeus[6] –, a mensagem do Evangelho deve ser anunciada a todos.

Por isso, quando o rei da França, Carlos IX escreve (23.01.1561) uma carta ameaçadora ao Conselho de Genebra a respeito de pregadores Genebrinos que atuavam em cidades francesas, os acusando de sedições, dissenções e perturbação, atrapalhando a paz de seu reino, pedindo que os mesmos fossem chamados de volta, Calvino responde quase que imediatamente (28.01.1561):

Protestamos sinceramente diante de Deus que nunca tentamos enviar pessoas para o seu reino como  sua majestade afirma. (…) De forma que ninguém, com nosso conhecimento e permissão, tem saído daqui para pregar, exceto um único indivíduo que nos pediu, para a cidade de Londres [Nicholas des Gallars (c.1520-1581) [7]].[8]

Admite que pessoas o tem procurado. Quando via que tais homens eram dotados de instrução e piedade, ele os exortava  a “exercitar seus dons onde quer que eles devam ir para o avanço do Evangelho”.[9]

Demonstrando consciência de que a mensagem do Evangelho é verdadeira e que o Senhor nos concedeu, por graça, a honra de anunciá-la, devemos disseminá-la em todos os lugares, “tanto para que Deus seja glorificado, quanto pelo cuidado que têm com todos os homens”.[10]

É o Espírito quem nos capacita a fazê-lo:

A pregação externa da Palavra é por si só infrutífera, a não ser que ela fira mortalmente os réprobos, de modo tal que os faça indesculpáveis diante de Deus. Mas quando a graça secreta do Espírito vivifica [a mente dos réprobos], todos os sentidos inevitavelmente serão afetados de tal maneira que a pessoa se sente preparada a ir aonde quer que Deus a chame. Devemos, pois, orar para que Cristo derrame em nós o mesmo poder do evangelho.[11]

O que Calvino escreveu ao rei, se coaduna com o senso de oportunidade que esposava:

Na primeira parte deste versículo, ele usa uma metáfora bem comum, ao  tomar a palavra “porta” no sentido de oportunidade, pois o Senhor estava abrindo uma “entrada” para ele proclamar o evangelho. Ele qualifica esta porta de “grande”, porque ele poderia ganhar muitas pessoas. Qualifica-a de “oportuna”, porque o Senhor estva abençoando seu trabalho e fazendo seu ensino eficaz pelo poder do seu Espírito. Vemos, pois, que este santo homem divisava a glória de Cristo em toda parte, e não escolhia um lugar que se adequase à sua própria conveniência ou bel-prazer, senão que sua única preocupação era encontrar onde pudesse ser mais útil e onde pudesse servir ao Senhor e pudesse pôr em evidência um maior contingente de seu trabalho.[12] A isto ele acrescenta que de maneira alguma se esquivava das dificuldades, senão que voluntarimente se colocava onde via que a batalha estava para deflagrar mais violentamente e a carga era mais pesada. Ele estava ficando em razão das ameaças de muitos adversários, e porque era ele o mais bem equipado para resistir seus ataques, então sentia-se obrigado a apresentar-se bem preparado e disposto para o início da luta.[13]

Assim como uma porta aberta faz possível  uma entrada, assim também os servos do Senhor fazem progresso quando uma oportunidade se lhes antolha. A porta está fechada quando não há esperança de sucesso. Portanto, quando a porta está fechada, temos que tomar um caminho diferente em vez de nos desgastarmos em esforços vãos para transitarmos por ele; mas, quando uma oportunidade para a edificação se nos antolha, lembremo-nos de que a porta se nos abriu pela mão de Deus  a fim de que proclamemos Cristo naquele lugar, e não recusemos aceitar o generoso convite que Deus assim nos oferece.[14]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 3.12), p. 257. “Tão pronto um crente mostre sinais de zelo por Deus, a ira de todos os ímpios se acende e, mesmo que não tenham suas espadas desembainhadas, arrojam seu veneno, ou criticando, ou caluniando, ou provocando distúrbio de um ou de outro modo. Portanto, ainda que não sofram os mesmos ataques e não se envolvam nas mesmas batalhas, eles têm uma só guerra em comum e jamais viverão totalmente em paz nem isentos de perseguições” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 3.12), p. 258).

[2] Carta de Calvino ao Lord de Jersey (1553?). In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 5 (Letters, Part 2), 1983, p. 453.

[3] John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7/1, (Is 2.3), p. 94.  “Se tivermos alguma humanidade em nós, vendo os homens caminhando para a perdição, (…) não deveríamos ser movidos pela piedade, a resgatar as almas perdidas do inferno, e ensiná-las o caminho da salvação?”  (J. Calvino, Sermão sobre Dt 33.18-19. In: Corpus Reformatorum (v. 57). Ioannis Calvini Opera Quae Supersunt Omnia, Guilielmüs Baum; Edüardüs Cünitz; Edüardüs Reüss, eds., Brunsvigae:  Apud C.A. Sohwetschke et Filium, 1885, v. 29, col. 175).

[4] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 2002, v. 3, (Sl  102.21), p. 581.

[5] John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7/1, (Is 12.5), p. 403.

[6] Cf. John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7/1, (Is 2.4), p. 99. Do mesmo modo: John Calvin Collection,  [CD-ROM],  (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Mq 4.3), p. 101.

[7]Sobre Gallars, veja-se: https://books.google.fr/books?pg=PA5&dq=Nicolas+des+Gallars&ei=-LkRTY-uFJ-nweEi7WBDg&ct=result&id=JvU9AAAAcAAJ#v=onepage&q=Nicolas%20des%20Gallars&f=false (Consulta feita em 28.03.2021).

[8] Carta de Calvino ao Rei da França (28.01.1561). In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 7 (Letters, Part 4), 1983,  p. 168. Meses depois,  em 19 de agosto de 1561, na Dedicatória de seu comentário do Profeta Daniel, Calvino fala de seu esforço por manter a paz  – o que nem sempre tem sido possível –, e, ao mesmo tempo, estimula seus irmãos a não ultrapassarem determinados limites. Escreve: “Mais ainda, é vossa incumbência, amados irmãos, tomar prudente cuidado para que a verdadeira religião possa novamente readquirir uma posição sã; isto é, até onde cada um tiver o poder e a vocação. Não é necessário dizer o quanto tenho lutado para remover toda e qualquer ocasião geradora de tumultos até agora. Clamo aos anjos e a vós para testemunhardes diante do supremo juiz que não é de minha responsabilidade que o progresso do reino de Cristo não tenha sido calmo e inofensivo. De fato, julgo ser em decorrência de meu cuidado que pessoas particulares ainda não passaram dos limites” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 26).

[9] Carta de Calvino ao Rei da França (28.01.1561). In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 7 (Letters, Part 4), 1983,  p. 168.

[10]Carta de Calvino ao Rei da França (28.01.1561). In: Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, eds. Henry Beveridge and Jules Bonnet, Grand Rapids, Mi: Baker Book House, v. 7 (Letters, Part 4), 1983,  p. 169. Comentando Is 2.3, escreveu: “Os piedosos se encheriam com um desejo tão ardente de difundir as doutrinas da religião, que cada um ficaria satisfeito com sua própria vocação, e seu conhecimento pessoal desejaria levar outros consigo. E de fato nada poderia ser mais consistente com a natureza da fé do que aquele receio de levar alguém a desrespeitar a seus irmãos e de manter a luz do conhecimento incubada em seu próprio peito. Quanto maior é a eminência acima dos demais, a qual alguém recebeu de sua vocação, tanto mais diligentemente deve ele labutar para iluminar a outros”  (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7/1, (Is 2.3), p. 94).  “A glória de Deus deve estar, para nós, acima de nossa salvação” (J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.2), p. 301). “Não busquemos nossos próprios interesses, mas antes aquilo que compraz ao Senhor e contribui para promover sua glória” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã,  São Paulo: Novo Século, 2000, p. 30). Pregando em 03.07.1556 sobre Dt 33.18-19, diz: “Quando conhecemos que Deus é nosso Pai, não deveríamos desejar que Ele fosse conhecido como tal por todos? E se nós não temos essa paixão, que todas as criaturas lhe prestem respeito, não seria este um sinal de que a sua glória significa pouco para nós?” (Calvino, Sermão sobre Dt 33.18-19. In: Corpus Reformatorum (v. 57). Ioannis Calvini Opera Quae Supersunt Omnia, Guilielmüs Baum; Edüardüs Cünitz; Edüardüs Reüss, eds., Brunsvigae:  Apud C.A. Sohwetschke et Filium, 1885, v. 29, col. 175).

[11]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.43), p. 79.

[12]“A forma como ele [Davi] fazia isso, ele mostra que era através do zelo pela Igreja de Deus com que sua alma se inflamava. Não só assinalava a causa dos maus tratos que recebia – seu zelo pela casa de Deus -, mas também declara que, qualquer que fosse o tratamento de que imerecidamente fosse alvo, todavia, por assim dizer, esquecendo-se de si mesmo, ele arderia de santo zelo para manter a Igreja, e ao mesmo tempo a glória de Deus, com a qual vive em comunhão indestrutível. (…)

“Davi ignorou a si próprio, e que toda a tristeza que sentia era procedente do santo zelo com que ardia quando via o sacro nome de Deus insultado e ultrajado com horríveis blasfêmias. (…)

“Até que tenhamos aprendido a dar pouco valor a nossa reputação pessoal, jamais seremos inflamados com genuíno zelo em contender pela preservação e avanço dos interesses da glória divina (…)

“Visto que Cristo, em quem resplandece toda a majestade da Deidade, não hesitou a expor-se a todo gênero de afronta para a manutenção da glória de seu Pai, quão vil e ignominioso será se nos reduzirmos a semelhante sorte” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 69.9), p. 21-22).

[13] João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 16.9), p. 504.

[14] João Calvino,  Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 2.12), p. 52.

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