Apontamentos sobre Metodologia, Pesquisa e Ciência – Parte 6

2.1. Documentos e Interpretações (continuação)

 

Isso não significa que a História seja simplesmente “subjetiva”, antes, o que devemos ter sempre diante de nós, é que a nossa interpretação não é “absoluta”, ainda que possa ser “objetiva”.  “As verdades parciais, fragmentárias, não são erros; constituem verdades objetivas, se bem que incompletas”.

Portanto, nem por isso, aquilo que fazemos hoje como historiador é sem valor. É mediante a junção, comparação e superação das interpretações que podemos cada vez mais ter uma visão mais abrangente dos fenômenos históricos, ou melhor: dos acontecimentos e, também, contribuirmos numa esteira infindável para o progresso do conhecimento.[1]

A figura em forma de epigrama atribuída por João de Salisbury (c. 1110-1180)[2] a Bernardo de Chartres (1070-1130),[3] também pode ser utilizada aqui: todo historiador equivale a um anão sobre os ombros de gigantes, se valendo das contribuições de seus predecessores, a fim de poder enxergar um pouco além deles. Por isso, todo  trabalho do historiador de modo formal ou não, sempre passa por uma revisão bibliográfica que, em geral se tornará uma de série de covisões – visões partilhadas − conscientes ou não.

No entanto, não deixa de ser pertinente a recomendação de Hegel (1770-1831) aos seus alunos de filosofia (1816):

As fontes da história da filosofia não são os historiadores, mas os próprios fatos a nós presentes, ou sejam as obras dos filósofos; são estas as verdadeiras e próprias fontes, e quem quiser estudar a sério a história da filosofia deve remontar a elas.[4]

A história é cheia de mistérios. Analisar o passado e prever o futuro, são atividades repletas de riscos, principalmente a segunda. O passado não pode ser idealizado,[5] mas, compreendido. O futuro, humanamente falando, tem a ver, ainda que não exclusivamente, com as nossas construções presentes.[6]

Um esforço honesto e positivo, é-nos fornecido pelo filósofo Schaff (1913-2006):

Um dos poderosos motores da autocrítica científica, que deveria caracterizar em permanência a obra do cientista e ser a garantia da sua vitalidade, é a consciência do condicionamento social e das limitações subjetivas do conhecimento; consciência que, sensível em primeiro lugar sob a sua forma teórica geral, conduz em seguida o cientista a pôr em questão a sua própria obra, a uma reflexão mais sistemática sobre o condicionamento social das suas próprias posições, sobre os limites e as deformações eventuais dos seus próprios pontos de vista sob o efeito do fator subjetivo.[7]

Somos finitos, limitados, tentando entender e sistematizar os fragmentos com os quais nos deparamos e, muitas vezes, faltam-nos mais pedaços do que de fato os temos. “O historiador deve lembrar-se a tempo que é um simples homem e que convém aos mortais pensar como mortais”, resume Marrou (1904-1977).[8]

Por isso, é de grande pertinência, além de fidelidade às nossas fontes, cultivarmos uma humildade epistemológica que não deve ser confundida com agnosticismo. Afinal, o nosso conhecimento é mediato – repleto de preconceitos –,[9] indireto, inferencial e conjetural.[10] Além disso, as nossas teorias devem sempre cultivar o saudável e renovado hábito de se submeter aos fatos. E, um outro ponto dificultoso: somos do presente; nem do passado, nem do futuro. Por si só isso já nos delimita.[11]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa.

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[1]O próprio Burke, passando em revista a contribuição da Escola de Annales, resume: “Da minha perspectiva, a mais importante contribuição do grupo de Annales, incluindo-se as três gerações, foi expandir o campo da história por diversas áreas. O grupo ampliou o território da história, abrangendo áreas inesperadas do comportamento humano e a grupos sociais negligenciados pelos historiadores tradicionais. Essas extensões do território histórico estão vinculadas à descoberta de novas fontes e ao desenvolvimento de novos métodos para explorá-las. Estão também associadas à colaboração com outras ciências, ligadas ao estudo da humanidade, da geografia à linguística, da economia à psicologia. Essa colaboração interdisciplinar manteve-se por mais de sessenta anos, um fenômeno sem precedentes na história das ciências sociais. (…) A historiografia jamais será a mesma” (Peter Burke, A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989, São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991, p. 126-127).

[2] Cf. N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, p. 203. Parece que esta figura também foi empregada por outro teólogo medieval, “que morreu quase 300 anos antes de Lutero nascer….”, Pedro de Blois. (Cf. Timothy George, Teologia dos reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 23). Newton mais tarde (05/02/1676)(ou 1675?) em carta a Robert Hooke (1635-1703) – seu ferrenho adversário (Cf. Paolo Casini, Newton e a Consciência Europeia, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 26ss. Comparar com: Umberto Eco, Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001-2015, Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 22-23) -, supostamente referindo-se a Kepler (1571-1630), Galileu (1564-1643) e Descartes (1596-1650), entre outros, também faria uso desta analogia. (Vejam-se: N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, p. 280; Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. XI, 441. Quanto à tentativa de estabelecer uma genealogia da figura, valendo-se dos trabalhos de Édouard Jeauneau (1924-2019) e Robert Merton (1910-2003) veja-se: Umberto Eco, Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001-2015, Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 11ss. Especialmente, p. 22ss.). Para um estudo mais detalhado, veja-se: Robert K. Merton, A hombros de gigantes: postdata Shandiana, Barcelona: Edicions 62, 1990). Essa edição espanhola, rara e caríssima, está disponível em: https://pdfslide.net/documents/merton-robert-k-a-hombros-de-gigantes.html?h=myslide.es   (Consulta feita em 18.11.2023).

[3]“Bernardo de Chartres dizia que somos como anões sobre os ombros de gigantes, de modo que podemos ver mais longe que eles, não em virtude de nossa estatura ou da acuidade de nossa visão, mas porque, estando sobre seus ombros, estamos acima deles” (Apud  Umberto Eco, Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001-2015, Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 22).

[4]G.W.F. Hegel, Introdução à História da Filosofia, 3. ed. Coimbra: Arménio Amado-Editor, Sucessor, 1974, p. 166. Por outro lado, Hegel sabia da impossibilidade de praticar isso ao pé da letra: “É certo que, por serem muito numerosas, não se pode seguir este único caminho; para muitos filósofos é inevitável termo-nos de servir de outros escritores, e, para alguns períodos, as obras fundamentais dos quais nos não chegaram, por exemplo, para a mais antiga filosofia grega, forçoso é recorrer a historiadores e a outros escritores….” (Ibidem., p. 167).

[5]“O estudo da história da Igreja pode ser um abridor de olhos. Os heróis da fé geralmente têm pés de barro, às vezes pernas, corações e cabeças também. As eras de ouro do passado geralmente revelam-se manchadas se forem examinadas bem de perto. Em torno dos heróis da fé existem muitos vilões e alguns deles se parecem um bocado com os heróis” (Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 20).

[6] Veja-se de forma ilustrativa, C.S. Lewis, Cartas do Inferno, São Paulo: Vida Nova, 1964, p. 160-161.

[7] Adam Schaff, História e Verdade, p. 293.

[8]H.I. Marrou, Do Conhecimento Histórico, p. 51. Veja-se: Adam Schaff, História e Verdade, p. 284.

[9] “Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associados a cor, credo, classe ou sexo, não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular. O relativismo cultural obviamente se aplica, tanto à própria escrita da história, quanto a seus chamados objetos. Nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra” (Peter Burke, Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro: in: Peter Burke, org. A Escrita da História: novas perspectivas, São Paulo: UNESP., 1992, p. 15).

[10]Veja-se: Carlo Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 150.

[11]Veja-se: Edward Hallet Carr, O que é história?,  3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (7ª reimpressão), p. 60-61.

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