Apontamentos sobre Metodologia, Pesquisa e Ciência – Parte 8

2.2. Os Pressupostos e o Método (Continuação)

Minha visão do outro fala muito de mim

Na busca de compreensão e expressão do que percebemos, revelamos no que cremos e, consequentemente, quem somos aos nossos próprios olhos, deixando transparecer, inconsciente e, por vezes, inconsistentemente, quem somos.

 

A.  Maquiavel[1]

No Príncipe, Maquiavel omite, dentro dos limites do possível, tudo que não seria apropriado mencionar na presença de um príncipe. Ele dedicou o Príncipe a um príncipe, porque seu desejo era encontrar um emprego honrado. − Leo Strauss (1899-1973).[2]

Niccolò Machiavelli (1469-1527) é considerado “o fundador do pensamento político moderno”.[3] Todavia, a sua figura e ideias se constituem numa imagem difusa, onde os conceitos históricos são dos mais variados, contribuindo de forma eloquente para uma constatação cada vez mais evidente, de que a análise de Maquiavel e de sua obra é algo extremamente complexo.

Russel (1872-1970) o acha “chocante”, contudo, admite que “muitos outros homens também o seriam, se fossem igualmente livres de hipocrisia”. Por isso, admite que “grande parte da difamação convencional ligada ao seu nome deve-se à indignação dos hipócritas, que odeiam o franco reconhecimento das más ações”.[4]

Entre os conceitos divergentes formulados ao longo da história a respeito de Maquiavel, podemos citar, a título de amostra, o emitido pelo Cardeal-Arcebispo de Cantebury, Reginald Pole (1500-1558) , que declarou que O Príncipe (1513) foi redigido “pela mão do Demônio”.[5]  É bom lembrar que no Concílio de Trento (1545-1563), O Príncipe foi condenado e colocado no Índex.[6]

Em outra vertente, temos o testemunho de Baruch Espinosa (1632-1677), em sua obra publicada postumamente (1677), Tratado Político, onde diz:

Talvez Maquiavel tenha querido, também, mostrar quanto a população se deve defender de entregar o seu bem-estar a um único homem que, se não é fútil ao ponto de se julgar capaz de agradar a todos, deverá constantemente recear qualquer conspiração e, por isso, vê-se obrigado a preocupar-se consigo próprio e, assim, a enganar a população em vez de a salvaguardar. E estou tanto mais disposto a julgar assim acerca deste habilíssimo autor quanto mais se concorda em considerá-lo um partidário constante da liberdade e quanto, sobre a maneira necessária a conservar, ele deu opiniões muito salutares.[7]

Contudo, o testemunho favorável a Maquiavel  mais famoso, é o de Rousseau (1712-1778), no seu Contrato Social (1762), quando  interpreta Maquiavel como  uma sátira que “fingindo dar lições aos reis, deu-as, grandes, aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos”.[8]

Nesta linha, talvez esteja correto Merleau-Ponty (1908-1961) ao declarar: “Maquiavel é o oposto a um maquiavélico, pois descreve as manhas do poder, pois, como se disse, ‘divulga um segredo’”.[9]

Da mesma forma, um contemporâneo nosso, Moreira afirma no mesmo diapasão que “Maquiavel pode e deve ser  considerado como precursor da tradição democrática moderna”.[10]

Particularmente, com a ousadia talvez da ignorância, não compartilho das ideias de Espinosa, Rousseau e Moreira; por outro lado, não vou tão longe como o Cardeal Pole. De qualquer forma, tenho de admitir que O Príncipe é um “tratado de pedagogia”.[11]

Strauss (1899-1973) observa que Maquiavel ao defender de forma pública ideias antigas e amplamente praticadas, teve o seu nome associado a estes ensinamentos:

Maquiavel é o único pensador político cujo nome entrou no uso comum para designar um tipo de política que existe e que seguirá existindo qualquer que seja a sua influência, uma política guiada exclusivamente por considerações de conveniência, que emprega todos os meios, justos ou injustos, o aço ou veneno, para alcançar seus fins – sendo seu fim o engrandecimento da própria pátria –, porém também colocando a pátria ao serviço do engrandecimento do político ou estadista, ou do próprio partido.[12]

Talvez a visão intermediária a respeito de Maquiavel deva prevalecer aqui: Nem  meramente um narrador do que via sendo praticado, nem um demônio estabelecendo padrões de domínio que devam ser rigorosamente seguidos a despeito das necessidades do povo. Mas sim, um homem que descreveu o que viu, alertou-nos quanto a isso mas, que também tinha seus interesses pessoais em suas descrições que, em geral parecem ser normativas.[13]

Maquiavel, no uso do que acredita ser livre arbítrio,  negocia, em tons racionais e místicos, com a Sorte (Fortuna) tentando lidar com a maldade congênita do ser humano[14] e tomar com habilidade – “virtù” – parte do controle de seu destino entendendo que este fim é nobre, portanto, os meios que usar são lícitos. Ele, portanto, rejeita a atitude passiva frente à vida. Ele parte da contemplação à ação.[15]

 

B.  C.S. Lewis

Mudando totalmente o que deve ser mudado, no século XX, C.S. Lewis (1898-1963) em mais uma de suas ficções, cria um personagem demoníaco (1941) que, por meio de cartas infernais (ou seriam celestiais?) ensinando ao demônio mais jovem como solapar com sutileza a igreja, termina por nos mostrar algumas estratégias de Satanás.[16]

Ora, se conseguirmos fazer com que os homens fiquem a formular perguntas assim: ‘isto está em consonância com as tendências gerais dos movimentos contemporâneos? É progressista, ou revolucionário? Obedece à marcha da História?’ então os levamos a negligenciar as questões efetivamente relevantes. E o caso é que as perguntas que assim insistirem em formular são irrespondíveis; visto que não conhecem nada do futuro e o que o futuro haverá de ser dependerá muitíssimo, exatamente, daquelas preferências a propósito das quais buscam socorro do futuro. Como consequência, enquanto suas mentes ficam assim a zumbir nesse verdadeiro vácuo, temos nossa melhor oportunidade de até imiscuir-nos para forçá-los à ação correspondente aos nossos propósitos. A obra já realizada neste sentido é enorme.[17]

 

C.  Jean de Léry

Ao ler o primoroso trabalho de Medeiros,[18] foi-me impossível não traçar estes paralelos: Do sapateiro missionário calvinista Jean de Léry (1534-1611),[19] falando sobre os Tupinambás terminou por descrever aspectos marcantes e vivos em sua mente a respeito do povo francês e das guerras religiosas no século XVI que tanto o angustiavam.[20]

Em sua narrativa, tão admiravelmente objetiva, descortina-nos o ambiente do narrador. É por isso que a plena objetividade é impossível: o que vê, além de ver parcialmente, é um ser subjetivo que percebe a realidade por mediações, a começar pela mais intensa de todas, às quais todas as outras se submetem. Ele é um ser finito e contingente.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]Veja-se: https://cpaj.mackenzie.br/fileadmin/user_upload/3-A-fortuna-e-a-provid%C3%AAncia-Maquiavel-e-Calvino-dois-olhares-sobre-a-hist%C3%B3ria-e-a-vida-Hermisten-Maia-Pereira-da-Costa.pdf (Consulado em 20.11.2023).

[2]Leo Strauss,  Reflexões sobre Maquiavel, São Paulo: É Realizações, 2015, p. 39.

[3] Conal Condren, Marsílio e Maquiavel: In: Ross Fitzgerald, org. Pensadores Políticos Comparados, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1983, [p. 93-109], p. 93 e 100. Abbagnano, o chama de “primeiro escritor político da Idade Média” (Nicola Abbagnano, História da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1984, v. 5, § 345, p. 56).

[4]Bertrand Russel, História da Filosofia Ocidental, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. 1, p. 20.

[5] Cf. Jean-Jacques Chevallier, As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias, 3. ed. Rio de Janeiro; Brasília, DF.: Agir; Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 45.

[6]Cf. Jean-Jacques Chevallier, As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias, 3. ed. Rio de Janeiro; Brasília, DF.: Agir; Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 45; I. Berlin, O Problema de Maquiavel: In: Curso De introdução à Ciência Política, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1982, p. 129. Contudo, como sabemos, não há censura totalmente eficaz; ela sempre tem as suas brechas e ambiguidades. Ao mesmo tempo, a censura, na divulgação de seus livros proibidos, como já o observara Diderot (1763) sarcasticamente, terminava por ser uma espécie de promotora dos mesmos pelo estímulo à curiosidade (Vejam-se: Roger Chartier, Inscrever e Apagar: cultura escrita e literatura, séculos XI-XVIII, São Paulo: Editora UNESP., 2007, Robert Darnton, Edição e Sedução: O universo da literatura clandestina no século XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 15; Peter Burke, Uma História Social do Conhecimento: de Gutenberg a Diderot, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 139).

[7]Baruch Espinosa, Tratado Político, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 17), 1973, I.5.7, p. 329.

[8]J.J. Rousseau, Do contrato social, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 24), 1973, p. 95. Veja-se também, Raymond Aron, Estudos políticos, 2. ed. Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 99ss.;  Quentin Skinner, As fundações do pensamento político moderno,  São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 173-174.

[9]Maurice Merleau-Ponty, Elogio da Filosofia, 2. ed. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, (Coleção Ideia Nova), (1979), p. 76.

[10] Marcílio M. Moreira, O Pensamento Político de Maquiavel: In: Maquiavel, O Príncipe – Estudos, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 113.

[11] Franco Cambi, História da pedagogia, São Paulo: Editora UNESP., 1999, p. 246.

[12]Leo Strauss, Nicolás Maquiavelo: In: Leo Strauss; Joseph Cropsey, compiladores. Historia de la Filosofia Política, México: Fondo de Cultura Económica, © 1993, 1996 (reimpresión), p. 287; Veja-se também: Leo Strauss,  Reflexões sobre Maquiavel, São Paulo: É Realizações, 2015, p. 20ss.). De modo ilustrativo do que foi dito, no Dicionário de Política editado por Bobbio (1909-2004) e outros, no verbete Maquiavelismo, lemos: “…. expressão usada especialmente na linguagem ordinária para indicar um modo de agir, na vida política ou em qualquer outro setor da vida social, falso e sem escrúpulos, implicando o uso da fraude e do engano mais que da violência….” (Sérgio Pistone, Maquiavelismo: In: Norberto Bobbio, et. al. eds. Dicionário de Política, 6. ed. Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1994, v. 2, p. 738). (Veja-se também: Leo Strauss,  Reflexões sobre Maquiavel, São Paulo: É Realizações, 2015).

[13] “O quadro de um Maquiavel cor-de-rosa não é um quadro historicamente verdadeiro. É uma convenção fabulosa tão oposta à verdade histórica como a concepção do ‘diabólico’ Maquiavel” (Ernst Cassirer, O Mito do estado, São Paulo: Códex, 2003, p. 175).

[14] “…. É necessário que quem estabelece a forma de um Estado, e promulga as suas leis, parta do princípio de que todos os homens são maus, estando dispostos a agir com perversidade sempre que haja ocasião. Se esta malvadez se oculta durante um certo tempo, isso se deve a alguma causa desconhecida, que a experiência ainda não desvelou; mas o tempo – conhecido justamente como o pai da verdade – vai manifestá-la. (…) Os homens só fazem o bem quando é necessário; quando cada um tem a liberdade de agir com abandono e licença, a confusão e a desordem não tardam a se manifestar por toda parte” (N. Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, (Coleção Pensamento Político, v. 3), 1979, I.3. p. 29).

[15]Michel-Pierre Edmond, Maquiavel. In: F. Châtelet; O. Duhamel; E. Pisier, (Coords.). Dicionário de Obras Políticas, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p. 759-760.

[16] C.S. Lewis, Cartas do Inferno, São Paulo: Vida Nova, 1964.

[17] C.S. Lewis, Cartas do Inferno, São Paulo: Vida Nova, 1964, p. 160-161.

[18]Christian Brially T. de Medeiros, Jean de Léry e a Escrita da História: Uma heterologia calvinista, São Bernardo do Campo, SP. Tese de Doutorado em Ciências da Religião na UMESP (2012).

[19] Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, (1951).

[20]Veja-se: Paul Gaffarel, Notícias Biográficas. In: Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, 2. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, (1951), p. 11-17.

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