Apontamentos sobre Metodologia, Pesquisa e Ciência – Parte 9

2.2. Os Pressupostos e o Método (Continuação)

                            D. Meu mundo e tudo mais

 

Eu queria tanto

Estar no escuro do meu quarto

À meia-noite, à meia luz

Sonhando!

Daria tudo, por meu mundo

E nada mais – Guilherme Arantes[1]

As pessoas agem de acordo com a sua visão de mundo. (…) De maneira que pensa, um homem é. ‒ Francis Schaeffer (1912-1984).[2]

Vivemos a nossa cosmovisão ou ela não é a nossa cosmovisão” – James W. Sire (1933-2018).[3]

Sem preconceitos não se pode formar juízos. Nos preconceitos, e somente neles, encontramos os elementos para julgar. Lógica, ética e estética são literalmente três preconceitos, graças aos quais o homem se mantém flutuando sobre a superfície da zoologia, e libertando-se no lacustre artifício, vai lavrando a cultura liberrimamente, racionalmente, sem intervenção de substâncias místicas nem outras revelações que a revelação positiva, sugerida ao homem de hoje pelo que foi feito pelo homem de ontem. Os preconceitos iniciais dos pais servem como uma purificação de juízos que produzem os preconceitos para a geração dos filhos, e assim em denso crescimento, em estreita solidariedade no decorrer da história. Sem essa condensação tradicional dos preconceitos não há cultura. – Ortega y Gasset (1883-1955).[4]

Qual é a matriz de nosso pensamento? Queiramos ou não, gostemos ou não, temos matrizes que conferem determinado sentido à realidade por ela ser percebida como tal.

 

Esse pecado que não me deixa nem enquanto pesquiso

A realidade é o que é. No entanto, nós a percebemos mediante contornos conferidos e mediados por nossa experiência, sob à égide de nossa limitação, tendo um ingrediente fundamental que nunca devemos esquecer; o pecado, que é um fator que marca todas as nossas compreensões e ações. O pecado não é um instrumental do qual posso me valer ou abandonar. Após a queda, ele está em mim de forma intrínseca. Ela não deixa de estar nem mesmo quando falo sobre ele como agora.

Dito isso, continuemos observando outras questões menores e decorrentes.

 

Lugar social e epistemologia

O nosso lugar social privilegia a nossa percepção. O que nos privilegia também nos delimita. A proximidade do objeto nos confere a observação de certas particularidades, porém, certamente perdemos aspectos de sua abrangência.

A distância, por sua vez, pode nos oferecer um quadro mais amplo, porém, determinadas particularidades se tornam mais difíceis de serem percebidas.

Uma visão conjunta, considerando as visões diferentes e complementares de pessoas, lugares e épocas diferentes, ainda que não esgotem o fenômeno, podem nos ajudar a obter uma compreensão mais rica e completa.[5]  Contudo, permanece o fato: Não somos oniscientes. Conhecemos por mediações que conjugadas ampliam a nossa visão, minimizam os erros e omissões, porém, são mediações que também são limitadas. Somente Deus conhece toda a realidade de forma mediata porque tudo lhe é derivado; nada tem existência própria e independente da manutenção de Deus.

No que acreditamos, de certa forma, determina a construção de nossa identidade. Isso é válido dentro de uma perspectiva tanto cultural como individual. Cada época é caracterizada por determinadas crenças as quais moldam a sua visão de mundo.[6]

O fato que nos parece contundente, é que todos temos a nossa filosofia, adequada ou, não, de vida.[7] Essa filosofia é a nossa cosmovisão.[8] É essa cosmovisão que nos permite ser como somos, e fornece elementos de padronização para a nossa cultura por meio de nossa assimilação e exteriorização.

Schaeffer (1912-1984) está correto ao declarar que “as ideias nunca são neutras ou abstratas. Têm consequências na maneira como vivemos e agimos em nossa vida pessoal e na cultura como um todo”.[9]

Cosmovisão é algo inescapável ao ser humano. Todos a temos.[10] Por sua vez, toda cosmovisão, consciente ou não, tem uma matriz ontológica que traz consequências epistemológicas que são determinantes para a nossa vida e conduta.

A nossa forma de aproximação do objeto já indica onde estamos. Em certa ocasião, vi parte de um filme no qual o criminoso foi fotografado enquanto assassinava sua vítima. Quando o fotógrafo o procurou com a prova de seu crime, o assassino observando o ângulo da foto, lhe disse em qual prédio e andar ele estava, no momento do clique. Digamos assim: vemos o que vemos e como vemos pelo andar e janela onde nos encontramos. A partir daí, podemos até dizer em que tipo de construção intelectual estamos abrigados. O fato é que não dispomos de todos os ângulos. E, mesmo que tivéssemos, há um ser subjetivo que examina. Este é mais ângulo.

Todo conhecimento parte de um pré-conhecimento que é-nos fornecido pela nossa condição ontologicamente finita e pelas circunstâncias temporais, geográficas, intelectuais e sociais dentro das quais construímos as nossas estruturas de conhecimento. Afinal, a humanidade atesta a sua humanidade. A criatura demonstra a sua condição. Não existe neutralidade existencial nem epistemológica[11] porque, de fato, não há neutralidade ontológica.[12]

Esta realidade pré-julgadora na maioria das vezes nos é imperceptível. O que pensamos determina a nossa visão e compreensão do objeto. Numa relação de conhecimento, o cérebro influencia mais o olho do que o olho ao cérebro. É por isso que a visão que tenho, ainda que tenha um forte elemento referente, é minha visão, com suas particularidades.[13]

Só existe possibilidade de conhecimento porque, entre outras coisas, antes de percebermos, há um objeto referente que, por existir, possibilita o conhecer. Desse modo, o ser antecede ao sujeito que conhece e, portanto, ao próprio conhecer.

 

Deus: Ser e Conhecer

Somente em Deus, há a perfeita harmonia e coexistência entre o ser e o conhecer. Em Deus, unicamente, e de forma objetiva, o conhecer antecede ao ser visto que quando Deus cria, Ele o faz de forma perfeita e exata como viu e determinou que faria no “tempo” determinado por Ele. Em Deus há uma relação perfeita entre determinação e execução. Após a criação do ser, a relação passa a ser concomitante: ser-conhecer.

Somente Deus que é tudo em si e de si mesmo (a se), e independente de todas as coisas (“asseidade”) − é o autotheós e autopoderoso (Ex 3.14) −, pode mudar a essência das coisas.

Nós lidamos com experiências do existir mudando, adaptando e transformando aspectos da realidade conforme Deus nos permite. Assim temos, como exemplo, a química, que na mistura de elementos forma um terceiro que nunca deixará de ser a mistura de outros.

Em nossa finitude, a essência precede à experiência, e esta, modela a nossa cosmovisão. Fazer uma inversão aqui seria algo avassalador para a nossa epistemologia e, consequentemente, para a nossa práxis.

As nossas ênfases revelam não, simplesmente, os nossos pensamentos e valores como também aspectos da realidade como os percebemos. A concatenação de nossas ideias e a estruturação de prioridades, dentro da fluidez histórica, assumem aspectos relativos. Deste modo, por exemplo, quando lemos um autor devemos entender também o seu tempo, a sua forma de pensar e os pontos que visava destruir, consolidar ou mesmo transformar.

 

Caráter dialogal de toda obra

Toda obra é, de certa forma, dialogal, explícita ou implicitamente.[14] Portanto, ninguém pode se ufanar de passar incólume por este processo. Cada época nos diz algo de seus atores e, cada ator histórico nos fala direta ou indiretamente do cenário que o inspira, dentro do qual ele foi criado e, de certa forma, delimita a sua própria percepção da realidade.

Quando não percebemos esses aspectos, tendemos a ser extremamente rigorosos em nossos julgamentos ou facilmente somos conduzidos a cometer anacronismos injustificados. Isto se dá, especialmente, quando lemos autores de séculos anteriores ao nosso que, além da distância temporal, viveram em outro continente, com valores próprios, percepções delimitadas pela sua época, tendo que se deparar com desafios gigantescos alguns dos quais são quase que imperceptíveis em nossa época.

Aí surge o nosso problema: é impossível ter todas as visões; a nossa, além de vários condicionantes, é feita a partir de nossa época, sob o feitiço de nossos valores e concepções os quais, por si só, já produzem um pré-conhecimento.

O anacronismo condenatório é fácil de ser praticado e extremamente difícil de ser percebido por quem o exerce. Desse modo, a consciência dessas questões deve produzir em nós um salutar sentido de limitação e, portanto, de maior prudência em nossos juízos, reconhecendo que a nossa época, dentro da qual estamos inseridos e mais cativos do que imaginamos, tem as suas paixões e feitiços – plenamente justificados, diga-se de passagem, pelos seus cidadãos bem socializados, ou seja, aculturados –, assim como a de nossos personagens analisados.

O que torna a nossa visão melhor do que a deles? Talvez seja a própria história que constantemente nos fornece um leque mais amplo e ilustrativo de fracassos da humanidade…

Nash (1936-2006) parece-nos correto em sua observação: “A obtenção de maior consciência de nossa cosmovisão pessoal é uma das coisas mais importantes que podemos fazer, e compreender a cosmovisão de outros é algo essencial para o entendimento que os torna distintos”.[15]

 

Pressupostos conhecidos e ignorados: sua “contaminação”

Como todos os homens têm seus pressupostos e como as raízes de nosso pensamento estão fundadas em nosso coração, o centro vital do ser humano,[16] nem sempre temos clareza intelectual quanto à direção que seguimos visto que o nosso perceber é influenciado pelo nosso sentir sem que este indique de forma objetiva a sua presença.

Cosmovisão é algo mais ou menos profundo, contudo, sempre passa pelo nosso coração![17] O que alimenta e satisfaz o coração determina a nossa compreensão e ação. Erradicar alguns ídolos de nosso coração é tarefa por demais dolorosa, começando pela dificuldade em identificá-los.[18]

Em outra de suas obras, Sire refina uma definição anterior:

Cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração que pode ser expresso como uma estória ou num conjunto de pressuposições (suposições que podem ser verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou totalmente falsas) que sustentamos (consciente ou subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e que fornece o fundamento no qual vivemos, nos movemos e existimos.[19]

Como temos insistido, a epistemologia antecede e contribui de forma decisiva em nossa práxis. Contudo como nos aprofundar no campo intelectual se abandonamos as questões epistemológicas? As palavras de  Machen (1881-1937) no início do século XX não se tornam ainda mais eloquentes na atualidade?: “A igreja está hoje perecendo por falta de pensamento, não por excesso do mesmo”.[20]

Revisitando a nossa cosmovisão: Prazer em conhecê-la

Nem sempre é fácil submeter os nossos valores ao rigor daquilo que cremos. Como o cientista tem dificuldade em revisitar os seus paradigmas, nós também temos dificuldade em rever a nossa cosmovisão.

É muito difícil – talvez por ser doloroso demais – aplicar e avaliar em nosso próprio sistema as implicações do que sustentamos. Podemos, sem nos darmos conta, nos ferir com as nossas próprias armas que julgávamos serem bisturis. Aliás, o mau uso do bisturi pode ser fatal, assim como o “fogo amigo” nas guerras. O antidogmatismo pode se constituir num dogma acima de qualquer suspeita e possibilidade de verificação.

A nossa cosmovisão não deve servir apenas – aliás, um “apenas” injustificável em si mesmo – para um exibicionismo pretensamente acadêmico, ufanismo ignorante, ou mesmo como demarcação de terreno onde nada se sucede, exceto a presunção compartilhada e demarcada por outras cosmovisões.

 

Cosmovisão comprometida

A nossa cosmovisão consciente deve estar comprometida com a busca de coerência perceptiva e existencial.[21] Isso nós chamamos de integridade; o não esfacelamento condescendente e excludente daquilo que cremos, falamos e fazemos.

Ainda que não haja a ideia de orgulho meritório na fé,[22] ela é responsável pelo nosso agir e pensar. “A fé não concerne a um setor particular da vida denominado religioso, ela se aplica à existência em sua totalidade”, explica Barth [23]   Contudo, a fé biblicamente orientanda não pode ser autorreferente. Ela não pode se contentar em uma suposta relação mística com Deus e uma ética construída a partir de suas preferências e gosto pessoal.

A verdadeira fé parte da Palavra e para lá se direciona. A fé que se basta é uma contradição de termos visto que seria apenas uma boa obra humana produzida pela suposta capacidade autossuficiente de seu possuidor.[24]

Por buscarmos a coerência do crer e viver ‒ daí a extrema importância de uma fé inquiridora ‒[25] há compromissos sérios entre o que cremos e como agimos. Um distanciamento consciente e docemente acalentado e justificado entre o crer e o fazer, produz uma esquizofrenia intelectual, emocional e espiritual, cuja solução definitiva envolverá um destes caminhos: ou mudar a nossa crença, ou abandonar a nossa práxis.

Para o cristão, cosmovisão é compromisso de fé e prática. E, como diz Lloyd-Jones (1899-1981): “A fé cristã não é algo que se manifeste à superfície da vida de um homem, não é meramente uma espécie de camada de verniz. Não, mas é algo que está sucedendo no âmago mesmo de sua personalidade”.[26]

Como temos insistido, somos o que cremos – pelo menos, esta deve ser a nossa atitude cotidiana: esforçar-nos por viver conforme aprendemos nas Escrituras. A nossa fé tem implicações decisivas e fundamentais em nossa existência a começar aqui e agora. Fé cristã é crer de tal modo que buscamos transformar a nossa vida num reflexo daquilo que acreditamos.

 

Cosmovisão, realidade concreta e integridade

Parece-nos oportuno retomar Nash aqui:

Cosmovisões deveriam não apenas ser testadas em uma aula de filosofia, mas também no laboratório da vida. Uma coisa é uma cosmovisão passar no teste teórico (razão e experiência); outra é passar no teste prático. As pessoas que professam uma cosmovisão podem viver consistentemente em harmonia com o sistema que professam? Ou descobriremos que elas foram forçadas a viver segundo crenças emprestadas de sistemas concorrentes? Tal descoberta, eu acho, deveria, produzir mais do que embaraço.[27]

O caminho para sermos íntegros ‒ inteiros e não fragmentados ‒ é buscar a instrução na Palavra perfeita do Senhor. Devemos buscar o caminho da perfeição.

Davi relata o seu sincero projeto de reinado: obediência a Deus. Em outras palavras; seguir com discernimento e integridade o perfeito caminho do Senhor: Atentarei sabiamente (lk;f’) (sakal)[28] ao caminho da perfeição (~ymiT’) (tamiym).[29] Oh! Quando virás ter comigo? Portas a dentro, em minha casa, terei coração sincero (~To)(tom)[30]” (Sl 101.2).

A vida cristã envolve necessária e essencialmente integridade. Integridade significa busca da verdade, compreensão e vida. Nenhum de nós é absolutamente íntegro, contudo é impossível ser cristão sem esta busca de todo coração.[31]

Contudo cabe aqui uma observação. Por falta de uma percepção mais clara, podemos ser íntegros para com aquilo que não tem integridade. Em outras palavras, podemos ser totalmente sinceros em relação ao erro por não percebermos o nosso equívoco.

Ainda que preservar a nossa integridade seja um princípio bíblico, quando a mantemos depositada em algo de consistência duvidosa, frágil,  movediça e enganosa, pode trazer grande frustração e dor. Nesse caso, a evidência de nossa integridade autêntica é o compromisso com a verdade de Deus, não com nossos compromissos que se mostraram equivocados. Portanto, quando for o caso, será necessário reestruturar o nosso compromisso de fé.

Pense no ardor do jovem Saulo em perseguir a Igreja de Deus pensando justamente estar prestando um serviço que glorificasse a este mesmo Deus. Quanta dor e sofrimento ele causou a inúmeros cristãos sinceros e, a ele mesmo.

O maravilhoso dessa história tão ilustrativa da vida cristã, é que quando, por graça, descobriu o seu equívoco e, foi convertido ao Senhor, passou a pregar  a Palavra, com fidelidade e inteireza de coração, ensinando ser Jesus o Cristo e Senhor (At 9; 22; 26; 1Co 15.9).

O fato é que todos nós construímos, conscientemente ou não, a nossa casa, a nossa vida, sobre pressuposições, sobre nossas crenças. A questão é se estas crenças suportarão as intempéries próprias da existência,[32] marcada por paixões, equívocos e insucessos.

A nossa chave epistemológica é a Escritura. Portanto, a nossa cosmovisão partindo de uma perspectiva, assim, nos conduzirá naturalmente de volta a Deus.[33] A fé cristã se propõe a dar o foco correto à realidade que, em nossa miopia, limitação visual, temor da realidade concreta e, também, na desorganização dos fenômenos, tudo parecia ser sem sentido.[34]

A fé cristã fundamentada nas Escrituras, oferece-nos um escopo do que Deus deseja de nós e, nos fala qual é o propósito de nossa existência em todas as suas esferas.[35]

 

O historiador e a sua história

Retornando à questão da história, como fica óbvio, o historiador trabalhará sempre com os seus pressupostos; todavia, ele deverá esforçar-se para que eles não interfiram na evidência dos “fatos”, a fim de não sacrificar a “verdade” por sua paixão, que as evidências, por sua clareza, revelam ser equivocada.[36] Dentro desta linha de raciocínio, escreveu o filósofo Hirschberger (1900-1990):

Uma absoluta ausência de preconceitos nunca houve nem jamais haverá, porque todo cultor das ciências do espírito é         filho de seu tempo, sem poder ultrapassar sua própria capacidade; e, em particular, haverá sempre de julgar em dependência dos valores e cosmovisões mais recentes, do que talvez jamais tenha suficiente consciência.[37] Disto não se conclui que devamos renunciar de todo à imparcialidade. Ao contrário, devemos antes nos propor o ideal da objetividade, é claro, inatingível como todo ideal, mas que devemos trazer sempre diante dos olhos, sempre pronto a mantê-los no ensino ou na discussão e buscá-lo constantemente, numa tarefa ininterrupta”.[38]

Outro ponto que desejo mencionar, é a questão do método. Descartes (1596-1650) observou corretamente que “não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem”.[39] A prova de bom senso é usar um método sensato, condizente com o assunto que estamos tratando.

O irônico de tudo isto – se não for trágico –, é que provavelmente sem perceber, o historiador já se tornou prisioneiro de sua perspectiva e apenas, queira compartilhar conosco daquilo que o enfeitiçou em nome da razão e das evidências.[40] Para isto ele dispõe da linguagem como meio de comunicação e persuasão, refletindo a organização do seu pensamento, e o desejo de também nos “enfeitiçar”.[41] “Persuadir”, “formar as nossas almas”? Não importa… em nome da liberdade de pensamento, sempre pretendemos ter os nossos “cativos”, nos apoderar da “imaginação do povo”[42] ou de nossos leitores.

Por sua vez, o historiador, como obviamente não consegue ter  as mais variadas visões e perspectivas, há sempre o risco de nos tornarmos cativos de nossa perspectiva e, portanto, da nossa percepção.[43] Como, obviamente, conforme temos insistido, não conseguimos ter “todas as visões”, permanecemos, de certo modo, encarcerados  dentro nossa maneira de ver.[44] Em outros termos: prisioneiros de nossa percepção. Daí, a importância básica de conhecer e avaliar outras percepções.

“Até para obtermos uma boa compreensão de uma árvore, precisamos contorná-la  e a observarmos de vários ângulos”, alerta-nos Frame.[45] Diria mais: A árvore nunca nos parecerá a mesma da volta anterior.

A assimilação de outras perspectivas, limitadas, sem dúvida como a nossa, certamente nos fornecerá uma visão mais abrangente e completa, ainda que limitada, da realidade. Portanto, sejamos modestos.[46]

O historiador, como o nome já diz, é aquele que julga, e no seu julgamento encontramos a elaboração da história,[47] cuja matéria-prima é o passado,[48] ou “um certo passado”, “um fragmento do passado”,[49] cabendo ao historiador analisar o seu sentido, mudança e transformações.[50]

Nessa elaboração o seu juízo deve ter como compromisso fundamental, a não gratuidade. No entanto, o juiz da história, não será o historiador nem o povo que a lê, mas a própria história por meio das consequências dos atos daqueles que a fizeram. O valor de um ato histórico está na mesma proporção de seus efeitos.

Em outros termos e, com aspectos complementares, tomo emprestada a conceituação de Morgenthau (1904-1980): “A prova pela qual tal teoria deve ser julgada tem de caracterizar-se por uma natureza empírica e pragmática, e não apriorística e abstrata”.[51]

Parece-nos, portanto, pertinente a definição do historiador Cairns (1910-2008), quando diz ser a história “a reconstrução subjetiva do passado, à luz dos dados colhidos, dos pressupostos do historiador e do ‘clima da opinião’ do seu tempo, além do elemento da liberdade da vontade humana”.[52]

A distinção, por vezes propalada, por exemplo, entre acadêmico e devocional; acadêmico e confessional, é superficial, imprecisa e ingênua. Toda produção “acadêmica” é confessional. O que deve ser sempre analisado, independentemente do nome que lhe atribuirmos, é a fundamentação teórica, o rigor da pesquisa e se as conclusões fazem jus aos documentos.

            Resumindo, podemos dizer que cinco elementos são fundamentais para o estudo da História: 1) Documentação fidedigna; 2) As versões; 3) Método consistente de verificação, análise e interpretação dos documentos;[53] 4) A procura constante da imparcialidade[54] na análise dos fatos e na elaboração das conclusões. Em outras palavras: a busca da verdade jamais deve ser abandonada pelo historiador;[55] 5) A consciência de que, apesar de nossa seriedade, o nosso trabalho é limitado.

Portanto, devemos ter sempre em mente que: a nossa perspectiva não é a única “correta” nem a definitiva; as nossas conclusões são passíveis de questionamentos. Em suma, a história precisará sempre ser reescrita, se não necessariamente para corrigi-la, pelo menos para ampliar os seus elementos – por meio de novos documentos e de novas leituras –, apresentando uma visão mais abrangente e profunda da realidade.

Quanto à suposta dificuldade própria da proximidade do objeto, mudando o que deve ser mudado, devemos nos lembrar da observação de Rivière: “Pertencer a uma cultura estudada não é nem uma desvantagem nem uma necessidade para o antropólogo, o importante é possuir a bagagem teórica e metodológica que lhe permita uma distanciação científica….”.[56]

Pergunto: seria isso suficiente? Sem dúvida é necessário, contudo, é suficiente?

Acredito que Rivière está correto em sua teoria, contudo, entusiasma-se demais com o canto da sereia da objetividade científica, da “distanciação científica”. Creio que somada à observação de Rivière, devemos atentar – como uma espécie de pequena dose de ceticismo –, ao que afirmou Briggs (1921-2016): “Quanto mais próximos se encontram os historiadores sociais da sua própria época, mais difícil se torna para eles terem a certeza de que compreenderam os aspectos essenciais dela”.[57]

O filósofo Abbagnano (1901-1990) observa com propriedade, que:

Cada época vive de uma tradição e de uma herança cultural das quais fazem parte os valores fundamentais que inspiram as suas atitudes. Esta tradição, porém, especialmente nas épocas de transição e renovação, nunca consiste em herança passiva ou automaticamente transmitida, mas sim na escolha de uma herança.[58]

Se isto é válido para o Humanismo, contexto do qual trata Abbagnano, o é também, para o Iluminismo e outros períodos. Os iluministas herdaram por opção o pensamento filosófico do Humanismo Renascentista, com as contribuições racionalistas subsequentes, encarnando alguns de seus valores, adaptando-os às suas necessidades, conforme a sua perspectiva do mundo e da história. Contudo, devemos observar, que se esta herança não é “passiva”, envolvendo sempre uma “escolha”, ela traz em seu bojo, no mínimo uma “pitada” de determinação histórica, isto porque o homem em suas escolhas – por mais livres que sejam –, traz em si um condicionante de sua época, quer tenha consciência disso, quer não.

O rompimento com um tipo de pensamento é feito à luz da própria história que nos cerca; tentar negar isto, equivale a subverter o sentido de nossa própria historicidade. “Desligar-se da História é sinônimo de cortar o nosso vínculo arterial com a humanidade”[59] e, consequentemente, fechar a porta que dá acesso à possibilidade de sua compreensão.

Lendo Ripanti (1938-2019) interpretando o pensamento do filósofo Gadamer (1900-2002), encontrei essa observação: “Pertencer à história significa estar inserido no interior de uma tradição, uma língua, uma cultura, no interior de um devir histórico que já determina originariamente as suas pré-compreensões”.[60]

Portanto, a história e a sua interpretação é feita a partir de nossas escolhas e do caminho que seguimos a partir daí. Somos agentes ativos e não simplesmente o produto da história ou de explicações históricas. A história é uma investigação, portanto, ela deverá sempre estar sob suspeita, no sentido de que novos documentos e interpretações podem nos conduzir a uma aproximação mais fiel do fato. Como princípio metodológico sincero, este diálogo jamais deve terminar enquanto a história existir.

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1] Música e letra do talento e premiado Guilherme Arantes, Meu Mundo e Nada Mais (1976).

[2] Francis A. Schaeffer, Como Viveremos? São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 144.

[3]James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito, Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 195.

[4] Ortega y Gasset, Adão no Paraíso: In: Juan Escámez Sánchez, Ortega y Gasset, Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, (Coleção Educadores), 2010, p. 125-126.

[5]Sire, em Prefácio à Edição Brasileira, à obra de Nash, disse o seguinte:

“Se realmente conhecermos a nossa própria cosmovisão, se soubermos como ela pode ser comparada a outras cosmovisões e por que confiamos que a nossa é verdadeira, estaremos preparados para nos mover com mais profundidade não só no conhecimento e na compreensão de Deus, mas também no conhecimento das coisas  mais importantes da realidade como um todo” (James Sire em Prefácio à Edição Brasileira da obra de  Ronald H.  Nash, Cosmovisões em Conflito: escolhendo o Cristianismo em um mundo de ideias,  Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 11).

“Não se pode ver claramente qualquer aspecto de uma época, por mais que se examine, até que se esteja fora desse período e se possa medi-lo por padrões não limitados a ele. O conhecimento da tradição cristã através dos séculos e das culturas dá essa capacidade com relação a todas as questões que preocupam o cristão dos dias atuais. Embora nunca consigamos ser absolutamente objetivos, podemos ser ajudados no exame de nossas pressuposições contemporâneas pelos exames feitos em outras épocas” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, São Paulo; Cultura Cristã, 1998, p. 237).

[6]Veja-se: Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 19.

[7]Veja-se: J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 27-28.

[8] “Uma cosmovisão é uma série de crenças, um sistema de pensamentos, sobre as questões mais importantes da vida. A cosmovisão de uma pessoa é sua filosofia” (W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 13).

[9]Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 258.

[10]“Todo mundo tem uma cosmovisão. Quer saibamos ou não, todos nós agimos a partir de um conjunto de suposições sobre o mundo que permanecem em grande parte escondidas nos recônditos inconscientes de nossa mente. Esta é a cosmovisão privada” (James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 158).

[11] “Não há algo que possa ser chamado de método epistemológico neutro. Sempre pressupomos certa visão de realidade antes de perguntar como investigá-la”  (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 53).

[12] Veja-se: H. R. Rookmaaker, A Arte não precisa de justificativa, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 39.

[13]“Você não precisa acreditar em tudo o que pensa, e a razão é simples: nós vemos o que queremos ver. (…) O nervo óptico, o único nervo com ligação direta com o cérebro, na verdade transmite mais impulsos do cérebro para o olho do que vice-versa. Isto significa que seu cérebro determina o que o olho vê. Você já está pré-condicionado. É por isso que, se quatro pessoas presenciarem um acidente, cada uma vai relatar algo diferente. Precisamos nos lembrar, e ensinar aos outros, que não devemos acreditar em tudo o que pensamos” (Rick Waren, A batalha pela sua mente. In: John Piper; David Mathis, orgs. Pensar – Amar – Fazer, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 27).

[14] Posteriormente li Mohler nos Agradecimentos de seu livro, afirmando: “Salvo raríssimas exceções, livros representam uma conversa” (R. Albert Mohler, O Desaparecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 9). Barth, no prefácio da sexta edição de seu Comentário aos Romanos (1928), explica que se fosse reescrever seu comentário, resumiria algumas partes e ampliaria outras. Diz então: “Grande parte da estruturação do livro se deveu à minha situação particular e também à situação geral da época” (Karl Barth, Carta aos Romanos, São Paulo: Novo Século, 1999, p. 19).

[15]Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 14.

[16]“Assim como o coração no sentido físico é o ponto de origem e de força propulsora da circulação do sangue, assim também, espiritual e eticamente ele é a fonte da mais elevada vida do homem, a sede de sua autoconsciência, de seu relacionamento com Deus, de sua subserviência à Sua lei, enfim, de toda a sua natureza moral e espiritual. Portanto, toda a sua vida racional e volitiva tem seu ponto de origem no coração e é governada por ele” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 19). Para um estudo mais detalhado do conceito de coração na Escritura, veja-se: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001).

[17]“Cosmovisões são uma questão do coração” (James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 181).

[18]Na provável primeira carta que Calvino escreveu depois de ter se fixado em Genebra (1536), alegra-se com o avanço da Reforma e a consequente diminuição da superstição e idolatria. Então diz: “Deus permita que os ídolos sejam erradicados também do coração” (Carta escrita ao seu amigo Francis Daniel no dia 13 de outubro de 1536. In: João Calvino, Cartas de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 30). Veja-se também: João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 22.

 

[19]James W. Sire, Dando nome ao elefante: Cosmovisão como um conceito. Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 179.

[20]J.G. Machen, Cristianismo y Cultura, Barcelona: Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1974, p. 19.

[21] “Todo indivíduo tem uma visão de mundo. A visão de mundo dá respostas às quatro perguntas essenciais perguntas que dizem respeito à origem, ao sentido, à moralidade e à esperança que garante um destino. Essas respostas devem ser verdadeiras e coerentes como um todo” (Ravi Zacharias, A Morte da razão: uma resposta aos neoateus, São Paulo: Vida, 2011, p. 25).

[22]“Não existe orgulho na fé. Fé é simplesmente a crença de que nada podemos fazer para nos salvar, mas que confiamos plenamente na graça de Deus” (Peter Jones, Verdades do evangelho x Mentiras pagãs, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 34).

[23]Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 24.

[24]“Se Deus tem derramado sobre nós um dom excelente, e se, porém, imaginamos que ele mesmo se deve a nosso próprio mérito, acabaremos insuflados de orgulho” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 34).

[25]“A fé cristã não é uma fé apática, uma fé de cérebros mortos, mas uma fé viva, inquiridora. Como Anselmo afirmou, a nossa fé é uma fé que busca entendimento” (William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 29). De igual modo: Garrett J. DeWeese; J.P. Moreland, Filosofia Concisa, São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 158. Veja-se também: Leo Strauss; Eric Voegelin, Fé e filosofia política: a correspondência entre Leo Strauss e Eric Voegelin, São Paulo: É Realizações, 2017, p. 169.

[26] David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 89.

[27]Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 29. Do mesmo modo: Ronald H.  Nash, Cosmovisões em conflito: escolhendo o Cristianismo em um mundo de ideias,  Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 81. Com percepção semelhante, escreveu McGrath: “Uma visão de mundo é avaliada por quão bem ela ilumina o panorama da realidade e dá a tudo um foco contundente” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 162).

[28] Agir com inteligência e discernimento. Sobre a palavra, vejam-se: William Gesenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 3. ed. Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1978, p. 789-790; Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478-1480; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 74, 224-225.

[29] A ideia da palavra traduzida por integridade é de: perfeição (Sl 18.30); aperfeiçoar (Sl 18.32); retidão (Sl 101.6); irrepreensível (Sl 119.1,80); inculpável (2Sm 22.24). Ela também se refere aos animais que não tinham defeito. “No terceiro dia, oferecereis onze novilhos, dois carneiros, catorze cordeiros de um ano, sem defeito (~ymiT’) (tamiym) (Nm 29.20).

[30] Integridade (1Rs 9.4; Sl 7.8; 26.1,11; 37.37); sinceridade (Gn 20.5,6; Sl 25.21); pacato (Gn 25.27); ajustar (Êx 26.24). A palavra (~To)(tom) é da mesma de raiz (~ymiT’) (tamiym), (~m;T’) (tamam): ser completo, estar terminado.

[31] “Para se viver com significado, é necessário descobrir a verdade, descobrir a realidade; uma vez descoberta, temos de viver em fidelidade para com a verdade. A integridade e a busca da verdade andam de mãos dadas” (Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 174).

[32]Adaptei esta figura inspirando-me em Harris (Joshua Harris, Cave mais fundo: o que você acredita? por que isso importa? São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2011, p. 308-309).

[33]“Numa cosmovisão cristã logicamente consistente, a primeira e absoluta pressuposição essencial é que a Bíblia somente é a Palavra de Deus, e ela tem um monopólio sistemático sobre a verdade” (W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 20). “O Cristianismo é um sistema filosófico completo que é fundamentado sobre o ponto de partida axiomático da Bíblia como a Palavra de Deus” (Ibidem., p. 77).

[34] Veja-se: Alister McGrath,  A fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 41ss.

[35]“A cosmovisão cristã tem coisas importantes a dizer sobre a totalidade da vida humana” (Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida, p. 19).

[36] O historiador batista Muirhead, coloca a questão nestes termos: “Imparcialmente deve proceder o historiador na investigação dos fatos. Achar a verdade e escupi-la em relevo, eis o alvo” (H.H. Muirhead, O Cristianismo Através dos Séculos, Rio de Janeiro: (?) Typ. C.A.B., 1921 (?), v. I, p. 6).

[37]O historiador luterano von Mosheim (1693-1755), considerado o pai da historiografia da igreja, em sua monumental obra de 4 volumes, Institutes of Ecclesiastical history, ancient and modern (1726), declarou:

“O tempo em que nós vivemos normalmente tem tanta influência sobre nós que medimos as eras passadas por ele, pensando que anteriormente o que deveria ser feito ou deveria ser impossível é o que hoje está feito ou é impossível. Em seguida as pessoas cujo testemunho deve-se usar, especialmente aquelas que têm sido conhecidas ao longo dos anos por sua santidade e virtude, frequentemente nos levam ao erro por sua autoridade. Por último, o amor à opinião e doutrinas que gozam de nossa afeição frequentemente constrange nossas mentes, e mesmo inconscientemente podemos ter visões errôneas dos fatos. Essa servidão tripla deve, portanto, com toda as nossas forças, ser arrancada de nossas mentes”. (Johann Lorenz von Mosheim, Institutes of Ecclesiastical history, ancient and modern, 2. ed. (Revised edition), London: Longman & Co., 1850, v. 1, p. 20-21).

[38]Johannes Hirschberger, História da Filosofia na Antiguidade, 2. ed. São Paulo: Herder, 1969, p. 20. (Veja-se: K.S. Latourette, Historia del Cristianismo, 4. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1978, v. I, p. 19-20).

[39]René Descartes, Discurso do Método, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 15), 1973, I, p. 37.

[40]“É notavelmente difícil evitar cair sob o feitiço de nossa própria herança intelectual” (Quentin Skinner, Liberdade antes do Liberalismo, São Paulo: Editora UNESP/Cambridge, 1999, p. 93).

[41]“A Filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem” (L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, São Paulo: Abril Cultural, 1975, (Os Pensadores, XLVI), p. 58). Do mesmo modo, diz Skinner: “A história da filosofia, e talvez especialmente da filosofia moral, social e política, está aí para nos impedir de sermos muito facilmente enfeitiçados” (Quentin Skinner, Liberdade antes do Liberalismo, p. 93).

[42]José Murilo de Carvalho, A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11.

[43]O depoimento de McGrath é iluminador: “Uma das coisas que noto à medida que envelheço é a maneira como as outras pessoas me ajudam a ver as coisas mais claramente. Elas me mostram coisas que eu não tinha visto antes. E, às vezes, elas precisam me corrigir quando percebo as coisas de forma errônea. Daí a importância de o cristianismo ser uma fé comunitária, em vez de uma fé individual” (Alister McGrath,  A fé e os credos, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 37-38).

[44]Li por meio de Peter Burke, que Fernand Braudel (1902-1985) gostava de afirmar que o historiador é prisioneiro de suas suposições e mentalidades (Peter Burke, O Renascimento Italiano: cultura e sociedade na Itália, São Paulo: Nova Alexandria, 1999, p. 11).

Paul Cézanne (1839-1906), artista de grande sensibilidade, escreveu a seu filho um mês antes de morrer: “Devo dizer que, como pintor, estou começando a enxergar melhor a natureza. Mas, comigo, a realização de minhas sensações é sempre muito difícil. Não consigo captar a intensidade de tudo que se desdobra diante de meus sentidos, não alcanço a riqueza da natureza. Aqui, na beira do rio, os motivos são tantos que um mesmo objeto visto de um ângulo um pouco diferente já daria para estudos de maior interesse; e tão variados são que eu poderia trabalhar por meses a fio sem mudar de lugar, simplesmente olhando um pouco mais para a direita ou para a esquerda” (Apud Fayga Ostrower, A Grandeza Humana: cinco séculos, cinco gênios da arte, Rio de Janeiro: Campus, 2003, p. 127).

[45]https://frame-poythress.org/a-primer-on-perspectivalism-revised-2008/ (Consulta feira em 30.04.2023).

[46]Jacques Le Goff, História e Memória, 3. ed. Campinas, SP.: Editora da UNICAMP, 1994, p. 144-146.

[47] Veja-se a comparação feita por Ginzburg entre o juiz e o historiador. Carlo Ginzburg, Relações de Força: história, retórica, prova, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 62-63. Veja-se também: Carlo Ginzburg, Controlando a Evidência: o juiz e o historiador. In: Fernando A Novais; Rogério F. da Silva, Orgs. Nova História em Perspectiva, São Paulo: Cosac Naify, 2011, v. 1, p. 341-358.

[48]Depois de haver redigido primariamente essas linhas, li em Toynbee (1889-1975) o seguinte: “Como não vemos o futuro até que ele chegue a nós, temos que nos voltar para o passado a fim de esclarecê-lo. Nossa experiência do passado dá-nos a única luz a que temos acesso para iluminar o futuro. A experiência é outro nome para história. Quando falamos de ‘história’, normalmente pensamos na experiência coletiva da raça humana; mas a experiência individual que cada um de nós reúne numa única existência é história igualmente legítima. Na vida privada, como na pública, a experiência é altamente apreciada – e com razão, porque geralmente se reconhece que a experiência auxilia nosso julgamento e assim nos permite fazer escolhas mais sábias e tomar decisões melhores. Em todas as épocas – tanto boas quanto más – naturalmente temos de planejar para o futuro na administração dos nossos futuros humanos. Planejamos para o futuro com a intenção de controlá-lo e moldá-lo para preencher nossas finalidades na medida do possível. Essa tentativa consciente para controlar e modelar o futuro parece ser uma atividade caracteristicamente humana. É um dos traços que nos distingue das outras criaturas com as quais partilhamos nosso lar neste planeta. Não podemos planejar sem olhar para a frente, e não podemos olhar para a frente exceto na medida em que a luz da experiência nos ilumina o futuro” (Arnold J. Toynbee, O Desafio do Nosso Tempo, 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975, p. 13-14). Com esta citação, não estamos endossando a perspectiva cíclica da História, conforme a que defende o autor.

[49] Cf. Johan Huizinga, El Concepto de la Historia y Otros Ensayos, p. 91.

[50] Cf. Eric Hobsbawm, Sobre História, São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 22.

[51]Hans J. Morgenthau, A Política Entre as Nações: a luta pelo poder e pela paz, Brasília, DF/São Paulo: Editora Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, 2003, p. 3.

[52] Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos: Uma História da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 14. Em outro trabalho, Cairns assim define: “História…. pode ser definida como a reconstrução literal interpretada do passado humano socialmente significante, baseada em dados provenientes de documentos estudados por intermédio de métodos científicos” (Earle E. Cairns, God and Man in Time: A Christian Approach to Historiography, Grand Rapids, Michigan: Baker, 1979, p. 15).

[53] É bastante instrutiva a descrição que Tucídides faz de sua metodologia: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1982, Livro I, Caps. 20-22.

[54] Veja-se: Adam Schaff, História e Verdade, p. 282-283.

[55] “Também (juntamente com Arnaldo Momigliano) eu sustento que encontrar a verdade é ainda o objetivo fundamental de quem quer que se dedique à pesquisa, inclusive os historiadores” (Carlo Ginzburg, Relações de Força: história, retórica, prova, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 61). Mabillon (1632-1707), o historiador beneditino, escrevera: “Como o amor da justiça é a primeira qualidade de um juiz, assim a primeira qualidade de um historiador é o amor e a procura da verdade das coisas passadas” (Jean Mabillon, Brèves réflexions sur quelques règles de l’histoire, Paris: P.O.L, 1990, p. 104). Além disso, assinala a necessidade de um comprometimento com as suas fontes, envolvendo sinceridade e boa-fé naquilo que escreve (Jean Mabillon, Brèves réflexions sur quelques règles de l’histoire, p. 107).

[56]Claude Rivière, Introdução à Antropologia, Lisboa: Edições 70, (2000), p. 13.

[57]Asa Briggs, História Social de Inglaterra, Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 301.

[58]Nicola Abbagnano, História da Filosofia, 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1984, v. 5, p. 14.

[59]Rollo May, Psicologia e Dilema Humano, 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 63.

[60]Graziano Ripanti, Hans Georg Gadamer: A Alteridade da Hermenêutica Teológica. In: Giorgio Penzo; Rosino Gibellini, orgs. Deus na filosofia do Século XX, São Paulo: Loyola, 1998, p. 376.

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