Karl Barth para leigos: simplificando a Neo-ortodoxia

Por Solano Portela

 

A neo-ortodoxia é uma corrente teológica (ela não tinha esse nome, no início) começou como uma reação aparentemente saudável ao liberalismo. Teólogos, entre os quais temos Karl Barth como um dos maiores nomes, se posicionavam contra o racionalismo do liberalismo e davam valor às Escrituras, voltavam a falar de Deus em termos reverentes, encorajavam uma postura piedosa de vida.

Acontece que, com o passar do tempo e na medida em que muitos escritos foram saindo essa corrente mostrou que não estava realmente disposta confrontar o liberalismo e, especialmente, o cientificismo (elevação da ciência conhecida ao ponto culminante, como aferidora de todo o saber remanescente) com as simples verdades da Palavra de Deus, recebendo-a objetivamente, como os reformadores haviam insistido – que ela era a proposicional e objetiva Palavra de Deus – padrão de aferição de todo o pensamento e fonte suprema de nosso conhecimento metafísico.

Assim, com efeito, passaram a redefinir certos termos, no sentido de evitar conflitos com a ciência conhecida e com supostos postulados históricos. Ou seja – procuravam conservar terminologia cristã, com aceitação ampla de uma visão humanista da história e da ciência. A forma que acharam, de resolver esse conflito, foi de criar duas esferas ou estradas de conhecimento, de registros ou de impressões da história. Uma seria chamada de HISTORIE (história, fatos brutos); a outra de HEILSGESCHICHTE (história santa, ou história salvífica).

Desta forma, fica tudo, aparentemente, mais fácil de resolver. Se alguém pergunta – “a criação realmente aconteceu”? A resposta daquele que agora já era conhecido como neo-ortodoxo (porque se distanciava mesmo dos ortodoxos – ou seja dos fiéis reformados) seria: “alguma coisa aconteceu, mas isso é campo da ciência; não é relevante para o nosso meditar e caminhada em direção a Deus – isso é HISTORIE; o que estamos interessados é em HEILSGESCHICHTE e é isso que temos na Bíblia – como essas questões impressionaram e afetaram o autor – ou autores (para o neo-ortodoxo a integridade do texto também não é algo relevante; é fruto de uma visão antiquada e ultrapassada dos escritos sagrados). Semelhantemente, “a ressurreição realmente aconteceu?” O neo-ortodoxo não está preocupado com essa questão; ela não é relevante; os registros bíblicos são HEILSGESCHICHTE e se ela aconteceu ou não, foi assim que ela impressionou os primeiros cristãos e aqueles que registraram os reflexos religiosos dessa experiência – qualquer que tenha sido, realmente, ela. O importante, não é o aspecto HISTORIE da ressurreição, mas o que esse conceito representa para você, como ele lhe move ou comove a ser uma melhor pessoa e a ter mais solidariedade humana em sua existência.

Criando esses dois mundos, acreditaram estar resolvendo uma série de conflitos. Teólogos não precisavam mais se preocupar com as alegações da ciência conhecida (note que eu chamo de ciência conhecida, porque ela vai se metamorfoseando em algo mais veraz a cada nova descoberta que se faz), mesmo quando essas alegações entram em choque com a Bíblia. Teólogos passaram a ser intelectuais respeitáveis, em vez de simplesmente oradores de discursos chatos e ultrapassados, sempre concentrados em um mesmo tema – “o que dizem as Escrituras?”

Só tem um probleminha com isso tudo. A Bíblia e a realidade do mundo criado pelo Deus soberano, desconhece essa divisão artificial criada pelos neo-ortodoxos. Somos impressionados sim pelos fatos da história (HISTORIE), pois é nela que Deus desenvolve a sua providência. Deus é um Deus que interage com a história. Suas ações acontecem no tempo e no espaço. A vinda de Cristo realmente aconteceu, da forma como está descrita e isso é um evento HISTORIE tanto como HEILSGESCHICHTE, pois esses dois aspectos convergem e se sobrepõem. Paulo, ao substanciar a ressurreição não dá qualquer indicação de que está preocupado apenas com o reflexo religioso ou com o caráter “supra-histórico” desse evento, qualquer que tenha sido. Não! Ele trata a ressurreição como algo que aconteceu mesmo e foi testemunhado por inúmeras pessoas, muitas das quais ainda viviam quando escreveu (para dar ainda maior credibilidade). Paulo não estava preocupado apenas no reflexo religioso de uma mensagem intangível historicamente, mas “arrazoava” objetivamente com os seus ouvintes, transmitindo fatos proposicionais de verdades históricas de valor eterno.

Na prática qual o perigo da neo-ortodoxia, para a igreja cristã? Mesmo que tenham enfatizado uma vida devocional mais intensa, “puxaram o tapete” dos reformadores que haviam resgatado a objetividade das Escrituras; embarcaram a teologia cristã em um subjetivismo que praticamente pavimentou o caminho para qualquer tipo de ideias. Partindo de Barth, que era mais “ortodoxo” que os demais, a escada foi descendente em amplos degraus: Bultmann, Tillich e outros foram se aproximando cada vez mais do velho liberalismo.

Um exemplo recente. A revista Ultimato, em seu No. 261 (acho que tem uns dois anos), traz um artigo sobre ciência e a Bíblia por um conhecido presbiteriano, professor de um dos seminários. A impressão extraída da leitura daquele artigo é a de que ele reflete bem a teologia de Barth: algo assim como – “não me importune com a história ou os fatos reais, pois podemos perder a mensagem principal transmitida nos textos bíblicos” (O artigo não coloca nessas palavras, mas essa é a impressão que tive da abordagem do autor, como se a mensagem bíblica pudesse ser divorciada das realidades históricas; como se a historicidade de Adão não fosse fato relevante à construção teológica e até à apresentação da pessoa de Cristo nos escritos paulinos).

A teologia de Barth tem tido intensa influência e penetração nos círculos intelectuais teológicos. Franklin escreveu um excelente artigo sobre ele, no qual destaca algumas contribuições, mas tece críticas pertinentes. Até onde sei, ainda não foi publicado. A grande questão não é tanto quanto à contribuição, mas quanto será que o seu subjetivismo e abandono da visão reformada das Escrituras prejudicou? O quanto ele aplainou o caminho e encorajou os Tillich da vida de irem “mais além”, de deixarem o Sola Scriptura, de pensarem inclusivisticamente, de baixarem a guarda contra o pluralismo incipiente? Quanto Barth é responsável, não por um ressurgimento de interesse na ortodoxia e abandono do liberalismo clássico, mas pela teologia amorfa que tomou conta de mentes e setores que, antes, eram bastiões da sã teologia reformada, como é o caso de Berkower e da Free University, em Amsterdam? Quanto, de Barth é religiosidade verdadeira e quanto é puro misticismo?

Os conceitos barthianos de “historie” e “heilsgeschichte” legitimaram o divórcio da religiosidade com a realidade; isso tornou desnecessária a defesa da verdade. Disso se aproveitou o próprio liberalismo, tão combatido na forma antiga por Barth, para entrar pela porta dos fundos nos seminários e, por último nas igrejas.

O Rev. Franklin Ferreira, em uma ocasião me escreveu: “Acho que este é o problema principal em Barth. Ainda que em alguns pontos ele apoie a posição cristã histórica, e tenha sido piedoso, sua teologia tem fraquezas tão óbvias que não propiciaram defesa aos assaltos de Bultmann e Tillich – e olha que ele entendia que Bultmann e Tillich estavam voltando ao liberalismo! Também poderia destacar o fato de que após a II Guerra a teologia bartiana entrou em colapso no Velho Mundo”.

Existem boas críticas da posição teológica de Barth e dos demais neo-ortodoxos em inglês. Um bom livro é o de Gordon Clark: “What do Presbyterians Believe – The Westminster Confession Yesterday and Today”, publicado pela The Presbyterian and Reformed Publishing Co. Tenho uma cópia que é antiguinha, de 1965. Sua preocupação maior é comentar as Escrituras como única fonte autoritária de conhecimento religioso (complementando a revelação natural). Ele destaca o termo “infalível”, utilizado no primeiro cap. da CFW e manda bordoadas nos neo-ortodoxos, indicando como as visões de Bultmann e Barth são incompatíveis com a aceitação da CFW.

Por essa razão, não dá para classificar Barth (nem Bonhoeffer, que, em teologia, é neo-ortodoxo – apesar de ser sempre citado como um modelo de coragem na postura cristã, por sua resistência ao nazismo) de “reformado”, como defende o conhecido teólogo e erudito Anamim Lopes. O conceito de Barth das Escrituras é tudo MENOS reformado. Veja o que ele escreveu em um dos seus trabalhos mais importantes: Church Dogmatics (Edinbugh: T. & T. Clark, 1957), Vol. 1, Sec. 2, p. 492 – “A Bíblia… em si própria não é revelação, mas apenas, e esta é a sua limitação, uma testemunha da revelação”. Na página 501 ele escreve: “Você não pode atribuir à própria Bíblia… a capacidade de nos revelar Deus de tal forma que pela sua presença ela nos dê uma fé sincera na Palavra de Deus contida nela”. Ou seja, uma afirmação frequente e verdadeira, sobre qual seria o conceito de Barth seria a seguinte: A Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um testemunho da Palavra de Deus. Outra maneira de colocar, é que ela pode se tornar a Palavra de Deus, de acordo com a apreensão pessoal e subjetiva do leitor, mas ela, intrinsecamente, não o é. Ainda no mesmo livro (Vol. 1, seção 1, p. 123) ele escreve: “A Bíblia se torna a palavra de Deus na medida em que Deus a deixa ser sua palavra, na medida em que Deus fala através dela”. Esse conceito está muito distante da teologia reformada. Perguntamos: A Bíblia é inspirada porque é poderosa em nós, ou ela é poderosa porque ela é inspirada? A resposta, obviamente, é a segunda – ela foi inerrantemente inspirada pelo Espírito Santo.

Infelizmente, muitos, em nossa pátria têm aceito Barth como expoente da melhor teologia, colocando-o par-a-par com os reformadores. Vejamos como um “teólogo” tupiniquim expressa a sua compreensão da neo-ortodoxia e sua simpatia por ela: “Na minha opinião, esses teólogos eram equilibrados; vejamos por exemplo a questão da inspiração bíblica: enquanto o fundamentalismo defendia que a bíblia é a palavra de Deus, porém de forma não exegética (mas sim eixegética) e totalmente sem reflexão teológica e o liberalismo defendia que a bíblia contém a palavra de Deus, usando a história, a filosofia e até a alta crítica para desvalorizar as escrituras, alguns dos neo-ortodoxos, como Barth, trouxeram uma concepção racional sobre inspiração que não tira a autenticidade da revelação”. [ AQUI ]

Recentemente, em uma lista de discussão teológica, um seminarista da IPI, depois de postular algumas declarações teológicas, afirmou que não queria discutir alguns aspectos de suas conclusões porque elas não eram baseadas no estudo teológico das Escrituras, mas partia de bases “científicas”. Transpareceu claramente que a formação que ele deve estar tendo em seu seminário é neo-ortodoxa e barthiana, onde os caminhos da fé e da ciência são separados e não se cruzam. O primeiro é Heilsgeschichte e o segundo é Historie. Essa convicção abriga a noção de que os relatos bíblicos podem ser estudados objetivamente como ciência investigativa. É uma falácia mas, ele, aparentemente, não queria expor, nem reconhecer, essa veia liberal.

Neo-ortodoxia não é só Barth, é claro. Aos que se interessarem em conhecer mais os principais representantes desta corrente – pelo menos os neo-ortodoxos mais recentes, os encontrarão relacionados em um site simpático à neo-ortodoxia, que traz uma pequena biografia de cada teólogo mencionado. O endereço é [ AQUI ]

Será que a neo-ortodoxia tem alguma contribuição positiva à teologia? Acredito que sim e já fiz referência a ela – a sacudidela dada por Barth no liberalismo clássico, mostrando que ele era inadequado – não glorificava a Deus nem atendia às necessidades das pessoas. Entretanto, a neo-ortodoxia foi introdutora de um subjetivismo danoso e assim ela facilitou o adentramento do pós-modernismo no campo teológico e com ele o conceito da relativização da verdade, ou pluralização de “verdades” (“minha verdade não é a sua verdade”; ou, “afinal, existe verdade?”), levando a um afastamento progressivo da doutrina sã e dos pontos defendidos pelos reformadores. A seguinte tabela comparativa segue como uma tentativa de contraste entre a teologia da reforma e a neo-ortodoxia, para esclarecer as diferenças:

 

Teologia da Reforma

Neo-ortodoxia
Sola Scriptura

(Somente a Escritura)

Sim, mas não como padrão objetivo e sim como reflexo e referencial da experiência dos autores
Solus Cristus

(Somente Cristo)

Sim, mas não como único caminho de salvação, pois sua mensagem pode permear outras formas de religiosidade
Sola Gratia

(Somente a Graça)

Sim, mas não como dádiva soberana de Deus e sim como modus vivendi possível a qualquer ser humano
Sola Fide

Somente a Fé)

Sim, mas não é definível objetivamente, pois é reflexo subjetivo de sua compreensão e experiências
Soli Deo Gloria

(Glória somente a Deus)

Sim, mas Deus é glorificado (possivelmente prioritariamente) através do contato humanitário e de ações que visam o bem da humanidade

 

A crítica feita pela neo-ortodoxia contra o racionalismo é pertinente, mas o substituto oferecido (subjetivismo místico e amorfo) é mortal! Engana mais do que resolve. A verdadeira fé reformada não é racionalista, ela abraça a supernaturalidade com naturalidade (ou o sobrenatural como uma coisa natural na pessoa e nas ações de Deus), mas, ao mesmo tempo, é proposiconal e objetiva (não divorcia Deus da história e da objetividade realista dos fatos).

Fé é algo intangível sim e é dom de Deus, mas, ao mesmo tempo, quando essa mesma fé, pela soberana providência de Deus, nos traz ao seio da igreja, vemos a racionalidade dos pilares da fé. As doutrinas expostas na Palavra de Deus começam a fazer sentido! Uma complementa a outra! Até as mais difíceis: não há coerência em Deus fora da trindade; não há possibilidade de redenção fora da encarnação; não há viabilidade histórica fora da visão de um Deus soberano; não há possibilidade de um Messias sem pecado fora do nascimento virginal; não há possibilidade de uma realidade universal do pecado, fora de uma criação conforme exposta em Gênesis.

Tudo aquilo que o “homem natural” não entende, porque procede do Espírito, começa a fazer sentido ao “homem espiritual”, ou seja, àquela pessoa na qual habita o Espírito. Isso é a fé reformada em sua plenitude.  No final vemos que Deus não é ilógico. Já ouvi alguns pregadores falando que a nossa fé não tem lógica. Que a lógica de Deus é diferente da lógica do homem, etc. Não podemos entender dessa forma. Toda verdade é verdade de Deus, toda lógica verdadeira é lógica de Deus. Lógica procede e reside em Deus – ele não muda; é consistente; é coerente. Lógica não rege a Deus, mas ela emana dele. Quando Paulo fala da “loucura da pregação” não é que ela seja intrísecamente loucura, mas ele é “loucura” para a pessoa que construiu sua visão de vida aparte de Deus; que tem a sua “gestalt” onde Deus é o grande ausente. Daí a aparente incoerência das verdades cristãs para o homem secularizado e humanizado. Mas o grande ponto que temos de nos conscientizar, é que Deus é INCOMPREENSÍVEL (ele ultrapassa o nosso saber finito e deformado pelo pecado) mas ele não é ILÓGICO (o que sabemos dele é verdade real).

Assim, não é a neo-ortodoxia que nos dará o complemento intelectual da crença, eles apenas evitam confrontar as grandes questões e conflitos intelectuais, escondendo-se num misticismo deturpado.

E o liberalismo clássico, apresentou alguma contribuição positiva à teologia? É difícil de apontar alguma. Talvez o despertar de uma erudição maior e de um aprofundamento nos estudos da manuscritologia bíblica e da história, por parte dos teólogos reformados e luteranos fiéis, para que conseguissem refutar a chamada “alta crítica”. Possivelmente, sem o surgimento do liberalismo, teria havido uma acomodação acadêmica dos fiéis. A refutação erudita da alta crítica foi feita com sucesso. Os postulados do liberalismo clássico não aguentam o menor crivo contemporâneo científico, quanto mais teológico. Mas isso é como elogiar o veneno, ou o vírus, porque forçou a descoberta de uma vacina ou antídoto. Possivelmente, o liberalismo clássico seria melhor visualizado como um câncer que precisa de um corpo são para subsistir. O linguajar é “cristão”, mas as premissas são racionais – partem do pressuposto de que o raciocínio humano pode atingir objetivamente verdades pelo método dedutivo-científico no campo espiritual. A revelação. na realidade, não existe. A Bíblia, é uma compilação de escritos meramente humanos. Deus, ou é totalmente transcendente ou é imanente – parte da natureza. Ou seja, existe na igreja, depende dela, mas age contra ela e objetiva a destruição de seus fundamentos – isso é que é paradoxo real!

Vivemos um desenvolvimento de uma teologia secularizada e algumas pessoas dizem que a secularização, em si, não representou um mal para a fé, mas é difícil ver as coisas nesses termos. Tudo que não glorifica a Deus é antagônico à fé e ao propósito da criação. Se por “secularização” entendemos a visão de que Deus é um resquício do passado (visão modernista, antiga) a ser superado com o progresso do homem; ou de que Deus é um acessório interessante (visão pós-modernista, contemporânea) que atende os anseios “espirituais” do homem – isso é um reflexo do pensamento satânico na sociedade que procura cegar as pessoas para as reais demandas de Deus.

Podemos concordar que o cristianismo tem se abstraído de interagir ativamente com a sociedade secular e se retraiu em um mundo próprio. Essa retração não é bíblica. Todo o conhecimento verdadeiro, é conhecimento de Deus. Toda cultura verdadeira, é cultura de Deus. Toda verdade, é verdade de Deus e um bom livro para pesquisar isso é “Calvinismo”, publicado pela Cultura Cristã, de autoria de Abraham Kuyper. Ele mostra a relevância da fé reformada em um mundo criado por Deus e que pertence a ele, em todos os seus aspectos. Não há necessidade de recorrermos ao liberalismo, nem à neo-ortodoxia para sermos relevantes na sociedade. Basta retornarmos à Palavra e as diretrizes bíblicas levantadas pela Reforma do Século 16.

 

Revisado por Ewerton B. Tokashiki

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