O Seminário e a formação de Pastores – Parte 10

As Universidades Medievais

As universidades nos interessam de modo especial pelo seu caráter vigente durante a Reforma e por onde passaram diversos reformadores.

As universidades são produto da Idade Média (séc. XII), resultante dos contatos entre o mundo Ocidental com o muçulmano e bizantino.[1] Esta, na expressão de Abbagnano (1901-1990) e Visalberghi (1919-2007), foi “a mais importante instituição cultural da Idade Média”.[2]

De fato, as universidades tiveram um papel fundamental na vida intelectual europeia.[3] E também, a partir do intercâmbio geográfico cultural entre professores e alunos e do latim – língua por meio da qual eram ministradas as aulas[4] – como língua de transmissão destes saberes, as universidades contribuíram imensamente para a unificação da cultura “latino-cristã”.[5] No entanto, devemos ter em mente que a ideia de Universidade não deve ser associada, como hoje fazemos, a um conjunto de prédios, de faculdades dedicadas ao ensino e pesquisa, antes ao grêmio de professores e alunos que se dedicam ao estudo e, que “formavam uma corporação jurídica de direito próprio”, assinala Boehner (1901-1955) e Gilson (1884-1978).[6]

Elas só podiam ser fundadas pelo Imperador (“fundação real”) ou pelo Papa (“fundação pontífica”). Mesmo aquelas surgidas “espontaneamente” ou “nascidas por migração”, tinham o seu reconhecimento oficial por meio de um documento papal ou real. Esta licentia docendi foi a forma encontrada pela igreja para preservar o seu monopólio.[7]

Essas universidades tornaram-se com o passar do tempo (século XIII), em objeto de competições por parte dos monarcas dos respectivos países (Até o fim deste século foram fundadas 46 universidades), que desejavam ter sob o seu domínio, um “studium generale” – cursos que não eram  universitários e, que podiam ser frequentados por alunos de todas as partes e cujos graus tinham um valor universal –,  com o mesmo prestígio da de Paris, Bolonha e Salerno.[8]

 

A Universidade de Paris

A Universidade de Paris que é de origem “espontânea” (tendo os Estatutos, elaborados por Robert de  Curson (c. 1160/1170 – 1219), aprovados em 1215),[9] constava de quatro Faculdades: Teologia, Filosofia (“Artes”) (a mais concorrida), Direito (O direito civil foi banido a partir de 1219)[10] e Medicina. Todavia, ela especializou-se no ensino de Teologia, tornando-se para a “santa igreja”, como “a árvore da vida”.

Em 1255, escreve o papa Alexandre IV (1254-1261):

A ciência das escolas de Paris está na Santa Igreja como a árvore da vida no paraíso terrestre e como a lâmpada refulgente na casa do Senhor. Como uma mãe fecunda de erudição, ela faz jorrar em abundância das fontes da doutrina da salvação os rios que vão banhar a face estéril da terra, ela alegra por toda parte a Cidade de Deus e subdivide as águas da ciência que faz correr nas praças públicas para o refrigério das almas sedentas de justiça…. É em Paris que o gênero humano, deformado pela cegueira de sua ignorância original, recupera sua visão e sua beleza pelo conhecimento da luz verdadeira que irradia da ciência divina.[11]

Este elogio de Alexandre IV, envolvia obviamente a sua vitória sobre a autonomia da Universidade, na qual ele demitiu e contratou quem desejou, concedendo amplos poderes aos religiosos mendicantes… fiéis ao papa.[12]

A Universidade de Paris – apesar do antagonismo interno –, tornou-se a definidora, defensora e divulgadora da ortodoxia católica,[13] tendo os papas ao longo dos anos, contribuído decisoriamente para a sua projeção internacional.

Gilson comenta:

Ora, na medida em que ensinava teologia, a Universidade de Paris cessava de pertencer a si mesma e dependia de uma jurisdição mais alta do que a da razão individual ou da tradição escolar. Sua própria importância, o número sem cessar crescente dos mestres e alunos que vinham de todas as partes do mundo cristão para aí se instruir faziam dela a fonte do erro ou da verdade teológicos para toda a cristandade.[14]

Aliás, os papas procuravam sempre tornar as Universidades em instrumento conservador e defensor da “ortodoxia” católica. Por outro lado, os reis também viam nas Universidades um meio de projeção pessoal e propagação do seu reino.[15] Os mestres formados em Paris tinham em geral uma bela carreira pela frente no alto clero.[16]

 

A Universidade de Bolonha

A Universidade de Bolonha (1088), de origem laica, especializa-se desde 1140[17] em Direito Romano, permanecendo por muito tempo como o principal local de estudos jurídicos na Europa.[18] Um de seus alunos (c. 1495) e depois mestre ilustre, foi Copérnico (1473-1543).[19]

Do mesmo modo, “os juristas bolonheses tornavam-se conselheiros procurados por príncipes e cidades, sobretudo nas regiões mediterrâneas”, relata Verger.[20] Somente em 1352 ou 1364[21] Bolonha teve uma Faculdade de Teologia, concedida pelo papa Inocêncio VI (1352-1362).[22]

 

A Universidade de Salerno

A Universidade de Salerno especializou-se na área de Medicina, sendo durante séculos, a mais importante da Europa.[23] Devemos nos lembrar que Salerno era conhecida desde o século IX pela sua Faculdade de Medicina.[24]

As universidades, apesar de suas características próprias, são uma corporação eclesiástica que visa o monopólio cultural da Igreja, quer de forma direta, quer indiretamente.[25]

Nos séculos XIII-XV a Europa conhecerá a fundação de inúmeras universidades, que ganhará gradativamente um sentido mais local, perdendo uma de suas características primevas, a internacionalidade.[26]

Houve um crescente número de universidades criadas nos séculos seguintes que, em geral, procuravam seguir os modelos  de Paris e Bolonha. Assim temos a fundação de: Cambridge (1209), Salamanca (1218),[27] Montpellier (1220), Pádua (1222), Nápoles (1224), Toulouse (1229 ou 1234), Lisboa (1290), Lérida (1300), Avignon (1303), Roma (1303), Perúgia (1308), Cahors (1332), Pisa (1343), Valladolid (1346), Praga (1347), Florença (1349), Perpignan (1350), Huesca (1354), Siena (1357), Pavia (1361), Cracóvia (1364), Viena (1365), Orange (1365), Erfurt (1379),[28] Heidelberg (1385), Colónia (1388), Leipzig (1409), St. Andrews (1413), Rostock (1419), Lovaina (1425), Caen (1452), Trèves (1454), Greifswald (1456), Friburgo (1457), Bâle (1459), Ingolstadt (1459), Basiléia (1459), Bourges (1464), Bordeaux (1473), Mogúncia (1476), Tübingen (1476), Uppsala (1477), Copenhague (1478), Frankfurt (1498), Alcalá (1499), Valência (1500), Wittenberg (1502), etc. Nos fins do século XV, a Europa contará com mais de 75 universidades.[29]

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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[1]Vejam-se: Universidade: In: Pierre Bonassie, Dicionário de História Medieval, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985, p. 195; Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, Bauru, SP.: EDUSC., 2001, p. 15.

[2]N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, p. 153. De modo semelhante, escreveu Verger: “As universidades foram de longe, a mais complexa e a mais elaborada dessas instituições, aquelas que melhor representam os valores e as expectativas da civilização medieval no campo educativo” (Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru, SP.; São Paulo: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 2, p. 573. Do mesmo modo: Jacques Verger, Homens e Saber na Idade Média, Bauru, SP.: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, p. 75).

[3] Cf. George Holmes, A Europa na Idade Média: 1320-1450, Hierarquia e Revolta, Lisboa: Presença, (1984), p. 119.

[4] Cf. George Holmes, A Europa na Idade Média: 1320-1450, Hierarquia e Revolta, p. 120.

[5]Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, Bauru, SP.: EDUSC., 2001, p. 16.

[6] Philotheus Boehner; Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa, 3. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1985, p. 355.

[7]Vejam-se: Jacques Verger, As Universidades na Idade Média, São Paulo: Editora Unesp., 1990, p. 41-45; Christophe Charle; Jacques Verger, História das Universidades, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996, p. 14-15.

[8] Vejam-se: Aldo Janotti, Origens da Universidade: A Singularidade do Caso Português, 2. ed. São Paulo: EDUSP., 1992, p. 22-25; António José Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Lisboa: Gradiva, 1988, p. 111ss.; António José Saraiva, História da Cultura em Portugal, Lisboa: Jornal do Fôro, 1950, v. 1, p. 95ss.; Philotheus Boehner; Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa, p. 357.

[9] Cf. Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média, 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 62, 137.

[10] Cf. Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 577.

[11]In: Etienne Gilson, A Filosofia na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 490. Vejam-se também: António J. Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, p. 112; António J. Saraiva, História da Cultura, v. 1, p. 30, 96,98. Schmitt acentua que a teologia se torna no século XII um campo especializado do conhecimento. “O nascimento da Universidade consagra essa especialização, assim como a superioridade do saber teológico sobre todos os outros: a faculdade de teologia é posta no topo da hierarquia universitária, acima da faculdade de artes (liberais)” (Jean-Claude Schmitt, Deus: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru, SP.; São Paulo: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 1, p. 308).

[12] Vejam-se: Jacques Verger, As Universidades na Idade Média, São Paulo: Editora Unesp., 1990, p. 77-79; Etienne Gilson, A Filosofia na Idade Média, p. 488ss.

[13] “A universidade de Paris tornou-se, no século XIV, conselheira do rei da França e do papa….” (Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 583). Ver também: Luís Alberto De Boni, A Universidade Medieval – Saber e Poder: In: Terezinha Oliveira, organizadora. Luzes Sobre a Idade Média, Maringá, PR.: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2002, p. 23. No século XVI, ainda a Faculdade de Teologia conservava esse status. As obras de Lutero e Calvino, entre outros reformadores, experimentaram essa censura, sem eficácia, evidentemente (Vejam-se: James K. Farge, Early Censorship of printed books in Paris: New perspectives and insights: In: J.M. de Bujanda, ed. Le Contrôle des idées a la Renaissance, Genève: Librairie Droz, 1996, p. 75-91 e, Francis Higman, Luther, Calvin et les Docteurs: In: J.M. de Bujanda, ed. Le Contrôle des idées a la Renaissance, Genève: Librairie Droz, 1996, p. 93-111).

[14] Etienne Gilson, A Filosofia na Idade Média, p. 487.

[15]Vejam-se: A.J. Saraiva, História da Cultura em Portugal, v. 1, p. 30, 100; Philotheus Boehner; Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa, p. 357-358; Etienne Gilson, A Filosofia na Idade Média, p. 484, 487ss; Jacques Verger, As Universidades na Idade Média, p. 72, 79; Luís Alberto De Boni, A Universidade Medieval – Saber e Poder: In: Terezinha Oliveira, organizadora. Luzes Sobre a Idade Média, p. 24.

[16] Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 575-576; Luís Alberto De Boni, A Universidade Medieval – Saber e Poder: In: Terezinha Oliveira, organizadora. Luzes Sobre a Idade Média, p. 21.

[17]Cf. Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, 2. ed. rev. Lisboa: Editorial Verbo, (1978), v. 1, p. 229.

[18]Cf. A.J. Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, p. 112; A.J. Saraiva, História da Cultura em Portugal, v. 1, p. 98. Bolonha se tornaria um centro bastante popular de estudantes alemães (Cf. Alister E. McGrath, Lutero e a Teologia da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 47).

[19] Cf. Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 3. Por lá passaram ilustres alunos como Picco della Mirandola, Dante AlighieriFrancesco Petrarca.

[20] Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 576.

[21] Cf. Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 578.

[22]Cf. Philotheus Boehner; Etienne Gilson, História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa, p. 356; Etienne Gilson, A Filosofia na Idade Média, p. 483.

[23]Cf. António J. Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, p. 130; Aldo Janotti, Origens da Universidade: A Singularidade do Caso Português, p. 24.

[24] Cf. https://www.meer.com/it/40383-il-canone-di-avicenna  (Consulta feita em 17.11.2023).

[25] Vejam-se: Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média, p. 64; Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 573, 576; Jacques Le Goff, Por Amor às Cidades, São Paulo: Editora Unesp., (2. reimpressão), 1998, p. 64-65.

[26] Vejam-se: Jacques Le Goff, Os Intelectuais na Idade Média, p. 106-109; T.M. Lindsay, La Reforma en su Contexto Histórico, Barcelona: CLIE., (1985), p. 64.

[27] Confirmada pela papa somente em 1255 (Cf. Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 579). Serrão apresenta a fundação da Universidade de Salamanca “pelo ano de 1242” (Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal, 2. ed. rev. Lisboa: Editorial Verbo, (1978), v. 1, p. 230).

[28]Criada por bula do Papa Urbano VI (04.05.1389), porém, inaugurada oficialmente em 1392. Porém, o anuário de 2014 da Universidade, apresenta a data de 1379. (https://www.uni-erfurt.de/universitaet/profil/geschichte) (Consulta feita em 17.11.2023)

[29]Cf. N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, p. 154. “De uma dezena de universidades ativas em torno de 1250, passou-se a 28 em 1378, 63 em 1500. É impossível medir os efetivos totais reunidos por essas universidades, mas o crescimento é inegável. Se as universidades mais antigas puderam atingir, no século XV, um nível aliás elevado (cerca de 4000 estudantes em Paris, 2000 em Bolonha, 1700 em Oxford), as novas criações acusaram em certos lugares desenvolvimento espetacular: na Alemanha, por volta de 1500, cerca de 3000 novos estudantes matriculavam-se todos os anos. Esse êxito quantitativo pelo menos mostra bem que, do século XIII ao XV, as universidades não deixaram de atender, de modo julgado satisfatório pelos contemporâneos, a ‘demanda social’, em parte delas próprias, em parte sob pressão das autoridades que as controlavam” (Jacques Verger, Universidade: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. 2, p. 583-584). “Estas somavam cerca de duas dezenas em 1.300; eram 31 em 1.400, e 65 em 1.500” (Luís Alberto De Boni, A Universidade Medieval – Saber e Poder: In: Terezinha Oliveira, organizadora. Luzes Sobre a Idade Média, p. 18). Holmes estima que no início do século XIV “Paris pode ter tido uma população universitária de 3 000 a 5 000 pessoas” (George Holmes, A Europa na Idade Média: 1320-1450, Hierarquia e Revolta, Lisboa: Presença, (1984), p. 120).

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