Apontamentos sobre Metodologia, Pesquisa e Ciência – Parte 5

2.1. Documentos e Interpretações

Alguns indivíduos são mais atraídos pelo exótico do que outros, mas todos eles domesticam suas descobertas por meio de um processo de reinterpretação e recontextualização. Em outras palavras, leitores, ouvintes e observadores, são apropriadores e adaptadores ativos, em vez de receptores passivos.– Peter Burke.[1]

No início de sua obra, Tucídides (c. 465- c. 395 a.C.), o “pai da história científica”, adverte aos seus leitores quanto à seriedade e objetivo de sua história:

Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará. Na verdade, ela foi feita para ser um patrimônio sempre útil, e não uma composição a ser ouvida apenas no momento da competição por algum prêmio.[2]

O historiador assemelha-se a um arqueólogo[3] que se envolve existencialmente[4] com o passado, buscando por meio de documentos, compreender[5] o sentido do vivido, acontecido, sabendo, contudo, que os fatos nunca lhe parecerão como foram percebidos pelos contemporâneos.[6]

 

Seleção, interpretação e importância

Acontece que esta busca comprometida, passa por uma seleção[7] e interpretação.[8] E essas, são ditadas em grande parte pelo critério de “importância”, que, diga-se de passagem, varia extremamente de cultura para cultura e, também, dentro de cada período histórico. Também, não podemos descartar o grau (mais ou menos intenso) inconsciente ou não, de nossa subjetividade (interesse, paixão, desinteresse, certa ignorância, boa ou má-vontade). Por isso que ao historiador não cabe apenas recontar – considerando que a precisão do “acontecido” deve ser uma obrigação –,[9] mas interpretar, dar forma,[10] analisar, julgar, conjecturar,[11] emitir o seu juízo de valor, tentando pôr-se no lugar dos personagens, esforçando-se por entender a sua forma de pensar[12] e, consequentemente, de ver o mundo.[13]

O historiador corre sempre um alto risco. No entanto, deve manter-se fiel às suas fontes; esse é o seu compromisso que, se não é uma garantia de acerto, o é de integridade. Fazer história é uma atividade audaciosa que requer pesquisa, reflexão e ousadia. Que os preguiçosos, que tem respostas prontas, covardes e indecisos se afastem daqui.

 

Importância do esquecimento

Como nos lembra Rossi (1923-2013), a relevância do “esquecimento” nesse processo: “Quando nos aproximamos de um pensamento que não é o nosso se torna importante tentar esquecer aquilo que sabemos ou pensamos saber”.[14]

Para que possamos “atualizar” a história é necessário assimilar de forma compreensiva o modo de pensar, de raciocinar e de perceber a realidade daqueles a quem estudamos.

Desse modo, a história adquire sempre um sentido de contemporaneidade, já que o passado é visto pela ótica do presente dentro de uma perspectiva de interesse atual.[15] Portanto, o historiador é sempre um ser ativo em sua relação epistemológica com o “fato” conhecido e consigo mesmo – com seus métodos e percepção. Assim sendo, a simples existência dessa consciência, determina um grau imprescindível de subjetividade.[16]

Como sabemos, o conhecimento, seja em que nível for, não ocorre num vácuo asséptico conceitual quer seja religioso, quer filosófico, quer cultural.[17] A nossa percepção e ação fundamentam-se em nossos pressupostos[18] os quais são reforçados, transformados, lapidados, ou abandonados em prol de outros, conforme a nossa percepção dos “fatos” ou que dos “fatos” nos chegam.

 

Continuaremos a tratar desta questão epistemológica.

 

 

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa.

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[1]Peter Burke, As Fortunas d’O Cortesão: a recepção europeia a O cortesão de Castiglione,  São Paulo: Editora da UNESP.,  1997, p. 14.

[2]Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1982, Livro I, Cap. 22.

[3]Posteriormente, encontrei essa expressão em Skinner, que afirma: “Um papel correspondente para o historiador do pensamento é o de agir como um tipo de arqueólogo, trazendo de volta para a superfície tesouros intelectuais enterrados, limpando sua poeira e possibilitando-nos reconsiderar o que pensamos dele” (Quentin Skinner, Liberdade antes do Liberalismo, São Paulo: Editora UNESP.; Cambridge University Press, 1999, p. 90).

[4] “A história é uma aventura espiritual em que se compromete toda a personalidade do historiador. Para tudo dizer numa palavra, ela é dotada, para ele, de um valor existencial, é daí que recebe a sua seriedade, a sua significação e o seu            valor” (H.I. Marrou, Do Conhecimento Histórico, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, [s.d.], p. 183).

[5] “Uma palavra, para resumir, domina e ilumina nossos estudos: ‘compreender’. Não digamos que o historiador é alheio às paixões; ao menos, ele tem esta. Palavra, não dissimulemos, carregada de dificuldades, mas também de esperanças. Palavra, sobretudo, carregada de benevolência. É cômodo gritar ‘à força’. Jamais compreendemos o bastante” (Marc Bloch, Apologia da História, ou, O Ofício de Historiador, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 128).

[6] Ariès (1914-1984) relembra uma história contada por Lucien Febvre (1878-1956) a respeito do Rei Francisco I de França que após passar uma noite nos braços da amante, voltando para o seu castelo ouve um sino na igreja. Emocionado, entrou na igreja para assistir a missa e orar devotamente. Relembra outro caso a respeito de Margarida de Navarra (1492-1549), irmã de Francisco I, que escrevia uma coletânea de textos licenciosos (Heptamerão)[Postumamente: 1559] e outra coletânea de poemas espirituais (O Espelho de uma Alma Pecadora) [1531], “sem escrúpulos exagerados”. Ariès conclui: “Certas coisas, portanto, eram concebíveis, aceitáveis, em determinada época, em determinada cultura, e deixavam de sê-lo em outra época e numa outra cultura. O fato de não podermos mais nos comportar hoje com a mesma boa-fé e a mesma naturalidade de nossos dois príncipes do século XVI, nas mesmas situações, indica precisamente que interveio entre elas e nós uma mudança de mentalidade. Não é que não tenhamos mais os mesmos valores, mas que os reflexos elementares não são mais os mesmos” (Philippe Ariès, A História das Mentalidades: In: Jacques Le Goff, ed. A História Nova, 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (2. tiragem), p. 154). Veja-se também: Lucien Febvre, O Problema da Descrença no Século XVI, Lisboa: Editorial Início, 1970, p. 118ss.

[7]Carr (1892-1982) acentua que “o historiador é necessariamente um selecionador” (Edward Hallet Carr, O que é história?, 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996 (7. reimpressão), p. 48). Marc Bloch: “Assim como todo cientista, como todo cérebro que, simplesmente, percebe, o historiador escolhe e tria. Em uma palavra analisa” (Marc Bloch, Apologia da História, ou, O Ofício de Historiador, p. 128). Mais recentemente, Johnson (1928-2023): “Composto de acontecimentos pequenos e grandes que se furtam a uma avaliação precisa, o passado é infinitamente complicado. Para obter dele um sentido, o historiador precisa selecionar, simplificar e dar forma” (Paul Johnson, O Renascimento, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 11).

[8] “De um modo geral, o historiador conseguirá o tipo de fatos que ele quer. História significa interpretação” (Edward H. Carr, O que é história?, p. 59).

[9] “A história nunca é o simples recontar do passado como realmente foi. É, inevitavelmente, uma interpretação do            passado, uma visão retrospectiva do passado limitada tanto pelas fontes em si quanto pelo historiador que as seleciona e interpreta” (Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 17).

[10] Ver: Johan Huizinga, El Concepto de la Historia y Otros Ensayos, p. 92.

[11] “O historiador é comparável ao médico, que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural” (Carlos Ginzburg, Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história, São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 150).

[12]“A história não pode ser escrita a menos que o historiador possa atingir algum tipo de contato com a mente daqueles sobre quem está escrevendo” (Edward H. Carr, O que é história?, p. 60).

[13]“O trabalho do historiador não consiste nem em rejeitar o passado nem em idealizá-lo, mas em compreendê-lo” (Evaldo Cabral de Mello, entrevista à Folha de São Paulo: 31/03/96, p. 5. Caderno “Mais!”).

[14]Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, Bauru, SP.: EDUSC, 2001, p. 29. Veja-se também: Paolo Rossi, O Passado, a memória, o esquecimento: Seis ensaios da história das ideias. São Paulo: Editora UNESP., 2010.

[15]“Para que escrever a história, se não for para ajudar seus contemporâneos a ter confiança em seu futuro e a abordar com mais recursos as dificuldades que eles encontram cotidianamente? O historiador, por conseguinte, tem o dever de não se fechar no passado e de refletir assiduamente sobre os problemas de seu tempo” (Georges Duby, Ano 1000, ano 2000, na pista de nossos medos, São Paulo: Editora UNESP.; Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 9).

[16]Veja-se: Adam Schaff, História e Verdade, 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 280ss. “É preciso admitir que o conhecimento objetivo só pode ser um amálgama do que é objetivo e do que é subjetivo, dado que o conhecimento é sempre obra de um sujeito; mas é preciso também admitir que o progresso no conhecimento e a evolução do saber adquiridos graças a ele só são possíveis se transpondo as formas concretas, sempre diferentes, do fator subjetivo” (Adam Schaff, História e Verdade, p. 294-295).

[17]Veja-se: Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, A Alma da Ciência, São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 9-12; 294. Posteriormente, li: “A reflexão teológica (…) nunca ocorre em um vácuo social ou cultural” (Alister E. MacGrath, Lutero e a Teologia da Cruz,  São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 22).

[18]“As pressuposições ainda determinam nossos destinos, mesmo a despeito de alguma inconsistência no caminho” (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: Redenção para a cultura pós-moderna, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 15).

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